O Parlamento Europeu aprovou por maioria, no passado dia 15 de fevereiro, em Estrasburgo, o Tratado Comercial entre União Europeia e Canadá (CETA), apesar dos fortes protestos quer dentro quer fora daquele hemiciclo.
Importa recordar que, apesar do forte secretismo que rodeou as negociações entre a União Europeia e o Canadá, este Acordo mereceu uma elevada e expressiva rejeição por parte de largos sectores da opinião em vários países. E que foi precisamente esta expressiva rejeição que obrigou a UE considerar o CETA como um acordo de natureza «mista», o que implica a sua ratificação por parte de cada um dos Estados-membros segundo as suas normas constitucionais e consequentemente pelos seus parlamentos nacionais.
O CETA não é um simples acordo de comércio e não visa apenas abolir pautas aduaneiras, tem como grande objetivo avançar ainda mais na liberalização do comércio e serviços, apontando a eliminação de quaisquer barreiras ao domínio das transnacionais sobre as economias de Estados soberanos, procurando impedir os Estados e os cidadãos de defender os seus interesses, impondo um instrumento jurídico que se sobreponha às jurisdições e instituições soberanas dos Estados.
O CETA, a ser ratificado, implicará um retrocesso nos direitos sociais, laborais, ambientais e de saúde pública e levará à desregulação, desproteção e destruição de capacidade produtiva de importantes setor produtivos portugueses.
No caso da agricultura, o acordo afetará a sustentabilidade do modelo produtivo tradicional que assenta em normas que, obedecendo ao princípio da precaução, inibem o uso de um vasto conjunto de substâncias que são utilizadas no Canadá.
Abdicar do princípio da precaução não terá apenas efeitos na produção agrícola; afetará, igualmente, a saúde dos consumidores pelo facto de existir um fosso enorme em matéria de segurança alimentar, designadamente no domínio do cultivo e comercialização de organismos geneticamente modificados, do uso de disruptores endócrinos e de hormonas de crescimento nos bovinos e de compostos clorados nas aves.
Acresce ainda o reconhecimento muito insuficiente das denominações geográficas; no caso português estão apenas salvaguardados 20 produtos de um universo de 137. Isto representará a sua desproteção e terá implicações na quebra de rendimento dos produtores e das regiões.
As considerações acima descritas foram subscritas por diversas organizações que participaram na Audição Pública realizada por iniciativa do Grupo Parlamentar do PCP em 31 de março passado e nos Pareceres enviados à Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas por ocasião da elaboração de pareceres referentes às Propostas de Resolução n.º 49/XIII/2ª e n.º 50/XIII/2ª.
Nesses pareceres, é claramente assumido que não incluir o princípio da precaução “poderá ter graves impactos sobre a saúde, o meio ambiente e a proteção dos recursos hídricos” (Associação Água Pública) e que existem “impactos inegáveis a médio e longo prazo, dificultando, se não mesmo impedindo, o fortalecimento dos standards de proteção da saúde humana e do ambiente”. É, de igual modo, referido que “no caso dos desreguladores endócrinos, já são inequívocos os efeitos das negociações destes acordos comerciais nas tomadas de posição mais recentes da CE [Comissão Europeia] sobre o tema, isto mesmo antes dos acordos estarem assinados” -posição assumida pela Associação Zero.
Ainda no tocante ao setor agrícola, e como foi advogado num dos Pareceres, este Acordo “pode vir a colocar ainda maior pressão sobre os produtores e sobre os preços, reduzir a capacidade de se privilegiar o consumo de produtos locais e nacionais e levar a uma estagnação ou mesmo a um retrocesso na proteção da saúde humana e do ambiente”.
Na área da legislação laboral não existe no CETA um único mecanismo para defender os direitos dos trabalhadores, impedir que se baixe os níveis de proteção, evitar um mais do que previsível dumping legislativo em matéria laboral. É de referir ainda que a legislação laboral e a proteção dos direitos dos trabalhadores no Canadá - nomeadamente, porque este não ratificou grande parte das Convenções da Organização Internacional do Trabalho, como a da contratação coletiva - são muito inferiores aos existentes em países que integram a UE, como é o caso de Portugal.
O capítulo 23 sobre as leis laborais, no qual se fazem incipientes apelos à manutenção dos níveis atuais de proteção das leis em vigor no Canadá e na União Europeia, demonstra à sociedade as consequências negativas e extremamente penalizadoras para os trabalhadores do acordo.
As ideias atrás expostas são corroboradas pelo Parecer da CGTP-IN quando afirma que “o CETA não contém qualquer garantia de proteção dos direitos dos trabalhadores. De facto, apesar do Acordo incluir um capítulo dedicado aos direitos laborais, o que se constata é que essas disposições em matéria laboral não são vinculativas, o que significa que se trata de um mero conjunto de afirmações sem qualquer obrigatoriedade de cumprimento (…) o CETA irá contribuir para aumentar as pressões para nivelar por baixo as condições de trabalho e enfraquecer os direitos dos trabalhadores, pondo assim em risco o acervo de direitos laborais que integram a nossa ordem jurídica”.
Ao invés do que tem sido propalado por dirigentes e altos funcionários da UE, por membros do Governo Português e por outros defensores e entusiastas do chamado “livre comércio”, os serviços públicos não estão salvaguardados. A redação adotada no Acordo e a existência de uma lista negativa muito restritiva impedem a possibilidade de estes voltarem para a esfera pública, caso um Estado decida, soberanamente, que determinados serviços devem ser prestados e geridos de forma pública e universal. Quer isto dizer que os serviços públicos que foram já privatizados ou concessionados ficam abrangidos pelo CETA e à disposição das transnacionais e dos seus interesses, dificultando o seu retorno o para a esfera pública.
Os malefícios verificam-se também na área da justiça e no exercício da soberania e democracia. O acordo institui um mecanismo de resolução de litígios, conhecido por ICS, que atenta contra a soberania nacional e tem como objetivo maior fugir às jurisdições nacionais, uma vez que as instâncias arbitrais não estão sujeitas ao enquadramento legal estadual.
Mais uma vez a realidade contradiz o que afirmam os defensores do Acordo. As instâncias arbitrais funcionam à margem do controlo democrático, são compostas não por juízes independentes, mas por árbitros escolhidos com base, como é afirmado no próprio Acordo, em “conhecimentos especializados sobretudo no domínio do direito internacional em matéria de investimento, do direito comercial internacional e da resolução de litígios no quadro de acordos internacionais de comércio e investimento”, ou seja, por advogados de grandes escritórios ligados às multinacionais e aos seus interesses.
Como está expresso no parecer do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, o ICS não está vocacionado para a defesa do interesse público, mas para defender os interesses das transnacionais, colocando-os acima da soberania dos Estados e do bem-estar dos trabalhadores e dos povos.
Pela sua natureza, pelos seus objetivos e pelo seu conteúdo, o CETA, mais do que um simples Acordo comercial, assume-se como um Tratado que procura estabelecer princípios, normas e mecanismos prevalecentes sobre as instituições soberanas de Estados e sua ordem jurídica interna – inserindo-se no objetivo de impor uma ordem jurídica ao nível global que abra caminho ao domínio e à rapina das transnacionais.
Na verdade, o CETA é um TTIP disfarçado, porque cerca de 24 mil empresas dos EUA operam no Canadá, 81 % das companhias canadianas estão ligadas, como subsidiárias, a empresas dos EUA, e perante o impasse em torno do TTIP, o CETA será a sua porta de entrada na União Europeia.
Rejeitamos os tratados de livre comércio e serviços ditados pelos interesses do capital transnacional - como o CETA, o TTIP ou o TISA - e pugnamos por Acordos de cooperação mutuamente vantajosos, que salvaguardem a soberania nacional, que respondam às necessidades e interesses dos povos, que defendam e promovam os direitos sociais, laborais e democráticos, o direito ao desenvolvimento económico e social.
Defendemos que Portugal deve aprofundar as suas relações com outros Estados e povos numa base de cooperação, de respeito mútuo pelos princípios do Estado de direito democrático, pela soberania nacional e pelos objetivos de desenvolvimento e progresso social e económico dos países e dos povos.
Isso significa recusar imposições que nos são feitas de forma antidemocrática, correspondendo aos interesses das multinacionais, e significa também recusar as políticas isolacionistas defendidas por outros.
O PCP desde a primeira hora considerou e defendeu que o CETA deve ser obrigatoriamente sujeito a processo de ratificação pelos Estados, e rejeitado pela Assembleia da República.
Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição da República e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte
Resolução
Nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, a Assembleia da República resolve
Rejeitar a aprovação para ratificação do Acordo Económico e Comercial Global (CETA) entre a União Europeia e o Canadá.
Assembleia da República, 14 de setembro de 2017