Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,
Hoje, 17 de maio, comemora-se o Dia Internacional Contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia. Se é verdade que em Portugal são enormes os passos dados para pôr fim à discriminação, registando-se diversos avanços no plano legislativo, avanços que contaram com o contributo do PCP (da autodeterminação de género, casamento, à adoção), também é verdade que na vida persistem inúmeras discriminações que importa combater. No dia-a-dia, as pessoas transexuais e intersexo, continuam a sentir múltiplas formas de discriminação no trabalho, na família, na sociedade e da vida.
Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei e ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, etnia, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, como determina a Constituição, tem de ser uma realidade na vida.
A luta contra as discriminações em função da orientação sexual ou de identidade de género exige a mudança de mentalidades na sociedade, que elimine as práticas e atitudes que ofendem a dignidade humana. Exige legislação que atenda aos seus direitos específicos num caminho que tem vindo a ser construído. Mas estes cidadãos necessitam para além disso/ ou ao mesmo tempo o concurso das políticas económicas e sociais que não os abandonem às suas circunstâncias, ao contexto social em que se inserem e às condições que lhe são proporcionadas que lhes garantam qualidade de vida e os direitos que a todos assistem.
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,
Uma das questões que nos é colocada a pronunciar prende-se com o registo civil. Nos últimos anos houve uma evolução nos procedimentos a adotar no registo civil. Com a aprovação da Lei 7/2011, o procedimento de mudança de sexo e do nome próprio no registo civil passou a ser um ato administrativo. Até então, a única forma de alterar o sexo e nome próprio era através de um processo judicial, o que constituía uma intromissão na intimidade na vida privada e um desrespeito.
Entretanto a Lei 38/2018, veio dispensar a realização de tratamentos e de intervenção cirúrgica para a mudança de sexo e do nome próprio no registo civil, bastando a apresentação do requerimento para iniciar o procedimento para esse efeito.
As iniciativas em discussão, propõem, não na lei de autodeterminação de género, a lei 38/2018, mas no Código do Registo Civil, que seja removida a referência da identificação do nome com o sexo, nomeadamente no momento do nascimento.
Há diversos aspetos que importa ter presente na apreciação desta proposta.
O Registo Civil serve para identificar as pessoas perante a sociedade. Essa identificação deve ser feita em condições que assegurem a fé pública da informação que dele consta. Os elementos de identificação do Registo devem limitar-se àquilo que é objetivo e verificável na identificação das pessoas e nas suas relações jurídicas relevantes em termos sociais (sexo, filiação, estado civil, etc) e não devem comportar qualquer elemento relativo a relações sociais, familiares ou outras que não tenham relevância para aquilo que o Registo se destina a atestar. E mesmo em relação àquilo que se considere relevante pode questionar-se se a informação que consta do Registo deve ser toda transportada para os documentos de identificação.
Considerando as discussões que têm vindo a ser feitas sobre estas matérias talvez o caminho a percorrer possa mesmo ser esse, o de estruturar o registo civil de forma a que dele constem os aspetos de identificação dos cidadãos que sejam biologicamente factuais , permitindo o acesso a todos ou apenas alguns desses elementos em função e na medida em que eles sejam necessários em diversas circunstâncias da vida em função de objetivos específicos (por serviços de saúde, por autoridades policiais ou judiciárias, pelos serviços e entidades públicos, etc), limitando o que consta dos documentos de identificação ao que seja estritamente necessário e mais frequentemente exigível para efeitos de identificação.
Sem prejuízo dessa reflexão mais de fundo que é necessário fazer, as questões que hoje estão colocadas nestas iniciativas são outras e devem também ser avaliadas em toda a sua extensão e profundidade. E essa avaliação tem de ter presente o caminho que tem sido feito ao longo do tempo.
Em 2018 entendeu-se que, em determinadas circunstâncias, se deveria prescindir da exigência de correspondência entre o sexo declarado no Registo e as características sexuais. Nessa altura entendeu-se que não se deveria continuar a exigir a sujeição das pessoas transexuais a tratamentos farmacológicos ou cirúrgicos como condição da alteração para efeitos do Registo e passou a admitir-se essa alteração sem essas condições, mantendo, no entanto, o critério da correspondência entre o sexo e o nome.
Em relação às pessoas intersexo foi-se mais longe. Excetuando questões de comprovado risco para a saúde, os tratamentos e as intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações ao nível do corpo e das características sexuais da criança intersexo não devem ser realizados até ao momento em que se manifeste a sua identidade de género.
Aquele critério de correspondência entre o sexo e o nome que consta do Código do Registo Civil e que foi tido também como critério para a Lei 38/2018, é agora colocado em causa, nas propostas apresentadas, sem a devida explicação da motivação, e sem acautelar todas as contradições que essa solução pode implicar.
A atribuição de nomes neutros é uma possibilidade, nomeadamente no que diz respeito a pessoas intersexo, mas já não é adequado que se abra a possibilidade, não tendo em conta o quadro da lei de 2018 que, particularmente à nascença, se atribua nome de rapaz a uma rapariga ou nome de rapariga a um rapaz.
Em vários aspetos, as propostas em discussão deixam margem para dúvidas que em consciência ninguém pode desvalorizar ou ignorar.
Sendo uma questão de autodeterminação de género porque não se considerou alterações na lei própria, aperfeiçoando os seus preceitos ao invés de alterar o Código de Registo Civil? Importa também acautelar se alteração agora proposta não entra em contradição com o que estabelece a lei 38/2018, que considera a mudança de sexo legal e alteração de nome? O que passaria a vigorar?
Estas não são questões laterais ao debate que possam ser desconsideradas. Parece-nos mesmo que são aspetos cruciais para que se perceba se aquilo que vai ser aprovado pode mesmo vir a ser aplicado ou se, como já aconteceu em situações anteriores, esbarra em declarações de inconstitucionalidade.
Pela nossa parte, será da resposta a essas questões que, em definitivo, decidiremos da posição que tomaremos.
Estas não são questões simples e convocam a sociedade para a compreensão de que as questões de autodeterminação não são processos lineares e isentos de dúvidas, de alterações em primeiro lugar para os próprios. O papel do Estado é promover uma sociedade mais capaz de acautelar todas estas diferenças, permitindo que as pessoas possam viver os seus próprios processos de autodeterminação de forma mais livre e menos condicionada, retirando sofrimentos injustificados a processos que já são, por definição, difíceis para quem os atravessa.
Neste, como noutros momentos, o PCP não se furtou ao aprofundamento do debate, da avaliação do conjunto das implicações e da intervenção para a resolução de problemas concretos que afetam as pessoas transexuais e intersexo, bem como outros aspetos suscitados, não ignorando as diferentes questões que se colocam, nem a complexidade da matéria, nem ilude com soluções, que podem nem sequer ter aplicação concreta ou que poderão vir a traduzir-se em dificuldades acrescidas.
Acompanharemos a consagração do dia Nacional da Visibilidade Trans, a adoção de procedimentos para concretizar a Lei 38/2018, assim como a gratuitidade das alterações no registo civil.
Disse!