&quot;Prostituição e tráfico de mulheres - Novas faces de uma velha escravatura&quot; Debate<br />Intervenção de Sylviane Ainardi, deputada

Já não se pode considerar a prostituição e o tráfico de mulheres e de crianças para exploração sexual como questões marginais. São hoje verdadeiras questões de sociedade que se põem ao nível nacional, europeu e internacional. As respostas devem igualmente ser encaradas a estes diferentes níveis. Não se poderá, por exemplo, travar uma luta eficaz contra o tráfico de mulheres e de crianças encarando-o unicamente a nível nacional. A cooperação entre os Estados e as forças policiais, a harmonização das legislações, são condições incontornáveis. É essencial que todos os actores e responsáveis políticos envolvidos não percam de vista que as respostas são também europeias e internacionais. Queria insistir logo à partida nesta dimensão, tanto mais quanto sou deputada europeia. Mas a minha colega Marianne Erikson, que é muito activa na Comissão dos direitos das mulheres do Parlamento Europeu, poderá falar-vos melhor do que eu dos obstáculos mas também dos progressos obtidos nesta matéria no seio desta instituição. Pelo meu lado, vou essencialmente evocar a situação em França, particularmente a atitude do nosso governo de direita em relação a estas questões, os debates que se desenvolvem na sociedade francesa e a forma como as abordamos no PCF. O número de pessoas prostituídas aumentou consideravelmente desde há alguns anos em França, em Paris mas também todas as grandes cidades de província. Sete mil pessoas prostituídas em Paris. De 15 000 a 20 000 em França, de acordo com as estimativas. E as características desta prostituição alteraram-se. Das pessoas prostituídas em Paris, 70% são de origem estrangeira. Vêm dos países do Leste, da Rússia, da África. Estas jovens mulheres, estes homens, são vítimas de redes mafiosas que exploram o seu corpo como uma mercadoria. De acordo com Europol, a exploração de uma pessoa rende entre 75 000 e 150 000 euros por ano. Sujeitas a violências terríveis pelos seus exploradores, estas vítimas são privadas de todos os direitos, de toda a dignidade. Avalia-se em cerca de 500 000 as que hoje em dia se prostituem na Europa. Este tráfico não poupa as crianças, bem pelo contrário. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, no mundo mais de 8 milhões de menores seriam vítimas dos traficantes de crianças. Em Paris, dezenas de crianças — que às vezes não têm sequer 12 anos — prostituem-se todas as noites em pleno coração da cidade (Place Dauphine). São originárias, na sua maioria, da Europa de Leste, às vezes do Norte de África. No entanto, a lei proíbe-o, dado que os clientes de prostitutas/os menores são condenados penalmente pela lei francesa. Quero precisar que apenas recentemente é que esta condenação foi alargada aos clientes de prostitutos/as entre os 15 e os 18 anos. Ora, de acordo com a UNICEF e a Convenção dos direitos da criança, uma criança é qualquer pessoa com menos de 18 anos. Além disso, qualquer criança, mesmo não sendo de nacionalidade francesa, tem direito a protecção no território francês. Mas somos forçados a constatar que, apesar dos efectivos da polícia, das leis, dos alertas das associações, da Convenção dos Direitos da Criança, que a França ratificou, esta situação intolerável persiste. Ainda no que diz respeito às crianças, o mercado da pornografia infantil representaria, apenas nos EUA, cerca de 5 mil milhões de dólares! Insisto voluntariamente na prostituição juvenil, porque ela é esquecida com demasiada frequência. Evidentemente, a priori é mais simples que todos estejam de acordo para condenar, de um ponto de vista ético, esta prostituição, que não pode deixar de revoltar. Mas, na prática, ela perdura, incluindo na Europa. Sabe-se que crianças da Europa de Leste, frequentemente crianças da rua no seu país, são vendidas e enviadas para os nossos passeios. E que se faz concretamente? Desde há mais de um ano, multiplicam-se em França, nos meios de comunicação social e no mundo político, os debates em torno da prostituição. O projecto de lei sobre a segurança interna de Nicolas Sarkozy, contra o qual se ergueram todas as associações de terreno e os partidos de esquerda, foi apesar de tudo votado no fim 2002. Propõe, no seu artigo 18, a criminalização das pessoas prostituídas e a expulsão das pessoas prostituídas estrangeiras em nome da segurança pública. É uma abordagem muito securitária e repressiva da questão, que, e já voltaremos a falar disso, não deu nenhuns resultados até agora. Esta abordagem está em completa contradição com a posição oficialmente abolicionista da França, que ratificou a Convenção da ONU sobre o assunto em 1960. De um ponto de vista ético, a lei Sarkozy cristaliza a repressão sobre as pessoas prostituídas em vez de lhes assegurar apoio, possibilidades de reinserção e protecção para as vítimas das redes mafiosas. Esta lei não prevê nada ou muito pouco em relação às redes de proxenetismo. Assistiu-se também em França ao facto de presidentes de câmaras municipais publicarem posturas que proíbem a prostituição no centro da cidade. Estas medidas demagógicas que visam «agradar» a certos moradores que se têm manifestado contra os incómodos ligados à presença de pessoas prostituídas não soluciona em nada os problemas. Simplesmente, deslocam-nos hipocritamente. Ao mesmo tempo, outras correntes em França reclamam a regulamentação da prostituição, que seria assimilável a um ofício como qualquer outro, segundo o modelo holandês. A grande pergunta é: «existe liberdade de prostituir-se?». Esta tendência ganhou amplitude desde há alguns meses com a publicação de numerosos artigos de mulheres intelectuais que reivindicam como um direito fundamental a liberdade de as mulheres se prostituírem. Acusam também as abolicionistas e as feministas opostas a esta visão de serem «retrógradas» e «moralistas». Por último, o debate sobre a penalização do cliente regressa também periodicamente, sem que surja realmente uma opinião maioritária a este respeito. Foi neste contexto complicado, em que as posições são frequentemente exacerbadas, que o Partido Comunista Francês decidiu empenhar-se nestas questões, em ligação com associações, profissionais, eleitos/as... Porque estamos convencidos de que estas questões de sociedade reclamam respostas políticas. Porque a prostituição e o tráfico nos dizem respeito a nós como comunistas. Elas são sinónimas de relações de dominação, de desigualdades de desenvolvimento, de aflição social. Elas apresentam também uma imagem da globalização neoliberal e da mercantilização generalizada que combatemos. Ou seja, uma total ausência de consideração pelo ser humano desde que possa render dinheiro. Com efeito, reflectir sobre as questões do tráfico e da prostituição conduz-nos realmente a interrogarmo-nos sobre o tipo de sociedade que queremos construir, sobre o mundo no qual queremos viver. E decidimos trabalhar «por um mundo sem exploração sexual», que é também o nome da rede do PCF encarregada destas questões. Utopia? Estamos convencidos de que, para além das controvérsias estéreis e dos recuos, há respostas novas a encontrar e a aplicar politicamente. Trabalhamos em ligação, como já disse, com associações, com profissionais, com eleitos/as. Já co-elaborámos diversas propostas que foram objecto de uma proposta de lei apresentada pelos nossos grupos na Assembleia Nacional e no Senado em fins de 2002. Vou tentar rapidamente dar-vos elementos sobre a nossa abordagem e as nossas propostas. Recusamos qualquer posição securitária ou moralista. Pensamos que é necessário colocar a tónica na prevenção, na informação, na dissuasão, na responsabilização e na reinserção. Insistimos igualmente em denunciar e fazer recuar as causas da prostituição e do tráfico. Elas são diversas: precariedade social e afectiva, desigualdades de desenvolvimento entre países, política de imigração restritiva e, evidentemente, patriarcado. No que diz respeito às vítimas, é portanto necessário reforçar os direitos, as medidas de protecção e os meios de reinserção oferecidos às pessoas prostituídas, nomeadamente com a concessão de um documento de estadia temporária às pessoas prostituídas estrangeiras desde que iniciem um percurso de reinserção, tenham ou não denunciado os seus exploradores. Este documento deve ser acompanhado de uma autorização de trabalho para que as pessoas prostituídas estejam em condições de seguir uma formação. Esta proposta é muito importante, porque põe o dedo sobre a responsabilidade e a hipocrisia das nossas políticas securitárias de imigração, que não permitem a estas jovens mulheres escaparem. Como fazê-lo sem protecção e sem outro meio para sobreviver, tendo por única perspectiva ser expulso para o seu país e voltar a cair directamente no circuito mafioso? Propomos igualmente um melhor acompanhamento das vítimas em termos de acesso aos tratamentos, com mais meios atribuídos às associações de terreno, e a instauração de um dispositivo vinculativo para os poderes públicos em termos de oferta de tratamentos e de reinserção a esta população. Actualmente, o que acontece é o inverso, visto que as verbas atribuídas às associações de terreno diminuíram 80% para 2003! No que diz respeito ao cliente, estamos em fase de estudo e o debate não está fechado. Seja como for, desejamos uma verdadeira política de responsabilização e de prevenção dirigida ao comprador efectivo ou potencial de «serviços sexuais», visando alterar as representações da sociedade sobre a prostituição e mais em geral sobre as representações sexuais e as dominações ligadas ao género. Isto poderia ser o início de um processo que se encaminhe para a penalização. Mas o debate não está ainda decidido. Porque ao nível dos eleitos/as, das associações, há uma divisão entre as que são a favor (principalmente as associações feministas) e as que se interrogam sobre as consequências efectivas de tal medida. A questão é complexa, porque as respostas devem ser encaradas em ligação com a evolução da nossa sociedade, evitando qualquer posição demagógica ou mesmo simplista. Ora acontece que a penalização do cliente é frequentemente apresentada como A solução para atacar o sistema prostitucional. Se podemos estar de acordo com o facto de criar um interdito social por meio de tal lei, que teria um carácter sobretudo «educativo», podemos interrogar-nos sobre a sua pertinência tendo em conta o estado da sociedade francesa sobre o assunto. Quando da promulgação da sua lei, a Suécia, sempre citada como exemplo, tinha atrás de si anos de política de educação sexual nas escolas e liceus, anos de luta contra as violências em relação às mulheres, e toda uma cultura de igualdade homens/mulheres que nós não temos. Passemos talvez primeiro por esta educação no nosso país? Neste sentido, somos favoráveis a uma educação sexual que privilegie o respeito do corpo do outro e do seu próprio corpo, a noção de desejo sexual compartilhado, e que alerte para as realidades da prostituição. Sobretudo, a penalização não pode ser a única medida proposta. Prevenção sob múltiplas formas, reinserção, denúncia de todas as causas que estão na origem da manutenção do sistema prostitucional, responsabilização da sociedade, abordagem progressista da política de imigração, cooperação com os países «emissores», todos estes aspectos (e outros) devem ser encarados global e coerentemente se quisermos instaurar uma política eficaz. No que se refere, por último, aos proxenetas (terceiro actor do sistema prostitucional), propomos medidas de repressão muito fortes que visem exclusivamente os que lucram com a prostituição e os tráficos. Mas é necessário ir muito para além das declarações de intenções, atacando o sistema do dinheiro que está na base destes tráficos, ligados por sua vez às redes de branqueamento de dinheiro. Isto implica lutar contra o sigilo bancário e os paraísos fiscais. Exige igualmente uma cooperação efectiva entre os Estados e as polícias. Nada disso existe — ou bem pouco — na política aplicada por Sarkozy desde há cerca de um ano. No entanto, ele anunciou que a sua lei tinha como objectivo, paralelamente à criminalização das pessoas prostituídas, a luta contra os proxenetas! É bastante interessante examinar o balanço da aplicação desta lei tão denunciada pelas associações e pelos progressistas. Todos os peritos, magistrados, associações, denunciam este balanço. Estas críticas são largamente difundidas pela imprensa francesa desde há algumas semanas. Com efeito, conhecem-se já demasiado bem os efeitos negativos da lei Sarkozy: «derrapagens» da polícia constatadas aquando das rusgas de pessoas prostituídas, violências cada vez mais graves a que são expostas as pessoas prostituídas por parte dos clientes... Mas a lei Sarkozy que reprime a oferta passiva defronta-se também com numerosas dificuldades jurídicas de aplicação. A perplexidade dos tribunais quanto à aplicação efectiva das medidas contidas na lei provoca diferenças de tratamento muito pronunciadas em função dos lugares de condenação. Em Nice, por exemplo, o procurador privilegia a prevenção e o trabalho com as associações de terreno. Já em Bordéus existe uma orientação cada vez mais acentuada para uma repressão severa das pessoas prostituídas, ou mesmo dos clientes. Como se vê, esta lei deixa todo o lugar ao arbítrio quando à sua aplicação. Além disso, não fez diminuir o número de pessoas prostituídas. Elas estão apenas menos visíveis, mais vulneráveis e mais privadas de direitos... Perante este contexto difícil em França, o PCF vai continuar a trabalhar como se comprometeu. Mas creio que é também realmente necessária a cooperação entre todas aquelas e aqueles que lutam por um mundo sem exploração sexual, nos países membros, mas também noutros lugares do mundo. É por isso que estou realmente muito satisfeita com este encontro, que nos permite trocar e confrontar as nossas experiências e ver como, juntos, poderemos ser mais fortes. No mesmo sentido, em Novembro próximo terá lugar em Saint-Denis o Fórum Social Europeu. No dia 12, como prólogo ao FSE propriamente dito, realizar-se-á a Assembleia Europeia para os Direitos das Mulheres. Será um momento forte de encontros e de intercâmbio com o objectivo de tornar visíveis as resistências e reivindicações das mulheres na Europa. Participarão numerosíssimas associações de toda a Europa, da Europa de Leste, da Rússia... E um dos temas prioritários é precisamente a prostituição e o tráfico. Há muito a fazer, e, tendo em vista o aumento sem precedentes do tráfico de mulheres e de crianças no mundo, tendo em vista a tendência generalizada para conceber a prostituição como uma profissão e «regulamentá-la» (de acordo com a proposta do BIT!), tendo em vista por último a via «alternativa» aplicada as mais das vezes, que é a da repressão e do regresso à ordem moral, poderíamos desencorajar-nos. Mas eu estou convencida, pelo contrário, de que mais do que nunca há que apresentar respostas progressistas, novas. Há mulheres, há associações que nos nossos países e noutros lugares lutam em condições frequentemente muito difíceis, sem qualquer ajuda. Todas e todos podemos fazer recuar a prostituição e o tráfico e participar assim na construção de um mundo um pouco mais humano. Muito obrigada.

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