I
O Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, coordenado pelos Professores José Miguel Caldas de Almeida e Miguel Xavier, revela que Portugal apresenta uma elevada prevalência de perturbações psiquiátricas. Os dados evidenciam que “mais de 1 em cada 5 dos indivíduos da amostra apresentou uma perturbação psiquiátrica nos 12 meses anteriores à entrevista”. De acordo, ainda, com o referido estudo, “esta prevalência é a segunda mais alta a nível europeu, com um valor quase igual à da Irlanda do Norte, que ocupa o primeiro lugar.”
Uma análise mais detalhada do estudo epidemiológico evidencia que as perturbações de ansiedade “são o grupo que apresenta uma prevalência mais elevada (…) com 16,5%”, seguidas pelas “perturbações depressivas, as perturbações de controlo de impulsos e por abuso de substâncias”.
O estudo revela, igualmente, que são “as mulheres, os grupos de menor de idade, e as pessoas separadas e viúvas [que] apresentam uma maior frequência de perturbações psiquiátricas.”
No tocante ao tratamento, o estudo demonstra que a resposta dos cuidados de saúde é bastante demorada. Como é afirmado, “são particularmente preocupantes os intervalos de atraso médio no início do tratamento”, sendo também dito que há “elevadas taxas de pessoas sem nenhum tratamento”, ou ainda que “quase 65% [das pessoas] com uma perturbação psiquiátrica não teve qualquer tratamento nos 12 meses anteriores” e, nos casos das perturbações mais graves, “ há mais de um terço dos casos que não teve acesso a tratamento”.
No estudo epidemiológico, acima mencionado, não há qualquer referência às perturbações mentais mais graves, nomeadamente às psicoses e, dentro destas, à esquizofrenia. O relatório da Direção Geral de Saúde, publicado em 2004, apontava para a prevalência 1% desta doença em Portugal, ou seja, haveria 10 mil doentes com esquizofrenia em Portugal.
No que respeita aos cuidados médicos prestados, os dados do estudo denotam que são os cuidados de saúde primários que acompanham “mais pessoas com perturbações psiquiátricas”. Porém, o seguimento que é prestado a estes doentes é diferente consoante seja efetuado nos cuidados de saúde primários ou nos cuidados hospitalares. Assim, nos cuidados de saúde primários “cada doente tem, em média, cerca de 3 consultas/ ano [enquanto] nos serviços especializados este número é duas vezes maior”.
Quando a análise incide sobre a “qualidade de cuidados”, os resultados demonstram que “apenas cerca de um terço dos casos recebeu cuidados que cumpriam todos os critérios requeridos para os cuidados serem considerados adequados, sendo a percentagem encontrada nos serviços especializados mais alta do que a encontrada na medicina geral e familiar.” Os autores do estudo alertam para o facto de “além dos problemas de acesso aos cuidados, poderão existir problemas na qualidade nos cuidados prestados em Portugal.”
Por sua vez, o Relatório da Direção-Geral de Saúde relativo a “Portugal – Saúde Mental em Números - 2013” revela que no tocante à capacidade instalada tem-se assistido, fruto das alterações legislativas e da reorganização da rede, à “redução das camas do setor público de 1386, no ano de 2000, para 874 no final de 2012”, sendo que se manteve estável no setor social, ou seja, o total de camas neste setor ronda as “3000”. A disparidade entre o número de camas no setor público e o setor social é confirmada pelo trabalho publicado pela ACSS, como é atestado pela seguinte citação “[o Setor Público] dispõe de 1.042 camas para doentes com demora inferior a 30 dias e 397 para doentes residentes, com demora superior, além de 142 para doentes forenses. [O Setor Social] tem uma capacidade de 3.123 camas, para doentes de qualquer demora de internamento.”
No que respeita às unidades residenciais de reabilitação, a tendência é também para a existência de um maior número de camas no setor social do que no setor público. O setor público tem “uma capacidade instalada de 152 camas (das quais 94 no hospital)” e o setor social dispõe de “ 307 [camas]”.
Acresce, ainda, que em termos de resposta dos cuidados continuados integrados persiste a ausência de resposta a este nível.
Os dados da ACSS apontam para a existência de uma distribuição assimétrica entre o litoral e o interior do país no que às respostas diz respeito havendo um “desvio claro para a faixa litoral, em particular no que se refere às camas disponíveis para o internamento de doentes em fase aguda da sua doença, pondo em causa o princípio da proximidade/acessibilidade”.
No tocante aos profissionais de saúde afetos à área da saúde mental, os vários documentos consultados mostram elevada escassez em todas as profissões (psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, técnicos de reabilitação, terapeutas ocupacionais), porém a insuficiência ganha grande expressão na área da pedopsiquiatria. Estes dados revelam que os rácios exigidos por normas europeias não são alcançados na grande maioria dos serviços e hospitais psiquiátricos.
A penúria de profissionais da área social (assistentes sociais e psicólogos) tem fortes implicações no atraso da resposta da componente de apoio e intervenção comunitária, bem como o afastamento das instituições em relação ao meio social e familiar das pessoas com perturbações mentais e, por conseguinte, no processo de reabilitação psicossocial dos doentes com perturbação psiquiátrica.
Para além do comprometimento da intervenção de cariz social e reabilitativo, a escassez de profissionais de saúde, mormente de psiquiatras e pedopsiquiatras, provoca aumento nos tempos de espera de consultas. O aumento nos “tempos de espera para consulta, mormente após a alta de um episódio de internamento, facilitam os reinternamentos, obstaculizando as probabilidades de recuperação de padrões de vida compatíveis com a dignidade da pessoa portadora de doença mental”.
II
Os dados atrás descritos traçam um cenário muito negativo da realidade da saúde mental em Portugal. Para este cenário concorrem vários fatores, desde logo as políticas de empobrecimento e exploração levadas a cabo pelos sucessivos governos, em particular o atual (PSD/CDS). É a própria Organização Mundial de Saúde que aponta para a correlação entre a pobreza, o desemprego e o aparecimento das perturbações mentais. Assim sendo, os 25% dos portugueses que vivem na pobreza ou estão em risco de pobreza e o mais de 1 milhão de portugueses sem trabalho correm sérios riscos de desenvolverem doença mental.
A associação acima reconhecida é corroborada pelo Parecer elaborado pelo Conselho Nacional de Saúde Mental, publicado em fevereiro de 2013. Neste parecer, é dito que “várias investigações demonstram que o desemprego, o empobrecimento e as distorções familiares desencadeiam ou precipitam problemas de saúde mental, em que se destacam i) a depressão; (ii) o alcoolismo; (iii) o suicídio.” É, ainda, referido que “o desemprego contribui para a depressão e o suicídio e os jovens desempregados têm um maior risco de contrair problemas de saúde mental do que as pessoas jovens que permanecem empregadas.”
Pese embora a evidência científica, o Governo prossegue a política de empobrecimento e exploração dos portugueses e não tem feito um reforço dos cuidados de saúde ao nível da saúde mental. A continuação da política de direita que conduziu o país a esta situação prossegue e está bem plasmada no Orçamento do Estado para 2015.
Mas não são apenas os pobres e os desempregados que têm maior probabilidade de desenvolver doença mental, também os trabalhadores empregados sujeitos a enormes pressões e a vários fatores de stress no local de trabalho estão vulneráveis ao aparecimento de doenças mentais. As situações de pressão e chantagem são cada vez mais frequentes na vida dos trabalhadores portugueses, pelo que é expectável que surjam mais casos de pessoas com perturbação mental nos próximos tempos.
Concorre também para a prevalência da doença mental o facto de as respostas serem escassas e demoradas. A demora dos tratamentos está indelevelmente associada à enorme insuficiência de profissionais de saúde de mental, à assimetria na oferta de serviços de psiquiatria e saúde mental e às dificuldades na acessibilidade aos cuidados de saúde.
Concorre igualmente para os elevados níveis de perturbações mentais a exiguidade ao nível das respostas de reabilitação, como atestam os resultados do estudo da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, publicado em fevereiro de 2014.
Subjacente ao que atrás referimos está a política direcionada para esta área. Pese embora o discurso dos membros da equipa ministerial da saúde esteja eivado de referências à intervenção prioritária, o certo é que o Governo está em funções há três anos e pouco ou nada se evoluiu em termos da saúde mental.
O reduzido investimento na área da saúde mental é algo que tem marcado a história da saúde mental em Portugal. Em 2005, a então Comissão das Comunidades Europeias publicou o Livro Verde, “Melhorar a saúde mental da população, rumo a uma estratégia de saúde mental para a União Europeia”, no qual se afirma que Portugal, à data, era o terceiro país, depois da Eslováquia e da República Checa, que menos gastava em saúde mental. De lá para cá pouco ou nada foi alterado neste domínio, tal como é evidenciado no relatório de atividades da Direção Geral de Saúde 2013. No ano passado, a Direção Geral de Saúde transferiu para o Programa Nacional de Saúde Mental 3,5% dos 10.843.900 euros que são destinados a todos os Planos Nacionais de Saúde, desconhecendo-se os valores de 2014 e os orçamentados para 2015, apesar de já aprovado o Orçamento do Estado.
A Resolução do Conselho de Ministros nº 49/2008, de 6 de março, estabeleceu o Plano de Reestruturação dos Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental. A reestruturação fez-se sobretudo à custa da redução do número de camas no setor público por via do encerramento dos hospitais psiquiátricos. Estes encerramentos foram feitos em nome da desinstitucionalização dos doentes e da sua reabilitação e inserção na comunidade. Sucede, todavia, que o processo de desinstitucionalização não foi acompanhado por uma verdadeira inserção social, nem de uma aposta nos serviços comunitários, nem da definição de orçamento para esta área, assim como não foram tomadas as medidas necessárias em termos dos recursos humanos para os afetar às novas áreas de intervenção, mormente nas residências alternativas, nos serviços na comunidade e nos cuidados individualizados na comunidade para os doentes mentais graves.
Também no ano de 2008 foi publicado o Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016, no qual foram definidos os seguintes objetivos: “ Assegurar o acesso a serviços de saúde mental de qualidade; Promover e proteger os direitos dos doentes; Reduzir o impacto das perturbações mentais e contribuir para a promoção da saúde mental das populações; Promover a descentralização dos serviços de saúde mental, de modo a permitir um melhor acesso e a participação das comunidades, utentes e famílias; Promover a integração dos cuidados de saúde mental no sistema geral de saúde, quer a nível dos cuidados primários quer dos hospitais e dos cuidados continuados, de molde a diminuir a institucionalização dos doentes.” Todavia, de lá para cá pouco ou nada se concretizou deste plano. Sabe-se das intenções da aposta na prevenção mas no concreto as ações são raras e as que existem assumem um carácter pontual e desarticulado entre si.
Muito se fala da articulação com os cuidados de saúde primários mas parece que essa articulação não tem passado de intenções. Importa, neste momento, relembrar o que foi apontado pelo estudo epidemiológico relativamente ao acompanhamento prestado pelos cuidados de saúde primários. Sobre isto, as conclusões são claras: o número de consultas de seguimento nos cuidados de saúde primários é menor do que nos cuidados hospitalares.
Muito se fala da articulação intersectorial, estando previsto o trabalho entre os setores da saúde, do social e da educação, no entanto desconhece-se o que tem sido feito, sendo apenas conhecidas medidas que contrariam o que está explanado no Plano Nacional Vejamos então alguns exemplos.
Diz-se que devem ser desenvolvidas políticas de luta contra a pobreza e a exclusão social, assim como deve haver uma aposta nas medidas de apoio às famílias em risco social ou famílias multi-problemas. Porém, o que temos assistido ao longo destes últimos três anos são políticas que acentuaram a pobreza e a exclusão social - redução do número de trabalhadores desempregados que recebem subsídio de desemprego, redução drástica no número de beneficiários de rendimento social de inserção e, ainda, de crianças que beneficiam de abono de família.
Ainda no plano da prevenção, o Programa Nacional de Saúde Mental avançou com um Plano Nacional de Prevenção do Suicídio em 2013 mas são exíguas as informações sobre as ações que têm sido desenvolvidas.
Podemos até dizer que Portugal dispõe de um Plano Nacional de Saúde Mental bem desenhado do ponto de vista conceptual mas faltam-lhe meios humanos e financeiros para que seja concretizado e os objetivos sejam alcançados, assim como vontade política para o concretizar.
Há muito para fazer pela saúde mental em Portugal e pelos doentes que sofrem de perturbações mentais, pelo que o Estado não se pode eximir das suas responsabilidades. Não podemos aceitar que à “boleia” do processo de desinstitucionalização, do envolvimento da comunidade, dos familiares e associações de doentes o Estado se desresponsabilize de assegurar a prestação de cuidados de saúde e de reabilitação a estes doentes.
III
O PCP partilha da conceção de Jara (2009) que defende que “a saúde mental depende de vários fatores: saúde materno-infantil, da saúde geral da população em todas as idades, dos hábitos e costumes, da qualidade de vida, das relações humanas”, por isso defendemos que intervenção na área da saúde mental implica uma “abordagem abrangente dos problemas de saúde mental”, sendo que essa abordagem implica necessariamente a intervenção ao nível da prevenção, do tratamento e da reabilitação.
Partindo ainda da conceção de saúde mental acima expressa, o PCP defende que a intervenção tem que ser dirigida a todas as faixas etárias e níveis de desenvolvimento sem esquecer as intervenções individuais, familiares e comunitárias. Só assim conseguiremos atingir os objetivos enunciados, ou seja, prevenir, tratar e reabilitar.
Há ainda duas áreas que carecem de investimento: a gerontopsiquiatria e a área dos cuidados continuados integrados. O Decreto-Lei nº 8/2010, de 28 de janeiro e o Decreto-Lei nº 22/2011, de 8 de abril, consagraram os cuidados continuados integrados à saúde mental, no entanto, passados três anos da sua publicação, são escassas as respostas apesar das enormes carências e de muitas promessas. O PCP entende que esta resposta deve ser efetuada preferencialmente pelo setor público, nomeadamente pelo Serviço Nacional de Saúde.
No que respeita à gerontologia, há, hoje, cada vez mais doentes idosos com patologias que têm caracter específico e exigem, por isso, serviços com profissionais com formação específica nesta área.
Pugnamos, também, pela melhoria das respostas que são dirigidas aos doentes e aos seus familiares- respostas sociais, económicas e comunitárias- que lhes possibilitem ultrapassar as enormes dificuldades com que se deparam.
Assim como defendemos maior investimento na área da saúde mental comunitária, sendo que estes serviços devem estar em articulação com os serviços hospitalares e os cuidados de saúde primários.
A par da intervenção, é importante que sejam planeados e realizados estudos que permitam a caracterização das condições de vida dos doentes que sofrem de perturbações mentais e das suas famílias, tal como será importante delinear um plano de monitorização das consequências do empobrecimento, do desemprego, da precariedade laboral ao nível da Psiquiatria e Saúde Mental.
Bem como sejam implementadas medidas de articulação com outros ministérios e organismos públicos tendentes a melhorarem as respostas aos doentes, famílias e cuidadores de doentes com perturbações mentais.
Os portugueses que sofrem de perturbação mental e os seus familiares e os profissionais estão cansados de discursos vãos que colocam a intervenção na saúde mental como prioritária mas que não passam disso mesmo. O que os doentes, os familiares e os profissionais precisam é de medidas concretas, como por exemplo do aumento de dotação orçamental para a saúde mental, para o tratamento, a prevenção e a reabilitação.
A situação da saúde mental em Portugal exige que sejam tomadas medidas urgentes tendentes a reforçar as equipas de profissionais que trabalham nos diferentes em serviços -agudos, ambulatório e da comunidade; que sejam introduzidas melhorias no trabalho clínico dos profissionais, tanto nos serviços hospitalares, nos cuidados de saúde mental e na comunidade; que sejam Incentivadas as parcerias com associações de familiares e utentes; o reforço da área comunitária e o investimento na área da saúde mental.
Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projeto de
Resolução
A Assembleia da República recomenda ao Governo que:
1. Reforce as equipas que trabalham na área da saúde mental, através da abertura de procedimentos concursais para a contratação dos profissionais de saúde em falta (médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais);
2. Reforce o número de profissionais da área do serviço social, mediante a abertura de concursos públicos, integrando-os nos departamentos de saúde mental dos hospitais centrais, nos cuidados de saúde primários e nos cuidados continuados integrados de molde a que seja feita a articulação entre os cuidados médicos, a intervenção comunitária e a intervenção com as famílias;
3. Reforce o número de psicólogos, por via da abertura de procedimentos concursais, integrando-nos nos vários níveis de prestação de cuidados de saúde mental;
4. Reforce e valorize o trabalho de cooperação entre os diversos serviços públicos que trabalham no domínio da saúde mental, as famílias e associações de utentes com doença psiquiátrica;
5. Reforce as verbas para a área a saúde mental;
6. Concretize as respostas ao nível dos cuidados continuados, sendo que estas respostas devem ser asseguradas pelo Serviço Nacional de Saúde;
7. Reforço da área de intervenção comunitária potencializadora da reabilitação psicossocial dos doentes com perturbação psiquiátrica;
8. Alargue a resposta na área da pedopsiquiatria a mais hospitais;
9. Reforce as equipas dos serviços de pedopsiquiatria já existentes com psicólogos e assistentes sociais;
10. Desenvolva e alargue a resposta na área da gerontopsiquiatria;
11. Proceda ao alargamento das respostas em termos de saúde mental a todo o território;
12. Promova a realização de estudos acerca das condições de vida dos doentes com doença mental e suas famílias;
13. Trace um plano de monitorização das consequências do empobrecimento, do desemprego e da precariedade laboral ao nível da Psiquiatria e Saúde Mental.
Palácio de São Bento, em 12 de dezembro de 2014