I
Da desresponsabilização do Estado e modelo de financiamento do ensino profissional
A Escola Pública é uma das mais importantes conquistas de Abril. Na Constituição da República Portuguesa (CRP) e na Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) está consagrada como um instrumento de emancipação individual e coletiva, com um papel determinante na vida de cada cidadão e no desenvolvimento do país.
Contudo, sucessivos governos PS, PSD,CDS, e em particular o atual Governo, têm desenvolvido uma política de desmantelamento da Escola Pública e do seu papel emancipador. Aliás, o Guião da dita “Reforma do Estado” apresentado pelo Governo PSD/CDS exclui a Educação das funções sociais do Estado.
Esta opção de desresponsabilização do Estado – concretizada através de cortes brutais no investimento público e de transferência para o sector privado de fundos públicos – tem tido impacto brutal na degradação da qualidade pedagógica; na desvalorização curricular e na fragilização da formação da cultura integral do indivíduo; na desvalorização socio laboral da profissão docente e no recurso ilegal à precariedade na contratação dos professores, funcionários e técnicos; no favorecimento da escola privada e do “negócio” da educação.
Para além disto, à margem da LBSE o Governo PSD/CDS criou vias paralelas de conclusão da escolaridade obrigatória, direcionando os estudantes em função das suas condições socioeconómicas para o ensino dual ou cursos de prosseguimento de estudos, negando objetivamente a igualdade de oportunidades e a possibilidade de acesso ao ensino superior em condições adequadas.
No que se refere à realidade do ensino profissional, podemos concluir assistimos a uma tripla desresponsabilização do Estado: na inexistência de uma rede pública de escolas profissionais, substituição do financiamento às escolas públicas secundárias de verbas do Orçamento Geral do Estado por fundos comunitários e atrasos inaceitáveis na transferência dos fundos e financiamento às escolas profissionais privadas e cooperativas.
O atual ano letivo – 2014/2015 – fica marcado pelos piores motivos por uma situação insustentável que resulta da opção de sucessivos governos PS, PSD e CDS pelo modelo de financiamento ao ensino profissional assente não em verbas regulares do Orçamento de Estado mas no financiamento através do Fundo Social Europeu.
Esta opção traz graves problemas para o normal funcionamento destas instituições uma vez que as regras deste Programa (ao nível dos prazos, dos montantes, das formas de pagamento através de reembolso, entre outras) não se coadunam com as necessidades regulares de gestão das escolas e com os compromissos assumidos perante professores e alunos. Por exemplo, este Programa apenas financia as horas efetivas de formação lecionadas por um professor, sendo que as escolas são obrigadas a suportar todos os restantes custos associados ao contrato de trabalho do professor (subsídios de férias, entre outros) e de funcionamento das escolas.
Ao longo deste processo e até à data, muitas escolas continuam com salários em atraso e outras dívidas. Esta situação é ainda agravada pelo facto de existir um hiato de tempo entre o encerramento do POPH e a entrada do novo Programa - o Programa Operacional de Capital Humano (POCH) em Janeiro de 2015, cujas regras já tendo sido publicadas, a mudança do POPH para o POCH não foi devidamente acautelada, deixando as escolas sem previsão orçamental.
As escolas profissionais sofreram atrasos superiores a 5 meses, muitas funcionando sem o reembolso do saldo final relativo ao ano letivo 2013/2014, nem o adiantamento (15%) relativo ao presente ano letivo, o que é insustentável para as escolas, para os estudantes e para os profissionais que resistem às condições de precaridade e de salários em atraso.
O regime de financiamento destas escolas, na sua maioria propriedade de entidades privadas e cooperativas, não assegura a garantia dos apoios a todos os estudantes que necessitam, desde logo porque reduz o financiamento em caso de abandono escolar dos alunos, degradando ainda mais a capacidade de responder a este problema.
Acresce que, estas escolas sofreram ainda um corte de 5% no ano letivo anterior e atrasos na transferência das verbas do Ministério da Educação e Ciência (MEC), no caso das escolas de Lisboa Vale do Tejo e Algarve no presente ano letivo. Outra das principais dificuldades é a limitação da comparticipação do MEC no âmbito da Ação Social Escolar e a transferência destes custos para as escolas.
II
Da elitização do acesso ao conhecimento e negação da igualdade de oportunidades aos estudantes
O anterior Governo do PS, no âmbito da Estratégia 2020, assumiu o compromisso de encaminhar 50% dos estudantes para as vias profissionalizantes. O atual Governo PSD/CDS tem vindo a aprofundar este caminho de desvalorização de uma via unificada do Sistema Educativo e de triagem dos alunos em função da sua origem de classe e das condições sócio económicas das famílias, ao mesmo tempo que retira à Escola a capacidade de orientar e acompanhar de forma justa e igualitária todos os alunos.
No Relatório do Conselho Nacional de Educação (CNE) – Estado da Educação 2013 – pode-se ler que “atualmente as ofertas formativas destinadas à população jovem que integram alguma componente qualificante ou de preparação para a empregabilidade e que proporcionam até ao nível 4 de qualificação (Portaria nº 728/2009, de 23 de julho) configuram quatro modalidades, a saber: Cursos de Aprendizagem; Cursos Profissionais; Cursos de Ensino Artístico Especializado; Cursos de Educação e Formação e Cursos Vocacionais”.
Em 2001 cerca de 30 mil jovens estudavam em cursos profissionais no secundário, em 2012 esse número aumentou para 113 mil estudantes. Desde 2005, altura em que a oferta de cursos profissionais foi generalizada às escolas secundárias e básicas públicas, que o número de estudantes que integram estas vias profissionalizantes tem crescido de maneira constante e acentuada. Em 2014 pode verificar-se que 42,4% dos alunos do ensino secundário se encontram inscritos nas vias profissionalizantes.
A realidade tem confirmado as profundas preocupações do PCP quanto ao caminho de desvalorização do ensino profissional que o anterior Governo PS e o atual Governo PSD/CDS tem imposto ao país, designadamente através da aposta nos Cursos Vocacionais, de nível básico e secundário.
Ao invés de apostar na valorização dos cursos profissionais e de projetos educativos muito interessantes existentes no país em diversas Escolas Profissionais, opta por transpor para as escolas públicas secundárias os cursos profissionais e por essa via reduzir investimento à Escola Pública, substituindo financiamento do Orçamento Geral do Estado por verbas do Fundo Social Europeu. Também através do “ensino vocacional” e do aumento significativo do período destinado à formação em contexto de trabalho, “desloca” os estudantes do principal espaço de educação e formação – a Escola – para as empresas, servindo os interesses imediatos destas no que refere a mão-de-obra disponível e gratuita mas desvalorizando profunda e deliberadamente a formação curricular dos jovens.
A via de prosseguimento dos estudos é a única que assegura um currículo de que prepara os estudantes para o acesso ao Ensino Superior, proporcionando uma formação integral e integrada. O ensino vocacional e dual, pelo contrário, corporiza a conceção de que na escolaridade obrigatória o aluno deve ter sobretudo formação profissional em detrimento do acesso ao conhecimento nas suas múltiplas vertentes.
Os alunos das vias profissionalizantes, que em muitos casos têm aulas em espaços mais desvalorizados das escolas, não têm apoio para todo o material escolar necessário nas componentes práticas das várias disciplinas, estão sujeitos a uma carga horária excessiva e a um regime de faltas mais exigente.
Nalguns casos, quando têm módulos em atraso, são obrigados a pagar uma taxa para a recuperação dos mesmos, e são obrigados a recorrer, em muitos casos, a fotocópias, por não existirem manuais escolares disponíveis para determinadas disciplinas, ficando à responsabilidade do estudante a sua aquisição.
Quando se candidatam a exame nacional, para efeitos de acesso ao ensino superior, são sujeitos à resolução de um exame cuja matriz curricular que em nada se assemelha à matriz curricular da sua área de formação e muitas vezes são obrigados a conciliar a realização da formação em contexto de trabalho com a realização do exame nacional.
Quanto à formação em contexto de trabalho, a realidade tem provado em muitos casos, desadequação do Plano de estágio à formação dos alunos, traduzindo-se muitas vezes na ocupação de postos de trabalho permanentes e não em “prática supervisionada de formação”. Na verdade, muitas empresas têm vindo através destes estágios a suprir necessidades permanentes através de trabalho não remunerado.
No âmbito deste projeto é particularmente importante relembrar o que Einstein escreveu: "oponho-me à ideia de que a escola deve ensinar diretamente aqueles conhecimentos específicos que viremos a empregar mais tarde na nossa vida ativa. As exigências da vida são demasiadamente variadas para que seja viável esse ensino específico e direto. Parece-me, à parte isso, condenável tratar o indivíduo como ferramenta morta. A escola deve ter como objetivo que os seus alunos saiam dela com uma personalidade harmoniosamente formada, e não como meros especialistas. Isto é verdade até para as escolas técnicas que formam alunos para profissões claramente definidas".
II
Da avaliação contínua
O sistema de avaliação e acesso ao ensino superior em vigor radica na predominância da avaliação sumativa externa (exame nacional) e na desvalorização da avaliação contínua.
A opção política de valorização da avaliação contínua exige, por princípio, assegurar a existência de condições materiais e humanas em todas as escolas, de acordo com os projetos pedagógicos construídos pelas comunidades escolares, e exige também a criação de condições de disponibilização de profissionais (professores, funcionários, psicólogos, técnicos de ciências da educação) que contribuam para a melhoria do processo de ensino-aprendizagem e, com isso, para a inclusão efetiva de todos os estudantes, independentemente das suas condições económicas, sociais e culturais. Também a disponibilização de condições materiais (equipamentos desportivos, bibliotecas apetrechadas, espaços polidesportivos) pode ter um papel determinante para a capacidade de cada escola desenvolver através do Desporto Escolar, Projetos Artísticos de Escola e outros, e com isto envolver e estimular a participação dos estudantes, reforçando estratégias de aquisição de conhecimentos, reflexão e espírito crítico.
A valorização da avaliação contínua exige por isso uma conceção da Escola como espaço de Educação, promotora de estratégias pedagógicas e de espaços educativos formais e não formais, refletida na organização e funcionamento escolar cujos resultados serão aferidos nos momentos de avaliação, interna e externa.
A valorização da avaliação contínua exige por isso uma política de investimento público, valorização socio-laboral dos seus profissionais, criação de condições de estabilidade e previsibilidade na organização e desenvolvimento do trabalho, em tudo contrárias às que têm vindo a ser impostas por sucessivos governos PS, PSD e CDS. Poderemos mesmo afirmar que a desvalorização da avaliação contínua é parte integrante de uma estratégia mais profunda de desfiguração e descredibilização da Escola Pública e de favorecimento da Escola Privada e de uma perspetiva elitista de acesso ao conhecimento e à cultura.
O atual sistema de avaliação baseado nos exames nacionais tem um caráter eliminatório no acesso ao ensino superior, pois deles faz depender o cálculo da média e a ordenação dos candidatos. Ao longo do tempo tem vindo a generalizar-se a imposição das Provas Nacionais e Exames Nacionais, tendo o atual Governo PSD/CDS criado o exame de 4º ano e 6º ano e a Prova Nacional do 9º ano. Estas provas e exames nacionais têm um peso de 30% sobre a nota final de cada disciplina, podendo ir até 60% caso seja uma disciplina específica.
Nos últimos anos, com o aumento brutal dos custos com a educação, este regime tem vindo a revelar a sua perversão no agravamento das desigualdades, pois num contexto de aumento do número de alunos por turma, de degradação das condições pedagógicas e de acompanhamento dos alunos e de empobrecimento das famílias, o recurso a metodologias de apoio ao estudo fora do espaço da escola é cada vez mais um recurso a que a maior parte dos estudantes necessita de aceder, sem conseguir. E não será errado concluir que os alunos da Escola Privada recorrem menos a este tipo de apoios extraescolares porque têm dentro da escola um tipo de relação, condições e instrumentos pedagógicos que permitem um ensino mais individualizado que é negado na Escola Pública.
Este modelo de avaliação e de acesso ao ensino superior é contrário à lógica de escola pública inclusiva pois ignora as condições económicas, sociais e culturais dos estudantes e das suas famílias, não assegurando condições pedagógicas correspondentes às exigências que coloca.
Desde 2008 que o número de candidatos ao Ensino Superior tem vindo a diminuir, tendo no ano letivo 2014/2015 registado um valor mínimo histórico. Isto prova que o desafio que se coloca hoje ao sistema público de ensino não é o da criação e agravamento das barreiras eliminatórias mas sim o da eliminação das barreiras culturais, económicas e sociais que impedem os estudantes de estudar no ensino superior. Tal exige a valorização da avaliação contínua mas também assegurar a gratuitidade da educação e o reforço da ação social escolar direta (bolsas) e indireta (alimentação, transportes, alojamento, materiais escolares).
Podemos por isso concluir que a avaliação contínua e a sua valorização para efeito de acesso ao ensino superior são em si mesmas instrumentos de construção da Escola Pública como um espaço de superação das desigualdades económicas, sociais e culturais.
Assim, nos termos legais e regimentais previstos, os deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte:
Projeto de Resolução
A Assembleia da República resolve, nos termos da alínea b) do art.º 156.º da Constituição da República Portuguesa, recomendar ao Governo que:
1 - Promova um amplo e profundo debate nacional sobre a necessidade de valorização do ensino profissional em profunda ligação com as necessidades de desenvolvimento económico e social do país;
2 - Diminua o número de alunos por turma nas turmas do ensino profissional, única forma de garantir um efetivo ensino técnico especializado;
3 - Garanta um regime de faltas, carga horária e de férias em condições de igualdade com os estudantes da via de prosseguimento de estudos;
4 - Garanta uma estrutura regulamentada de apoio à realização dos estágios curriculares, assegurando a todos os estudantes o pagamento das despesas de transporte, alimentação, alojamento e equipamentos;
5 - Valorize os conteúdos curriculares do ensino profissional, designadamente na componente sociocultural e científica;
6 - Diminua a duração da formação em contexto de trabalho;
7 - Assegure a efetiva gratuitidade do ensino profissional, proibindo a cobrança de taxas, custos e emolumentos;
8 - Assegure um modelo de financiamento público assente no Orçamento Geral do Estado, que responda às necessidades de orçamento de funcionamento permanente, designadamente despesas com pessoal, despesas fixas de funcionamento, equipamentos e apoio aos estudantes;
9 - Para efeitos de acesso ao ensino superior, considere os alunos do ensino profissional como internos e não como externos, assegurando que as classificações dos exames resultam da média ponderada com a classificação interna final a que se reportam, com um peso final de 30%;
10 - Crie um grupo de trabalho, com representação democrática alargada, que estude soluções de acesso ao ensino superior baseadas na gradual extinção da avaliação sumativa externa e na valorização da avaliação contínua no processo pedagógico;
11 - Revogue os “Cursos Vocacionais”.
Assembleia da República, em 28 de maio de 2015
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