Projecto de Resolução N.º 204/XIII/1.ª

Recomenda que sejam definidos os princípios para a Reorganização Hospitalar e a Revogação da Portaria nº 82/2014, de 10 de abril

Recomenda que sejam definidos os princípios para a Reorganização Hospitalar e a Revogação da Portaria nº 82/2014, de 10 de abril

O XIX Governo Constitucional (PSD/ CDS) inscreveu no seu programa a intenção de promover a reorganização hospitalar, sendo assumido que a mesma seria feita, a, “através de uma visão integrada e mais racional do sistema de prestação que permita maior equidade territorial e uma gestão mais eficiente dos recursos humanos, incluindo concentração de serviços, potenciada pela maior exigência na qualificação da gestão e na responsabilização das equipas, em todos os domínios, pelo desempenho alcançado”. Com este objetivo o executivo pretendia responder também a uma das medidas negociadas com a troica internacional e vertida no dito “memorando de entendimento”.

A reorganização hospitalar defendida pelo anterior executivo restringia-se à redução de despesa pública e da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Redução que representa a diminuição de serviços e valências hospitalares e na redução de profissionais de saúde, e não para melhorar a eficiência do SNS, como os membros do Governo de então não pararam de apregoar. Esta medida, tal como foi desenhada pelo executivo PSD/CDS, inseria-se numa estratégia economicista e ideológica. Economicista porque pretendia reduzir a despesa pública em saúde a todo o custo independentemente das consequências na prestação de cuidados de saúde aos utentes e na saúde dos portugueses. Ideológico porque o objetivo sempre foi o de reduzir os serviços públicos e promover a privatização da saúde, tornando-a num negócio altamente lucrativo para os grandes grupos económicos.

Durante os quatro anos, o Governo multiplicou a publicação de despachos e orientações no âmbito da reorganização hospitalar. Vários foram os estudos elaborados, e também muita sonegação de informação sobre as propostas concretas para cada hospital. Apesar de não existir um estudo que sustente técnica e cientificamente a reorganização da rede hospitalar a nível nacional (pelo menos publicamente), o Governo PSD/CDS não se coibiu de promover a concentração e redução de serviços e valências hospitalares, nomeadamente, no Médio Tejo, no Oeste, em Coimbra, no Algarve ou a integração da Maternidade Alfredo da Costa e do Hospital Curry Cabral no Centro Hospitalar Lisboa Central.

Em abril de 2014, foi publicada a Portaria nº 82/2014, de 10 de abril, que procede à classificação dos hospitais em quatro grupos. Mas na prática esta Portaria impõe a desclassificação e desqualificação da esmagadora maioria dos hospitais, através da redução de serviços, de valências e especialidades e de profissionais de saúde, conduzindo ao despedimento de milhares de trabalhadores.

A publicação da Portaria 82/2014, de 10 abril, inseria-se na estratégia política do Governo PSD/CDS de destruição do Serviço Nacional de Saúde e de privatização da saúde. Reduz-se a capacidade de resposta na rede pública, para se abrir no privado e assegurar “clientes” para os grandes hospitais privados e chorudos lucros aos grupos económicos à custa da saúde das pessoas.

A portaria prevê o encerramento de 24 maternidades pelo facto de não integrar a especialidade de obstetrícia nos hospitais classificados no Grupo I; a eliminação das especialidades de endocrinologia e estomatologia dos hospitais públicos; o encerramento do Instituto Oftalmológico Dr. Gama Pinto; o encerramento dos serviços de cirurgia cardiotorácica nos Hospitais de Gaia e de Santa Cruz; o encerramento de serviços de cirurgia pediátrica ficando apenas esta valência circunscrita a Porto, Lisboa e Coimbra. A contestação à Portaria teve e continua a ter expressão de norte a sul do país. Populações, profissionais de saúde e autarcas têm-se oposto à redução de serviços e valências hospitalares.

Nos últimos anos foram dados passos significativos no sentido da privatização dos hospitais públicos, com a introdução do modelo de gestão empresarial, onde a vertente economicista e de mercantilização da saúde ganha uma maior dimensão, enquanto a vertente clínica é progressivamente desvalorizada. Primeiro foi a constituição dos hospitais como sociedades anónimas (SA), depois vieram as entidades públicas empresariais (EPE) e simultaneamente foi-se desenvolvimento do modelo de gestão clínica em parcerias público privadas (PPP).

No entanto, o Governo PSD/CDS-PP quis ir mais longe na privatização dos hospitais do SNS, de que a entrega dos hospitais do SNS à gestão das Misericórdias é um claro exemplo. Aliás, o conceito de separar o financiador do prestador significa que para o Estado remete-se a função de regulador e de financiador da atividade privada com os recursos públicos, cabendo aos privados a prestação dos cuidados de saúde. É um extraordinário negócio, os portugueses pagam e os privados acumulam os lucros, numa área onde não existe risco, porque “os clientes” (na perspetiva dos grupos económicos e financeiros) estão assegurados, assim como a atividade assistencial.

O modelo empresarial da gestão hospitalar foi apresentado pelos seus defensores como sendo mais eficiente do ponto de vista financeiro e mais eficaz na prestação de cuidados de saúde, desvalorizando a gestão direta da Administração Pública. Dizia-se que com este modelo se iria pôr fim às derrapagens, aos gastos supérfluos e que reduziriam as dívidas. Substituiu-se os profissionais de saúde por gestores para a fazer a gestão dos hospitais. Porém, ao fim de uma década de gestão hospitalar empresarial verificamos que nenhum dos objetivos foi alcançado. A dívida continuou a não se vislumbrou vantagens do ponto de vista da melhoria da gestão hospitalar.

Mantém-se o modelo de contratualização da produção assistencial, a política de subfinanciamento crónico dos hospitais, de não resolução das ineficiências estruturais e de organização, sem a realização de investimentos nas infraestruturas que permita melhorar a qualidade dos cuidados de saúde prestados e otimizar a utilização dos recursos públicos.

A transformação dos hospitais públicos do SNS em entidades SA, posteriormente EPE possibilitou em grande linha a retirada de direitos aos trabalhadores e contribuiu para a desregulamentação das carreiras dos profissionais de saúde. A retirada de direitos dos profissionais de saúde constituía também um dos objetivos da empresarialização dos hospitais. Foram introduzidos os contratos individuais de trabalho com condições de trabalho diferentes dos contratos de trabalho em funções públicas – reduziram salários, aumentaram o horário de trabalho, entre outros.

Quatro anos de Governo PSD/CDS e as consequências nefastas das opções políticas estão bem à vista e fazem-se também sentir, e de uma forma cada vez mais acentuada, na degradação generalizada do funcionamento dos serviços públicos de saúde como resultado do aprofundamento de uma política de subfinanciamento do SNS, os elevados tempos de espera para consultas de especialidade e de cirurgias ou a enorme carência de profissionais de saúde, são alguns exemplos. Contribui também para a degradação da prestação de cuidados a redução drástica no número de profissionais de saúde adstritos aos cuidados de saúde.

As medidas tomadas pelo Governo anterior dificultaram a acessibilidade dos utentes aos cuidados de saúde quer por via do encerramento, concentrações e fusões de serviços e valências nos cuidados hospitalares, quer por via do encerramento de extensões e postos de saúde e serviços de atendimento permanente nos cuidados de saúde primários.

A redução do número de camas de agudos nos hospitais constitui mais uma medida que se integra na redução da capacidade de resposta do SNS. O número de camas de agudos por habitantes em Portugal é inferior à realidade de outros países europeus. E entre 2011 e 2013 foram reduzidas 944 camas de agudos no país.

Segundo os dados do INE referente ao número de hospitais diz que existiam 226 (menos 3 do que em 2012) hospitais, sendo que 119 eram hospitais oficiais e 107 hospitais privados. A estes números deve-se acrescentar mais três hospitais (hospital de S. José em Fafe, Anadia e Serpa) decorrentes do processo de entrega dos hospitais do SNS às misericórdias levadas a cabo pelo anterior Governo (PSD/CDS).

A degradação da prestação de cuidados de saúde tem, igualmente, tradução na não realização de obras nas unidades de saúde que delas necessitam, bem como na não construção de unidades hospitalares em regiões altamente carenciadas.
A consagração do Serviço Nacional de Saúde permitiu que Portugal se aproximasse, em termos dos indicadores de saúde, dos países mais avançados. O SNS veio progressivamente garantir a todos o acesso a cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação, bem como a criação de uma eficiente cobertura nos cuidados de saúde primários e hospitalares de todo o país. Porém, sucessivos Governos, particularmente o Governo PSD/CDS-PP, desferiu ataques severos ao SNS e, por conseguinte, ao direito à saúde, direito constitucionalmente consagrado.

O Grupo Parlamentar do PCP entende que é necessário reformular a rede hospitalar, de forma a garantir a cobertura da totalidade do território e com capacidade de resposta às necessidades das populações, dando corpo à necessidade de ser cumprida a coesão territorial

Neste sentido, propomos que a reorganização da rede hospitalar obedeça a um conjunto de princípios onde as questões de saúde prevaleçam em detrimento das questões de natureza exclusivamente economicista, designadamente a articulação com os restantes níveis de cuidados de saúde (primários, continuados e saúde pública), assente no utente, que otimize os recursos públicos e que tenha em consideração as características da população que abrange, assim como na gestão dos hospitais sejam consagrados conselhos consultivos constituídos por representantes dos utentes, dos profissionais e dos órgãos autárquicos, assegurando assim o direito à saúde consagrado na Constituição da República Portuguesa e a valorização dos profissionais de saúde.

Só o SNS está em condições de garantir a universalidade, a acessibilidade e a qualidade e eficiência dos cuidados de saúde prestados às populações. Para tal é imprescindível a revogação da Portaria nº82/2014, de 10 abril; o fim dos hospitais empresa e a integração de todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde no setor público administrativo; o fim do processo de transferência de hospitais públicos para as misericórdias e a garantia do respeito pelos direitos dos trabalhadores.

Assim, nos termos da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte resolução:

Resolução

A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição da República, recomendar ao Governo:

1. Que sejam suspensos todos os processos que se traduzam na desclassificação, redução, concentração e ou encerramento de serviços ou valências dos hospitais, centros hospitalares e unidades locais de saúde, designadamente o que resulta da Portaria nº82/2014, de 10 de abril.

2. Que seja revogada a Portaria nº 82/2014, de 10 de abril.

3. Que a reorganização da rede hospitalar atenda aos seguintes princípios:

a) será feita em articulação com os cuidados de saúde primários, os cuidados de saúde continuados e a saúde pública, assegurando a total cobertura do território nacional;
b) deve assentar no utente, assegurando a acessibilidade à saúde tal como consagrado na Constituição da República Portuguesa;
c) deve otimizar os recursos existentes, sem que tal implique a diminuição e qualidade dos serviços prestados;
d) deve considerar níveis de referenciação baseados no nível de complexidade das patologias, na idoneidade e vocação para a investigação e ensino, na proximidade e capacidade de resposta dos diferentes estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde;
e) deve ser tido em conta as características da região em que cada unidade hospitalar se insere, designadamente a orografia, as acessibilidades e as condições sociais e económica.
4. Que a reorganização hospitalar no domínio da gestão consagre conselhos consultivos constituídos por representantes dos utentes, dos profissionais e dos órgãos autárquicos;

5. Que a reorganização hospitalar seja precedida de uma ampla discussão pública, envolvendo os profissionais de saúde e as suas organizações representativas, as autarquias e as populações.

6. Que se proceda à integração dos hospitais do serviço Nacional de Saúde no Setor Público Administrativo estando concluída no prazo máximo de dois anos.

7. Que todos os profissionais de saúde que desempenham funções permanentes nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde são integrados em carreiras com vínculo à Administração Pública, com contratos de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.

Assembleia da República, em 31 de março de 2016

  • Saúde
  • Reorganização Hospitalar