Exposição de motivos
A atual lei do trabalho portuário nasceu para aumentar a precariedade e a exploração nos portos portugueses. Esse quadro legislativo é indissociável da privatização dos portos, que implicou uma crescente pressão para aumentar os lucros dos grandes grupos económicos à custa dos trabalhadores. A lei do trabalho portuário, que o Governo PSD/Cavaco Silva aprovou em 1993 e que o Governo PSD/CDS de Passos Coelho e Paulo Portas alterou para pior ainda em 2013, introduziu um conjunto de mecanismos que estão a ser usados pelo patronato para destruir direitos, reduzir salários, precarizar o trabalho e intensificar a exploração. Esta é a lei que o PS, no Governo desde 2015, tem aceite como sua, recusando a sua revisão. No entanto a realidade está a evidenciar que é cada vez mais urgente rever esta lei.
Veja-se o exemplo do que se passa hoje no Porto de Lisboa e que exige uma imediata intervenção, na qual se insere este projeto de lei do PCP. Estamos perante um processo de insolvência da Associação – Empresa de Trabalho Portuário de Lisboa que é claramente fraudulento, em duas medidas: primeiro, é uma fraude à partida porque os donos da A-ETPL (as empresas de Estiva do Porto de Lisboa) são os seus clientes, que nos últimos anos descapitalizaram a empresa a seu favor através do simples mecanismo de vender a si próprios serviços abaixo do custo de produção; depois, porque no decorrer do processo, o Administrador de Insolvência declara o encerramento da empresa, quando não foram ouvidos a maior parte dos seus credores, os trabalhadores, procurando assim descartá-los. Ao mesmo tempo decorre o assédio a vários trabalhadores para que escolham entre a outra ETP existente, a Porlis, do Grupo Yilport, ou a recém-criada ETP Prime, do Grupo ETE.
Num período em que o país se encontra em Estado de Emergência devido ao surto pandémico da Covid 19, ocorreu que, no seguimento deste processo fraudulento, desde o dia 17 de março que os grupos económicos que operam no Porto de Lisboa impedem a entrada nos terminais portuários dos estivadores da A-ETPL para desempenharem as funções para as quais estavam escalados. Ao mesmo tempo, é decretada uma Requisição Civil pelo Governo, enquanto os operadores impediam dezenas de trabalhadores de exercerem as suas funções.
Importa lembrar ao Governo que, não só está em causa o futuro de mais de uma centena de trabalhadores, neste caso os trabalhadores da A-ETPL, como ao mesmo tempo, a movimentação de cargas no Porto de Lisboa encontra-se assegurada por um escasso número de trabalhadores, insuficiente para dar resposta às necessidades impreteríveis, como o abastecimento dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, e sem as mínimas condições de salvaguarda face ao surto pandémico, sem equipas de reserva. Está em causa a operação no Porto de Lisboa e, se nada for feito, os impactos noutros portos também serão inevitáveis.
O Governo não pode permitir que tal aconteça. Por isso, o PCP, para além de apresentar este projeto de lei mitigador destas situações escandalosas, insta o Governo para que no imediato, num contexto em que estão em causa necessidades impreteríveis, declare o controlo público da A-ETPL, potenciando os seus trabalhadores, que indubitavelmente são indispensáveis à operação do Porto de Lisboa. Tal como o próprio Governo afirmou: os postos de trabalho que existem não podem desaparecer e as empresas não podem ser destruídas. Mais flagrante ainda quando está em causa a operação portuária!
Com esta iniciativa legislativa, o PCP aponta para a total inversão do rumo liberalizante que tem sido seguido nos últimos anos. O que o país precisa é de regimes laborais que garantam a criação de trabalho remunerado dignamente, e que respeitem a necessidade de os trabalhadores compaginarem a sua vida pessoal e laboral.
Assim, em primeiro lugar, pretende-se reconstruir a ideia de «efetivo portuário», conquista histórica dos estivadores à escala mundial, ultrapassando a total precariedade das antigas «Casas do Conto» ou das atuais Empresas de Trabalho Temporário.
Em segundo lugar, trata-se de devolver à Administração Portuária a responsabilidade pelo enquadramento do efetivo portuário, e de acabar com as hipóteses de as empresas concessionárias jogarem com a insolvência das «suas» Empresas de Trabalho Portuário, em processos fraudulentos, onde chantageiam trabalhadores e onde limpam responsabilidades fiscais e sociais.
Em terceiro lugar, trata-se de eliminar todas cláusulas que permitem a sobre-exploração dos trabalhadores portuários, nomeadamente acabando com a possibilidade de utilização de ETT, acabando com o regime agravado de contratos de muito curta duração, acabando com o regime especial do trabalho portuário e com as possibilidades de alargar os máximos anuais de trabalho extraordinário.
Assim, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição da República Portuguesa e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo-assinados, do Grupo Parlamentar do PCP, apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Âmbito
- A presente lei estabelece o regime jurídico do trabalho portuário.
- Considera-se trabalho portuário, para efeitos da presente lei, o prestado nas diversas tarefas de movimentação de cargas nas áreas públicas ou privadas, dentro da zona portuária.
- O disposto na presente lei não é aplicável ao trabalho prestado por funcionários ou agentes da autoridade portuária nem aos trabalhadores que na zona portuária não se encontrem exclusiva ou predominantemente afetos à atividade de movimentação de cargas.
Artigo 2.º
Definições
Para efeitos deste diploma, entende-se por:
- «Efetivo dos portos» e «Contingente Portuário», o conjunto dos trabalhadores detentores de certificado de aptidão profissional adequado, que desenvolvem a sua atividade profissional, ao abrigo de contrato de trabalho sem termo, na movimentação de cargas;
- «Atividade de movimentação de cargas», a atividade de estiva, desestiva, conferência, carga, descarga, transbordo, movimentação e arrumação de mercadorias em cais, terminais, armazéns e parques, bem como de formação e decomposição de unidades de carga e ainda de receção, armazenagem e expedição de mercadorias;
- «Empresa de trabalho portuário», a pessoa coletiva cuja atividade consiste exclusivamente na cedência de trabalhadores qualificados para o exercício das diferentes tarefas portuárias de movimentação de cargas;
- «Empresa de Estiva»: a pessoa coletiva licenciada para o exercício da atividade de movimentação de cargas na zona portuária;
- «Zona portuária», o espaço situado dentro dos limites da área de jurisdição das autoridades portuárias, constituído, designadamente, por planos de água, canais de acesso, molhes e obras de proteção, cais, terminais, terraplenos e quaisquer terrenos, armazéns e outras instalações;
- «Áreas portuárias de prestação de serviço público», as áreas dominiais situadas na zona portuária e as instalações nela implantadas, pertencentes ou submetidas à jurisdição da autoridade portuária e por ela mantidas ou objeto de concessão de serviço público, nas quais se realizam operações de movimentação de cargas, em regime de serviço público;
- «Áreas portuárias de serviço privativo», as áreas situadas na zona portuária e as instalações nelas implantadas que sejam objeto de direitos de uso privativo de parcelas de domínio público sob a jurisdição da autoridade portuária, nas quais se realizam operações de movimentação de cargas, exclusivamente destinadas ou com origem no próprio estabelecimento industrial e que se enquadram no exercício normal da atividade prevista no título de uso privativo;
- «Serviço público de movimentação de cargas», aquele que é prestado a terceiros por empresa devidamente licenciada para o efeito, com fins comerciais, na zona portuária;
- «Autoridade portuária», as administrações portuárias a quem está cometida a administração e a responsabilidade pelo funcionamento dos portos nacionais.
Artigo 3.º
Contingente portuário
- As Administrações Portuárias, ouvindo o conjunto dos operadores e as Organizações Representativas dos Trabalhadores, definem o efetivo necessário ao contingente de cada porto.
- O contingente previsto no número anterior é constituído por trabalhadores com contrato de trabalho sem termo.
- Pelas razões reconhecidas na lei para a contratação de trabalhadores a termo, esses contingentes podem ser alargados a trabalhadores a termo. A existência, durante mais de dez meses, de trabalhadores a termo, deve traduzir-se no alargamento do contingente e na transformação dos contratos de trabalho em contratos sem termo.
- O contingente portuário inclui os trabalhadores diretamente contratados pelas empresas de estiva e aqueles que se encontram na Empresa de Trabalho Portuário.
- As empresas de estiva contratam da ETP, e em caso de insolvência ou redução de atividade, os trabalhadores afetados regressam à ETP.
Artigo 4.º
Trabalhadores do contingente portuário
- Todo o trabalho de movimentação de cargas deve ser feito por trabalhadores do contingente portuário, distribuído de forma equitativa entre todos eles, nos termos da contratação coletiva.
- Todos os trabalhadores, efetivos ou eventuais, das atuais ETP e das empresas de estiva ficam afetos ao contingente portuário, sendo-lhes reconhecidos todos os seus direitos, incluindo antiguidade de trabalho realizado.
Artigo 5.º
Empresa de Trabalho Portuário
- Em cada Porto existe apenas uma Empresa de Trabalho Portuário.
- A ETP prevista no número anterior deve ser detida, pelo menos em 51%, pela respetiva Autoridade Portuária.
- Na Administração de cada ETP participam, sem direito a voto, um trabalhador eleito pelos trabalhadores, e um representante de cada empresa de estiva.
Artigo 6.º
Formação e qualificação profissional
- O trabalhador que desenvolve a sua atividade profissional na movimentação de cargas deve receber periodicamente da respetiva entidade empregadora a formação profissional necessária ao desempenho correto e em segurança das suas funções, a ministrar por entidades certificadas.
- Para efeitos de cumprimento do disposto no número anterior, a entidade empregadora deve assegurar ao trabalhador:
- Formação inicial no momento do ingresso no mercado do trabalho portuário;
- Formação profissional periódica visando a atualização de conhecimentos, sem prejuízo do direito individual à formação contínua prevista no artigo 131.º do Código do Trabalho.
- Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos números anteriores.
Artigo 7.º
Proteção da saúde e segurança no trabalho
- É aplicável à atividade de movimentação de cargas o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, aprovado pela Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
- A entidade empregadora deve assegurar ao trabalhador condições de saúde e segurança em todos os aspetos relacionados com a atividade de movimentação de cargas, nomeadamente no plano da instalação e manutenção da sinalização de segurança nas áreas portuárias.
- Sem prejuízo da formação prevista no artigo anterior, a entidade empregadora deve assegurar ao trabalhador uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho.
- Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos números 2 e 3.
Artigo 8.º
Certificado de aptidão profissional
- A atividade de trabalho portuário requer a devida habilitação com certificado de aptidão profissional, emitido pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I. P.
- No prazo de seis meses após a publicação da presente lei, é automaticamente atribuído aos atuais trabalhadores, efetivos ou eventuais, o certificado previsto no número anterior.
Artigo 9.º
Norma revogatória
É revogado o atual Regime Jurídico do Trabalho Portuário, definido pelo Decreto-Lei n.º 280/93, de 13 de agosto, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 3/2013, de 14 de janeiro.
Artigo 10.º
Regulamentação
O Governo procede, no prazo de 180 dias após a publicação da presente lei, às medidas necessárias com vista à regulamentação e implementação deste regime, em articulação com as administrações portuárias.