Intervenção de Carlos Carvalhas, Secretário-Geral, Debate «Sistema político, democracia e Constituição»

O Sistema político, democracia e Constituição

Embora em grande medida motivado pela necessidade de alargar a tomada de consciência e a mobilização democrática contra os perigos e ameaças que novas leis ditas de «reforma do sistema político» representam, este debate promovido pelo PCP permite, de forma e coerente com as nossas preocupações imediatas, evocar que foi precisamente num dia 2 de Abril mas de há 27 anos que foi aprovada e promulgada a Constituição da República Portuguesa, dotando Portugal de «um regime democrático escolhido pelo próprio povo» para usar a precisa expressão consagrada no VI Congresso do PCP de 1965 e no VII Congresso Extraordinário de Outubro de 1974.

A elaboração, aprovação e entrada em vigor da Constituição da República não só é inseparável do processo da Revolução de Abril como representou, ao mesmo tempo, um marco decisivo nesse processo e um acto fundador da democracia portuguesa que para ela carreou o acervo de património de valores, de conquistas, de transformações e mudanças que, com uma decisiva intervenção dos trabalhadores e do povo, foi então possível projectar na vida nacional.

Contra marés de calúnias e mentiras que têm tantos anos quantos tem a Constituição, reafirmamos ainda hoje, sem a mais pequena hesitação, o nosso orgulho pela generosa, empenhada e qualificada contribuição que o PCP deu para a elaboração da Constituição da República e para a áspera luta travada ao longo destes 27 anos para a defender e fazer respeitar.

É certo que, como sabemos, sucessivas revisões constitucionais - em regra espelhando um arrastado ajuste de contas com a revolução democrática por parte de sectores sociais e forças políticas que ou a combateram ou não se identificaram com muitas das suas mais avançadas componentes – foram em várias áreas mutilando ou empobrecendo o conteúdo progressista da Constituição, seja retirando protecção constitucional a grandes transformações socioeconómicas, seja abrindo as portas para a perversão dos seus princípios através de legislação ordinária, e tudo quase sempre ou com o fito de reabilitar retroactivamente as políticas inconstitucionais antes realizadas pelos sucessivos governos ou para permitir levar mais longe a política de direita.

E sobretudo que ninguém confunda as coisas descarregando para cima da Constituição o que só é culpa das orientações e da vontade dos governos.

De facto, é bom ter presente que nenhuma revisão constitucional criou a obrigação de levar por diante essa vergonhosa operação de rapina dos bens do Estado a que se chamou processo de privatizações.

Foram os governos do PSD e do PS que assim quiseram. Nenhuma revisão constitucional obrigou Portugal a envolver-se subordinadamente na crescente teia federalista que marca o actual rumo da integração europeia. Foram os governos do PS e do PSD que assim decidiram. Nenhuma revisão, e concretamente a última, criaram qualquer encargo obrigatório de mexer na lei dos partidos ou nas leis eleitorais. Foram e são o PS e o PSD que querem trilhar esse caminho.

A verdade é que a Constituição da República continua ainda a ser uma das Constituições mais progressistas do mundo, e não só está longe de ter terminado a longa e violenta guerra que a direita lhe move como, inversamente, está longe de ter terminado o tempo em que podia ser invocada em nome e em favor da política de esquerda necessária e indispensável para o progresso do país.

Basta ver a subserviência do Governo de Portugal no apoio e cumplicidade com a devastadora guerra de agressão e ocupação desencadeada pelos EUA contra o Iraque – com o seu cortejo de sangue, sofrimento e morte – e comparar com a orientação da Constituição- a que todos devem respeito – de que «Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade».

E ainda que «Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos».

Basta olhar para a política da direita de agravamentos das injustiças e desigualdades sociais, de escandalosas benesses fiscais para o grande capital e de agravamento da carga fiscal sobre quem trabalha, de ataque cerrado aos direitos dos trabalhadores e basta recordar que o que a Constituição diz é que «incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social, promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas, designadamente das mais desfavorecidas, e ainda promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza, nomeadamente através da política fiscal».

Basta olhar o processo de crescente subordinação do poder político ao poder económico e o brutal PREC (Processo Reprivatizador em Curso) que não tardará muito estará a vender a Torre de Belém e basta comparar com a Constituição que proclama que «a organização económico-social» do país assenta «na subordinação do poder económico ao poder político democrático, na coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; na liberdade de iniciativa e organização empresarial no quadro de uma economia mista; na propriedade pública dos recursos naturais e principais meios de produção, de acordo com o interesse colectivo; e no planeamento democrático do desenvolvimento económico e social».

E é exactamente no quadro que não abandonamos nem renegamos dos valores democráticos do 25 de Abril e da Constituição que temos alertado para a gravidade de certas ideias e projectos incorporados naquilo que o PS, o PSD e o CDS-PP têm chamado a «reforma do sistema político» e que, a nosso ver, longe de corresponderem a aperfeiçoamentos e melhoramentos (para os quais estamos sempre disponíveis e para os quais já no passado contribuímos de forma relevante) favoráveis à dignificação da vida e da acção políticas antes correspondem a graves ameaças de inaceitáveis retrocessos no regime democrático-constitucional, como especial atenção, como já hoje aqui foi largamente referido, e por ordem de importância e consequências, para os projectos de uma nova lei dos partidos e de alterações à lei sobre o financiamento dos partidos que PS, PSD e PP pretendem aprovar até 25 de Abril deste ano.

Quanto a esta última, queremos reafirmar com clareza que seria absolutamente inaceitável qualquer propósito de dificultar a vida a partidos como o PCP que vivem sobretudo do esforço militante de angariação de receitas próprias e de, através do reforço das subvenções públicas, encher de dinheiro do Estado os partidos como o PSD e o PS que em boa parte vivem sobretudo das subvenções públicas.

Queremos reafirmar com clareza a nossa convicção de que os portugueses não compreenderiam que, num quadro de tantas dificuldades e sacrifícios e de tanta proclamação das «dificuldades orçamentais», fossem aumentados os encargos do Estado com os partidos, e sobre cujos militantes e apoiantes incumbe em boa parte o dever de contribuírem financeiramente para a sua actividade.

E queremos reafirmar com clareza que, ao contrário do PSD e do PS que claramente o que querem é mais receitas oriundas do Estado para continuarem a sustentar o fausto das suas campanhas eleitorais, o PCP considera que se há alguma alteração útil a fazer na lei em vigor é precisamente o de fazer baixar o despesismo eleitoral diminuindo os limites máximos permitidos para as diversas campanhas eleitorais.

Mas, como também foi hoje aqui evidenciado, é indiscutivelmente nos projectos de uma nova lei dos partidos que se perfila, no imediato, a ameaça de mais grave significado e consequências e é por isso mesmo que tem de ser firmemente denunciada e combatida.

Neste domínio, o que acontece é que, sem que alguém seja capaz de demonstrar que, ao longo dos últimos 29 anos, se verificou algum problema grave com a lei em vigor, PSD e PS decidiram avançar para projectos que, em síntese, representariam formas inaceitáveis de ingerência do Estado na vida, formas de organização e funcionamento internos dos partidos, soluções legais ao arrepio de toda a tradição de autonomia e independência dos partidos que a ordem jurídica pós-25 de Abril consagrou e que, em termos práticos, poderiam significar a imposição a outros partidos, e especialmente ao PCP, de um «modelo único» em que PS, PSD e PP se revêem e por, esta via, assim expropriando os militantes dos partidos da sua inalienável soberania de decisão e escolha.

Embora nem chegue a ser um segredo de polichinelo, há muito que ficou claro que certas normas dos projectos do PS e do PSD visam especialmente o PCP.

Mas isso é uma coisa e outra seria enfiarmos a carapuça de que é o PCP e a sua democracia interna que estão carecidos de uma pressão externa por via de lei para que adopte estas ou aquelas alterações de funcionamento ou de organização.

Não, não enfiamos essa carapuça e reafirmamos que o PCP tem uma vida, organização e funcionamento internos que respeitam integralmente o principio estabelecido no artº 51 da Constituição de que «Os partidos políticos devem reger-se pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os seus membros».

Já o dissemos noutra ocasião e repetimo-lo hoje: as regras e o funcionamento de cada partido são objecto natural de debate pelos seus próprios militantes e também podem ser tema de polémica ou controvérsia pública entre forças políticas. Mas não deve ser a lei a impor o triunfo das preferências de uns sobre a vontade e as escolhas próprias de outros.

Não fomos nós mas uma combinação e acordo entre o PS e o PSD que decidiram colocar na agenda política e parlamentar estas novas leis inseridas numa suposta mas bem perversa «reforma do sistema político», numa conjuntura de acentuado desgaste do Governo e de amplo descontentamento com a sua política social e económica a que se juntou nas últimas semanas o tema dramático e naturalmente avassalador da guerra contra no Iraque.

Mas assim sendo, é inteiramente justo e inteiramente necessário que, apesar de outras ingentes preocupações e tarefas, se amplie a informação e a mobilização dos democratas para fazer recuar os aspectos essenciais e mais gravosos dos projectos de nova lei dos partidos, com plena confiança de que ainda será possível derrotar o que seria um intolerável atentado à liberdade de associação e à autonomia dos partidos e uma provocatória prova de força com a vontade, os sentimentos e a dignidade dos membros do PCP.

Em Portugal e também, com diversas variantes, em outros países a temática da alegada «reforma do sistema político» procura quase sempre encobrir os seus reais propósitos de mutilação e empobrecimento da democracia com uma densa cortina de nobres preocupações, inquietações e objectivos, como sejam o acautelar eventuais escândalos quanto ao financiamento dos partidos, promover a «aproximação dos eleitos aos eleitores», assegurar a «transparência» e sobretudo enfrentar o crescente divórcio entre os cidadãos e a vida política.

Este último e grosso problema, que é muitas vezes duvidosamente qualificado de «crise da política», «crise do sistema político» ou «crise do sistema de representação» não é a nosso ver passível de explicações lineares nem terá uma causa única precisamente porque será o resultado da convergência e imbricação de um complexo conjunto de fenómenos e tendências que ultrapassa em larga medida a acção dos partidos.

Mas dizendo isto, é preciso que digamos também que, por nós, não estamos dispostos a acompanhar os que, para escamotearem a própria responsabilidades dos seus comportamentos e atitudes (que aliás não querem mudar) na degradação da vida política se armam depois em querubins e fingem acreditar que o problema está nas deficiências ou insuficiências das leis.

E, por isso, pela nossa parte continuaremos a insistir que na desconfiança dos cidadãos em relação à vida política não pode deixar de ter um peso considerável o persistente incumprimento de promessas, a subordinação das decisões governamentais a interesses egoístas e com profundo desprezo pelo interesse público, a impenitente demagogia, o rebaixamento do nível do debate e da argumentação política através dos truques de uma «política-espectáculo» (sempre tão acarinhados pelos «media») que terá nascido e desenvolvido supostamente para tornar a política mais acessível ao comum dos cidadãos mas que contém o desfecho perverso de aos olhos de muitos cidadãos a política passar a ser vista apenas e só como um «espectáculo».

De facto, bem podem os partidos de direita chorar as lágrimas de crocodilo que quiserem em torno da necessidade de prestigiar a vida política, de ampliar a sua transparência e de reavivar laços de confiança e participação onde hoje há crescente desconfiança e falta de esperança (que também são muito fomentadas).

Mas bem podiam estar calados e ter alguma vergonha na cara quando se sabe que as medidas e orientações mais gravosas e impopulares deste Governo estiveram completamente ausentes do discurso eleitoral do PSD nas últimas eleições legislativas.

Quando se sabe que se alguém for ler as 45 mil palavras do Programa de Governo então apresentado ao eleitorado pelo PSD não encontrará lá uma só sobre aumento das portagens ou uma só que seja sobre o agravamento do IRS sendo que estão lá oito que propõem «a moderação da tributação dos rendimentos do trabalho».

E, estando já marcada para dia 10 a aprovação do pacote laboral (que antes de dia 10 e depois disso terá de continuar a merecer um vivo repúdio e combate) quando se sabe que nesse Programa do PSD ninguém encontrará uma palavra sobre trabalho nocturno, sobre ataque à contratação colectiva, sobre agravamento da contratação a prazo, etc. etc. e o mais que lá se dizia sobre o Código de Trabalho era que ele visava «a sistematização da legislação laboral, sintetizando-a no menor número possível de diplomas e tornando-a facilmente compreensível para todos os destinatários».

É olhando para exemplos destes de falta de escrúpulos mas também sabendo que entre os cidadãos e a política estão hoje interpostos múltiplos mecanismos apostados em travar os avanços de consciência social e política que são necessários para as mudanças de que Portugal precisa (e entre esses mecanismos desempenham um papel crucial as generalizações abusivas sobre «os partidos» e a ideia no fundo resignada e conformista de que «são todos iguais»), que podemos terminar afirmando que, em nossa opinião, a maior exigência dos tempos que correm é que o sistema político conserve e respeite os valores e princípios democráticos da Constituição e seja poupado a entorses e engenharias antidemocráticas.

E sobretudo que se alargue na sociedade portuguesa a consciência dos cidadãos de que, para evitar que a más políticas tomem conta das suas vidas, é necessário que tomem eles conta da política e não prescindam do esforço para reflectir, analisar, julgar, punir e premiar as forças políticas em função do que realmente fazem e realmente propõem.

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