(36.ª alteração ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras)
Exposição de motivos
O papel das empresas de auditoria externa tem sido questionado, particularmente após o colapso de grandes gigantes bancários e sociedades financeiras. Em praticamente todos os casos de destruição de bancos de grandes dimensões há um elemento comum: a avalização das contas por parte dos Revisores Oficiais de Contas – empresas de auditoria externa – com poucos ou mesmo sem ênfases e reservas. O caso do BES e do GES é paradigmático e ilustra perfeitamente qual foi o papel destas empresas ao longo dos tempos.
Tal como o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português denunciou ao longo dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do GES, os problemas internos do Banco e do Grupo, bem como a promiscuidade entre a empresa holding de topo e a ES Resources (empresa do ramo não financeiro que viria depois a originar a Rio Forte), o BES e suas sucursais estrangeiras estavam desde há muito tempo identificados por intervenções de auditores externos. Essa informação, contudo, não foi disponibilizada ao Banco de Portugal, nem à CMVM, ao longo de mais de uma década.
Quando o PCP requereu o relatório de auditoria ao BES realizado pela Price-Waterhouse-Coopers no ano de 2001, junto da Comissão de Inquérito, fê-lo por saber que esse relatório referia boa parte dos problemas que vieram a desenvolver-se e a agravar-se até que o BES fosse consumido pelos seus próprios métodos, exaurido pela especulação e pela atribuição de crédito sem avaliação de risco a empresas do próprio Grupo.
Há dois factos que relevam para a justificação de motivos deste Projeto de Lei apresentado agora pelo Grupo Parlamentar do PCP: i) a PWC não disponibilizou tal relatório, depois alegando desconhecer a sua existência; ii) a PWC nunca comunicou, apesar de estar obrigada por lei, ao Banco de Portugal, as irregularidades processuais na concessão de crédito verificadas no BES.
Só quando a existência do relatório foi divulgada na comunicação social, apesar de o PCP ter invocado o seu conteúdo vezes sem conta, a PWC se lembrou de que talvez existisse guardado em formato papel nos seus arquivos. Só nessa altura, a PWC disponibiliza à comissão de inquérito o referido relatório.
Importa ainda acrescentar que, apesar de identificados pela PWC vários aspectos que mereceram reparo no relatório de 2001 – reparos apenas relatados à administração do BES e nunca comunicados ao Banco de Portugal e mais tarde retirados da versão final do Relatório – tais ou semelhantes problemas nunca vieram depois, ao longo de 13 anos, a ser detetados ou apontados pela KPMG. Resumindo: a PWC detetou os problemas e comunicou ao BES mas não ao supervisor, depois passou a auditora do ramo não financeiro do GES, cujos problemas conhecia por saber que o BES atribuía crédito a essas empresas sem avaliação de risco e sem garantias. Contudo, aprovou sempre os relatórios e contas dos exercícios auditados. Ao mesmo tempo, a KPMG assume a auditoria do ramo financeiro e diz não ter sido alertada para problemas pela PWC. Ao longo de 13 anos nunca deteta os problemas – pelo menos não os aponta – apesar de a PWC ser a auditora do ramo não financeiro, cujas contas vieram a impor o default por acumulação de dívida, rendas e juros, principalmente junto precisamente do BES. É uma teia urdida com mestria para fazer parecer credível o que na verdade é uma gigantesca máquina de apropriação de recursos e de agiotagem sobre o trabalho e a produção.
Há outros elementos que devem convocar uma séria reflexão sobre o papel e as normas que regem o funcionamento das auditoras externas: i) as auditoras estão obrigadas a passar a informação a outras que venham a desempenhar o papel de revisor oficial de contas, findo o serviço das primeiras (a PWC diz que informou a KPMG, a KPMG diz que nada lhe foi dito e que o BES até foi recomendado como cliente); ii) as auditoras devem ser agentes de fiscalização externa dos exercícios e das práticas das instituições financeiras, contudo, aquilo que se verifica na realidade é que essas empresas funcionam como agências de formação e reservatórios de quadros para a própria banca, além de funcionarem, não como fiscais externos, mas como consultores dos bancos.
O inquérito ao caso BES/GES não deixa muita margem para dúvidas. As empresas de auditoria externa são um instrumento manipulado para ocultar e validar as práticas ilegítimas ou mesmo criminosas do sistema financeiro, orientado para a busca de formas de acumulação e concentração de riqueza, partindo da especulação e agiotagem, independentemente da sua licitude e dos interesses individuais ou coletivos que afetam. O trabalho da comissão também mostrou que várias soluções encontradas em outros países não garantem maior confiança no trabalho dessas empresas. Desde a bolsa rotativa à rotatividade obrigatória, várias soluções apenas constituem mecanismos de camuflagem daquela que é a verdadeira natureza dos grandes grupos monopolistas. Ora, se como temos visto, o domínio do capital monopolista afeta os próprios estados, mina governos, captura supervisores e autoridades públicas, outra coisa não seria de esperar, independentemente da “transparência”, “independência”, “autonomia” e “seriedade” com que trabalhem. Tal como a estabilidade do sistema financeiro não pode depender do bom ou mau carácter de cada banqueiro, a fiscalização do sistema financeiro não pode depender da “competência” e “boa-vontade” de grupos económicos e sociedades detentoras de empresas de auditoria externa.
A rotatividade de quadros dirigentes e técnicos entre auditoras e banca mostra bem como as próprias administrações bancárias entendem o trabalho dessas empresas: como uma espécie de ante-câmaras para o trabalho no sistema financeiro. Ninguém melhor do que um responsável de uma empresa de auditoria pode ajudar um banco a mascarar ilegalidades, a branquear procedimentos, a conceber redes e teias de empresas, off-shores e entidades de finalidades especiais (geralmente referidos como veículos – Special Purpose Entities). Este percurso de quadros é agravado pelo facto de o auditado ser cliente do auditor e ambos serem sociedades de natureza privada, concorrendo para o mesmo objetivo: lucros e resultados. Nenhuma destas entidades persegue o interesse público, nem tal é o seu desígnio. Cabe ao Estado, contudo, garantir que em matérias fundamentais para o funcionamento da economia e da vida coletiva, não pode sobrepor-se o lucro ao interesse coletivo, o interesse dos grandes acionistas ou dos grandes sócios ao interesse público.
O Partido Comunista Português apresenta igualmente um Projeto de Lei com vista ao controlo público da banca nacional que se articula com o presente projeto na medida em que, apesar de não serem dependentes um do outro, se reforçam mutuamente. A modificação do papel das auditoras externas implica um novo papel para o Banco de Portugal e também esse papel está previsto no presente diploma. O PCP propõe agora que o Banco de Portugal não possa ter a sua avaliação das contas dos bancos dependente do recurso ao trabalho de empresas privadas, obrigando o Banco a realizar auditorias próprias e com recursos próprios periodicamente, com frequência mínima de 2 anos, independentemente dos relatórios e das auditorias realizadas pelas empresas de auditoria externa.
Essa modificação introduz um novo garante de confiança no sistema de supervisão. Contudo, isso não tolhe a evidente conclusão de que só o controlo público da Banca pode minimizar os riscos das operações bancárias e do funcionamento do sistema financeiro e salvaguardar o interesse público na definição das políticas de crédito, alavancas que são também da economia.
O presente Projeto de Lei determina igualmente que o Banco de Portugal deixa de poder recorrer a entidades externas para realizar auditorias forenses. É, no entendimento do PCP, um dos sinais mais evidentes da falsificação constante com que depositantes e contribuintes são confrontados, o facto de serem empresas privadasa realizar auditorias de âmbito forense, por vezes as mesmas que estiveram envolvidas na ocultação dos processos que são objeto da própria auditoria.
O Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português reafirma a necessidade de uma política orientada para o reforço da segurança no sistema financeiro português de facto e não, como a atual e sugerida por diversos Grupos Parlamentares, orientada para a ilusão dessa segurança.
Tal política, por resultar dos problemas gerados pela banca e por convergir objetivamente para o cumprimento da Constituição de uma política alternativa que projete no futuro os valores Abril, que afirme a soberania nacional, altere as condições de pagamento e contração da dívida, dinamize a economia e a produção nacional, valorize os salários e pensões, promova a garantia de serviços públicos de qualidade, constitui um imperativo patriótico e é uma opção fundamental para a concretização de uma política ao serviço do povo e do país.
Assim, nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português apresenta o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei reforça as obrigações de supervisão pelo Banco de Portugal e a transparência na realização de auditorias a instituições de crédito e sociedades financeiras, procedendo à 36.ª alteração do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, com alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 246/95, de 14 de setembro, 232/96, de 5 de dezembro, 222/99, de 22 de junho, 250/2000, de 13 de outubro, 285/2001, de 3 de novembro, 201/2002, de 26 de setembro, 319/2002, de 28 de dezembro, 252/2003, de 17 de outubro, 145/2006, de 31 de julho, 104/2007, de 3 de abril, 357-A/2007, de 31 de outubro, 1/2008, de 3 de janeiro, 126/2008, de 21 de julho e 211-A/2008, de 3 de novembro, pela Lei n.º 28/2009, de 19 de junho, pelo Decreto-Lei n.º 162/2009, de 20 de julho, pela Lei n.º 94/2009, de 1 de setembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 317/2009, de 30 de outubro, 52/2010, de 26 de maio e 71/2010, de 18 de junho, pela Lei n.º 36/2010, de 2 de setembro, pelo Decreto-Lei n.º 140-A/2010, de 30 de dezembro, pela Lei n.º 46/2011, de 24 de junho, pelos Decretos-Leis n.ºs 88/2011, de 20 de julho, 119/2011, de 26 de dezembro, 31-A/2012, de 10 de fevereiro e 242/2012, de 7 de novembro, pela Lei n.º 64/2012, de 24 de dezembro, pelos Decretos Leis n.ºs 18/2013, de 6 fevereiro, 63-A/2013, de 10 de maio, 114-A/2014, de 1 de agosto, 114-B/2014, de 4 de agosto e 157/2014, de 24 de outubro e pelas Leis n.ºs 16/2015, de 24 de fevereiro e 23-A/2015, de 26 de março, que estabelece o Regime GEral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
Artigo 2.º
Alteração ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras
O artigo 121.º do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, com as alterações introduzidas, passa a ter seguinte redação:
«Artigo 121.º
Revisores oficiais de contas e auditores externos
1. […].
2. […].
3. […].
4. […].
5. (novo) Às empresas que prestam serviço de auditoria externa a instituições de crédito e sociedade financeiras é vedada a atividade no âmbito da consultadoria.
6. (novo) Para efeitos do número anterior, a mesma marca não pode ser utilizada, ainda que por empresas distintas, para auditoria externa e consultadoria.
7. (novo) Os quadros dirigentes, os parceiros e os sócios, bem como os técnicos responsáveis por auditorias a instituições de crédito no âmbito de auditoria externa não podem prestar serviços, direta ou indiretamente, a instituição financeira antes de decorrido um período de 4 anos após cessação daquelas funções ou da qualidade de parceiro ou sócio.»
Artigo 3.º
Aditamento ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras
É aditado o artigo 121.º A ao Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, com alterações introduzidas, com a seguinte redação:
«Artigo 121.º A
Autonomia e independência da supervisão
1. Sem prejuízo da utilização pelo Banco de Portugal de relatórios de auditorias realizadas por auditores externos acreditados, o Banco de Portugal realiza por meios próprios auditorias periódicas, de 2 em 2 anos, a todas as instituições de crédito e sociedades financeiras no seu perímetro de supervisão.
2. Sem prejuízo da possibilidade de o Banco de Portugal poder contratar e sub-contratar a realização de auditorias por entidades acreditadas, a autoridade de supervisão deve, a todos os momentos, dispor da capacidade própria de meios técnicos, humanos e financeiros necessários para realizar as auditorias legalmente obrigatórias.
3. As auditorias forenses são realizadas exclusivamente com recurso a meios próprios do Banco de Portugal, ficando vedada a contratação ou sub-contratação exteriores.»
Artigo 4.º
Regulamentação e dotação de meios
O Governo, após audição do Banco de Portugal, determina as medidas legislativas, administrativas, orçamentais ou outras que se revelem necessárias ao cumprimento do disposto na presente lei, nomeadamente com vista ao reforço dos meios técnicos e humanos do Banco de Portugal.
Assembleia da República, em 22 de maio de 2015