Projecto de Resolução N.º 1264/XII/4.ª

Recomenda ao Governo a criação de um programa de prevenção e diagnóstico da Hepatite C e adoção de medidas que garantam a independência e soberania do Estado Português na área do medicamento

Recomenda ao Governo a criação de um programa de prevenção e diagnóstico da Hepatite C e adoção de medidas que garantam a independência e soberania do Estado Português na área do medicamento

I
A hepatite C é uma doença inflamatória do fígado, que nos casos mais avançados pode evoluir para falência hepática, cirrose e ou carcinoma hepático.
A Organização Mundial de Saúde considera o vírus da hepatite C (VHC) como um grave problema de saúde pública, devido à elevada probabilidade de a doença crónica evoluir para estádios mais graves.
Estima-se que cerca de 150 milhões de pessoas a nível mundial estejam infetadas pelo VHC, dos quais cerca de 9 milhões são europeus.
Em Portugal estima-se que 1% a 1,5% da população esteja infetada pelo VHC, o que corresponde a cerca de 100 a 150 mil pessoas. No entanto só 13 mil estão diagnosticados nos estabelecimentos de saúde em Portugal. A maioria desconhece que é portadora do vírus.
A hepatite C é uma doença assintomática, que se caracteriza por uma evolução lenta. Durante 10, 20, 30 ou até 40 anos, os sintomas podem não se manifestar.
Estima-se que cerca de 20% das pessoas infetadas pelo VHC recuperam espontaneamente, enquanto os 80% evoluem para hepatite crónica e destes, cerca de 20%, evoluem para estádios mais graves, dando origem a cirrose ou a cancro do fígado.
Em Portugal, morrem anualmente 900 a 1200 pessoas devido a complicações relacionadas com a hepatite C.
O VHC transmite-se por via sanguínea. As pessoas que foram sujeitas a transfusões de sangue antes de 1992, combatentes em países africanos, toxicodependentes e ou pessoas que usaram material não esterilizado, como seringas, agulhas, material para a realização de tatuagens, piercings ou objetos de higiene de uso pessoal, constituem as principais situações de risco. Deve-se ainda dar atenção a outras formas de transmissão nomeadamente: interrupção voluntária da gravidez, acupunctura, manicuras e barbearias.
Não há uma vacina para a hepatite C que evite o contágio da doença. No entanto é possível prevenir a transmissão do VHC, adotando um conjunto de comportamentos, designadamente: evitar o contacto com sangue contaminado e não partilhar objetos de uso pessoal, utilizar luvas no contacto com sangue, feridas ou objetos com sangue, evitar reutilizar seringas na preparação e consumo de drogas e utilizar preservativos nas relações sexuais.

II
Uma política de prevenção com vista à redução do número de novas infeções por VHC em Portugal implicaria um conjunto de medidas muito vasto, de regulamentação e fiscalização, particularmente sobre atividades que impliquem, pela sua natureza ou pelo tipo de instrumentos utilizados, riscos para o profissional e para o utente/cliente. As características do vírus possibilitam-lhe uma resistência ao contacto com o ar muito assinalável e a simples utilização de instrumentos que tenham estado em contacto com sangue infetado sem a devida posterior esterilização é um meio de contágio. Estúdios de cabeleireiros, manicures, de tatuagem ou de piercings, realização de atividades similares em meio prisional, ou em casa e sem as devidas precauções, são ainda hoje importantes fatores no número de novas infeções por VHC.

Contudo, a prevalência de VHC em Portugal pode situar-se numa percentagem assustadora de 1,5% da população, particularmente tendo em conta a presença portuguesa no continente africano no passado. A prevalência da hepatite C pode, portanto, ser dez vezes mais do que a diagnosticada, na medida em que a natureza assintomática da infeção não favorece diagnósticos nos primeiros anos após a infeção.
É uma epidemia oculta, em Portugal e no mundo, cujo impacto na saúde pública e na sociedade é, no entanto, demasiado pesado (estima-se que o custo anual com a hepatite C ascenda a cerca de 70 milhões de euros, tendo maior expressão nos estádios mais graves da doença). Portugal, à semelhança do que outros países já fizeram, deve criar um programa nacional de prevenção e diagnóstico das infeções por VHC que permita, não só fazer diminuir os novos casos, como assegurar aos portadores diagnosticados o tratamento adequado, permitindo a melhor qualidade de vida possível e a diminuição de complicações devidas à infeção por VHC.
Cirroses, carcinomas hepáticos, e doenças correlacionadas podem ser substancialmente minimizados em Portugal se a Hepatite C for combatida de forma eficaz.
Portanto, prevenir e promover a saúde é da maior importância para combater a transmissão do VHC. Não há dúvidas que a prevenção traz mais ganhos do ponto de vista de saúde, mas também do ponto de vista da utilização eficiente dos recursos públicos. Sai mais caro não prevenir.

III
O tratamento convencional da hepatite C consiste na combinação de o interferão peguilado com a ribavirina, cuja taxa de sucesso pode atingir cerca de 60%. Em determinadas situações este tratamento pode ainda ser combinado com medicamentos antivirais, como o boceprevir ou telaprevir. Esta associação terapêutica permite taxas de sucesso maiores, mas os efeitos adversos também são mais graves. Para os casos que evoluem para os estádios mais graves da doença (cirrose ou cancro hepático) pode-se fazer um transplante de fígado, embora o vírus possa voltar a manifestar-se mesmo depois do transplante.
Em janeiro de 2014, a Agência Europeia do Medicamento aprovou um novo medicamento, o sofosbuvir (da empresa Gilead). Este medicamento tem uma taxa de cura acima de 90% e não tem efeitos adversos. A partir daí, desenvolveu-se o processo de avaliação pelo Infarmed, tendo sido concluído no início de fevereiro de 2015.
A 15 de janeiro de 2015, a Agência Europeia do medicamento aprovou um novo medicamento (da empresa AbbVie), que consiste numa associação terapêutica de ombitasvir, paritprevir, ritonavir com dasabuvir, cuja taxa de cura é de 97% a 100%. Foi ainda anunciado que já terá dado entrada no Infarmed a documentação para a avaliação fármaco-económica desta nova associação de medicamentos.
E há mais uma empresa (a MSD) que também está a desenvolver um novo medicamento, o grazoprevir/elbasvir para a hepatite C, mas que está num estado mais atrasado. Estão ainda a decorrer a fase II e III do ensaio clínico, sendo objetivo da empresa ter em Portugal autorização de introdução no mercado no início de 2016.

IV
Durante meses, o acesso ao novo medicamento para a hepatite C, o sofosbuvir, foi extremamente restrito e somente ao abrigo da autorização de utilização especial (AUE). Mas mesmo assim as limitações e constrangimentos persistiam, devido aos cortes no financiamento dos hospitais e à Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, assim como ao facto de a farmacêutica poder ditar o preço que entender.
Para o PCP a vida humana não tem preço mas parece que para o Governo tem. Perante afirmações do Primeiro-Ministro, Passos Coelho, que deixaram a inaceitável sugestão de que a vida das pessoas pode ter um preço que o Estado se recusa a pagar, muitos doentes e profissionais questionaram: para o Governo quanto custa uma vida humana?
Segundo informações vindas a público, há 631 doentes em tratamento, dos quais 375 de forma gratuita (200 em ensaios clínicos e 175 em programas de acesso precoce). Até ao início de fevereiro estavam somente a ser tratados 94 doentes com sofosbuvir ao abrigo das AUE, muito longe dos 150 tratamentos anunciados pelo Governo.
A inacessibilidade dos doentes com hepatite C ao novo medicamento traduziu-se num enorme descontentamento e indignação. Os doentes não compreendem como é que havendo uma cura para a hepatite C, o Serviço Nacional de Saúde não lhes assegurou o tratamento.
Ainda por cima quando outras soluções, além de não garantirem a cura, podem ser mais onerosas. Por exemplo, um doente com hepatite C, que necessite de transplante hepático, exigirá a prestação de mais cuidados de saúde, o que corresponderá a custos mais avultados para o Estado do que o tratamento mais adequado, mesmo que seja com os novos medicamentos, que garante maior possibilidade de cura do doente.
Há mais de um ano que o Governo estava em negociações com a empresa, para alcançar um acordo para a disponibilização deste medicamento em Portugal. Na sequência da mediatização do falecimento de uma doente com hepatite C e da interpelação ao Ministro da Saúde por um doente com hepatite C em desespero, o Governo conseguiu alcançar num dia o que não conseguiu em largos meses de negociação.
Há responsabilidades que têm de ser apuradas e que não podem morrer solteiras, nomeadamente porque é que havia doentes que precisavam deste fármaco sem que tenham sido efetuados os respetivos pedidos, porque é que havia doentes para os quais o pedido foi efetuado mas que aguardavam há imenso tempo por uma resposta e porque é que havia ainda doentes para os quais o pedido foi efetuado e autorizado mas que continuavam sem acesso ao medicamento.
É preciso também compreender como é que o Governo conseguiu alcançar um acordo agora e não o conseguiu mais cedo.
Segundo o anúncio do Governo, o acordo prevê o tratamento de todos os doentes com hepatite C diagnosticados, o Estado paga por “doente curado”, envolve a disponibilização de dois medicamentos (o sofosbuvir e o harvoni que é uma combinação do sofosbuvir com o ledispavir), o preço é cerca de metade do preço inicial e tem um prazo de vigência de dois anos. Foi também anunciado que haverá um financiamento adicional e que os encargos serão suportados pela Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) e pelos hospitais.
Esperamos que a disponibilização do novo medicamento aos doentes seja célere. Como também esperamos que haja equidade na disponibilização do novo medicamento em todas as regiões e hospitais que tenham doentes com hepatite C, independentemente de se localizarem no litoral, no interior ou num grande centro urbano. É preciso que se garanta efetivamente a todos os doentes o acesso ao tratamento mais adequado. Iremos acompanhar os futuros desenvolvimentos.

V
O Governo anunciou o acordo para a disponibilização do novo medicamento para a hepatite C, mas não resolveu a questão de fundo que esteve subjacente em todo o processo, que se prende com a subalternização do Estado Português à indústria farmacêutica. É também a soberania do país que está seriamente comprometida. Ainda mais quando no nosso país, a produção está circunscrita a um número muito reduzido de empresas nacionais.
Deixar nas mãos da indústria farmacêutica a investigação e a inovação na área do medicamento, dá um enormíssimo “poder” à indústria para especular com a saúde e a vida das pessoas. A indústria farmacêutica não está preocupada com a saúde das pessoas nem com o seu bem-estar, o seu único interesse é poder retirar a maior rentabilidade financeira dos seus produtos (neste caso, os produtos são os medicamentos).
Os preços impostos pela indústria farmacêutica para os novos fármacos são totalmente arbitrários. Se em Portugal, no caso concreto da hepatite C, a farmacêutica impunha um preço inicial de 48 mil euros, em Espanha rondava os 25 mil euros e ao Egipto é de cerca de 700 euros. Se o preço de produção deste medicamento ascende até 600 euros (segundo informação que consta de um ofício do Centro Hospitalar de São João dirigido à Comissão Parlamentar de Saúde), os lucros que a empresa obtém com os preços que impõe são totalmente obscenos. Isto é ainda mais grave, quando veio a público que a investigação deste novo medicamento teve financiamentos públicos da França e dos Estados Unidos da América.
No futuro, certamente o país será novamente confrontado com situações similares à da hepatite C porque, como já se referiu, o problema de fundo mantém-se – o Estado está refém dos interesses da indústria farmacêutica. É óbvio que surgirão novos medicamentos para outras patologias, eficazes do ponto de vista clínico, com preços proibitivos impostos pelas farmacêuticas.
Portanto, é preciso adotar políticas que ponham fim ao monopólio da indústria farmacêutica na investigação e produção de medicamentos. Neste sentido é urgente que o Governo tome medidas de criação de infraestruturas a nível nacional, que conduzam à modernização e inovação do país, capacitando-o para responder às exigências de saúde dos utentes. Estas medidas passam necessariamente pelo reforço do investimento na investigação pública na área do medicamento e na produção de medicamentos.
Reconhecemos que este é um caminho longo, que dará frutos a médio e longo prazo, mas que é preciso começar a trilhá-lo, sob pena da situação de dependência se agravar.
A curto prazo, porque os doentes têm de ter acesso ao tratamento mais adequado face à sua situação de saúde, é preciso tomar medidas que defendam os interesses dos utentes e os interesses do Serviço Nacional de Saúde.
Cada vez mais vozes colocam como hipótese a possibilidade de retirar a patente às empresas, quando está em causa a saúde pública. Compreendemos que esta é uma opção complexa e que acarreta muitos riscos, mas que importa analisar e estudar com maior profundidade.
Os acordos internacionais que versam sobre a propriedade intelectual preveem a possibilidade de retirar a patente quando há questões de saúde pública que se colocam.
Entretanto a Declaração de Doha veio reforçar as questões relacionadas com a saúde pública.
Para o PCP a saúde pública é prioritária, pelo que os interesses particulares não se podem sobrepor aos interesses públicos. É com base neste pressuposto que entendemos que esta hipótese não deve ser excluída na defesa dos interesses nacionais e do Serviço Nacional de Saúde, por isso propomos que seja analisada e estudada.
Nesta matéria o governo tem de tomar uma atitude firme e determinada em defesa dos interesses nacionais.

Assim, nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte
Resolução
A Assembleia da República recomenda ao Governo, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição que:
1. Crie um Programa Nacional de Prevenção e Diagnóstico da Hepatite C que consista:
1.1. No desenvolvimento de planos de ações regulares de prevenção primária e secundária;
1.2. No reforço de programas com cobertura nacional no âmbito da minimização de danos e redução de riscos, como por exemplo, o alargamento do programa da troca de seringas;
1.3. Na disponibilização gratuita de testes a anticorpos ao VHC nos cuidados de saúde primários a quem solicite;
1.4. Na dinamização de uma campanha de diagnóstico, sem custos para os utentes e de participação voluntária, dirigida especialmente a grupos de risco identificados e definidos clinicamente;
1.5. Na adequada dotação de meios humanos, técnicos e financeiros para as ações de prevenção e diagnóstico do VHC, em articulação com os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares.
2. Seja criado um Grupo de Trabalho interdisciplinar no âmbito da Direção Geral de Saúde que acompanhe e monitorize o Programa Nacional de Prevenção e Diagnóstico da Hepatite C.
3. Proceda à criação de um programa nacional que garanta a independência e a soberania na área do medicamento, assente nas seguintes vertentes:
3.1. Reforce o investimento na modernização e na inovação científica e tecnológica, que capacite o país na área do medicamento, na vertente da investigação e da produção;
3.2. Reforce o investimento na investigação pública na área do medicamento, tendo em conta os estudos epidemiológicos da população portuguesa e as prioridades identificadas no Serviço Nacional de Saúde;
3.3. Crie as infraestruturas adequadas que permitam a produção de medicamentos essenciais para responder às necessidades dos utentes e do Serviço nacional de saúde.
3.4. Para responder às necessidades de investigação e de produção na área do medicamento, crie o Laboratório Nacional do Medicamento, tendo como percussor o Laboratório Militar.
4. Estude a hipótese de retirada de patente a medicamentos quando cientificamente haja evidência de que são mais eficazes do que os existentes e para os quais não existam alternativas terapêuticas equivalentes nos casos em que as suas condições de comercialização conflituem com critérios de proteção da saúde ou da vida dos doentes, avaliando todas as suas eventuais implicações, tendo em conta as normas internacionais, os interesses nacionais e a necessária proteção da saúde pública.

Assembleia da República, em 13 de fevereiro de 2015

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