Projecto de Lei N.º 268/XIV/1.ª

Novo Regime Jurídico do Trabalho Portuário

Exposição de motivos

A atual lei do trabalho portuário nasceu para aumentar a precariedade e a exploração nos portos portugueses. Esse quadro legislativo é indissociável da privatização dos portos, que implicou uma crescente pressão para aumentar os lucros dos grandes grupos económicos à custa dos trabalhadores. A lei do trabalho portuário, que o Governo PSD/Cavaco Silva aprovou em 1993 e que o Governo PSD/CDS de Passos Coelho e Paulo Portas alterou para pior ainda em 2013, introduziu um conjunto de mecanismos que estão a ser usados pelo patronato para destruir direitos, reduzir salários, precarizar o trabalho e intensificar a exploração. Esta é a lei que o PS, no Governo desde 2015, tem aceite como sua, recusando a sua revisão. No entanto a realidade está a evidenciar que é cada vez mais urgente rever esta lei.

Veja-se o exemplo do que se passa hoje no Porto de Lisboa e que exige uma imediata intervenção, na qual se insere este projeto de lei do PCP. Estamos perante um processo de insolvência da Associação – Empresa de Trabalho Portuário de Lisboa que é claramente fraudulento, em duas medidas: primeiro, é uma fraude à partida porque os donos da A-ETPL (as empresas de Estiva do Porto de Lisboa) são os seus clientes, que nos últimos anos descapitalizaram a empresa a seu favor através do simples mecanismo de vender a si próprios serviços abaixo do custo de produção; depois, porque no decorrer do processo, o Administrador de Insolvência declara o encerramento da empresa, quando não foram ouvidos a maior parte dos seus credores, os trabalhadores, procurando assim descartá-los. Ao mesmo tempo decorre o assédio a vários trabalhadores para que escolham entre a outra ETP existente, a Porlis, do Grupo Yilport, ou a recém-criada ETP Prime, do Grupo ETE.

Num período em que o país se encontra em Estado de Emergência devido ao surto pandémico da Covid 19, ocorreu que, no seguimento deste processo fraudulento, desde o dia 17 de março que os grupos económicos que operam no Porto de Lisboa impedem a entrada nos terminais portuários dos estivadores da A-ETPL para desempenharem as funções para as quais estavam escalados. Ao mesmo tempo, é decretada uma Requisição Civil pelo Governo, enquanto os operadores impediam dezenas de trabalhadores de exercerem as suas funções.

Importa lembrar ao Governo que, não só está em causa o futuro de mais de uma centena de trabalhadores, neste caso os trabalhadores da A-ETPL, como ao mesmo tempo, a movimentação de cargas no Porto de Lisboa encontra-se assegurada por um escasso número de trabalhadores, insuficiente para dar resposta às necessidades impreteríveis, como o abastecimento dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, e sem as mínimas condições de salvaguarda face ao surto pandémico, sem equipas de reserva. Está em causa a operação no Porto de Lisboa e, se nada for feito, os impactos noutros portos também serão inevitáveis.

O Governo não pode permitir que tal aconteça. Por isso, o PCP, para além de apresentar este projeto de lei mitigador destas situações escandalosas, insta o Governo para que no imediato, num contexto em que estão em causa necessidades impreteríveis, declare o controlo público da A-ETPL, potenciando os seus trabalhadores, que indubitavelmente são indispensáveis à operação do Porto de Lisboa. Tal como o próprio Governo afirmou: os postos de trabalho que existem não podem desaparecer e as empresas não podem ser destruídas. Mais flagrante ainda quando está em causa a operação portuária!

Com esta iniciativa legislativa, o PCP aponta para a total inversão do rumo liberalizante que tem sido seguido nos últimos anos. O que o país precisa é de regimes laborais que garantam a criação de trabalho remunerado dignamente, e que respeitem a necessidade de os trabalhadores compaginarem a sua vida pessoal e laboral.

Assim, em primeiro lugar, pretende-se reconstruir a ideia de «efetivo portuário», conquista histórica dos estivadores à escala mundial, ultrapassando a total precariedade das antigas «Casas do Conto» ou das atuais Empresas de Trabalho Temporário.

Em segundo lugar, trata-se de devolver à Administração Portuária a responsabilidade pelo enquadramento do efetivo portuário, e de acabar com as hipóteses de as empresas concessionárias jogarem com a insolvência das «suas» Empresas de Trabalho Portuário, em processos fraudulentos, onde chantageiam trabalhadores e onde limpam responsabilidades fiscais e sociais.

Em terceiro lugar, trata-se de eliminar todas cláusulas que permitem a sobre-exploração dos trabalhadores portuários, nomeadamente acabando com a possibilidade de utilização de ETT, acabando com o regime agravado de contratos de muito curta duração, acabando com o regime especial do trabalho portuário e com as possibilidades de alargar os máximos anuais de trabalho extraordinário.

Assim, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição da República Portuguesa e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo-assinados, do Grupo Parlamentar do PCP, apresentam o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º

Âmbito

  1. A presente lei estabelece o regime jurídico do trabalho portuário.
  2. Considera-se trabalho portuário, para efeitos da presente lei, o prestado nas diversas tarefas de movimentação de cargas nas áreas públicas ou privadas, dentro da zona portuária.
  3. O disposto na presente lei não é aplicável ao trabalho prestado por funcionários ou agentes da autoridade portuária nem aos trabalhadores que na zona portuária não se encontrem exclusiva ou predominantemente afetos à atividade de movimentação de cargas.

Artigo 2.º

Definições

Para efeitos deste diploma, entende-se por:

  1. «Efetivo dos portos» e «Contingente Portuário», o conjunto dos trabalhadores detentores de certificado de aptidão profissional adequado, que desenvolvem a sua atividade profissional, ao abrigo de contrato de trabalho sem termo, na movimentação de cargas;
  2. «Atividade de movimentação de cargas», a atividade de estiva, desestiva, conferência, carga, descarga, transbordo, movimentação e arrumação de mercadorias em cais, terminais, armazéns e parques, bem como de formação e decomposição de unidades de carga e ainda de receção, armazenagem e expedição de mercadorias;
  3. «Empresa de trabalho portuário», a pessoa coletiva cuja atividade consiste exclusivamente na cedência de trabalhadores qualificados para o exercício das diferentes tarefas portuárias de movimentação de cargas;
  4. «Empresa de Estiva»: a pessoa coletiva licenciada para o exercício da atividade de movimentação de cargas na zona portuária;
  5. «Zona portuária», o espaço situado dentro dos limites da área de jurisdição das autoridades portuárias, constituído, designadamente, por planos de água, canais de acesso, molhes e obras de proteção, cais, terminais, terraplenos e quaisquer terrenos, armazéns e outras instalações;
  6. «Áreas portuárias de prestação de serviço público», as áreas dominiais situadas na zona portuária e as instalações nela implantadas, pertencentes ou submetidas à jurisdição da autoridade portuária e por ela mantidas ou objeto de concessão de serviço público, nas quais se realizam operações de movimentação de cargas, em regime de serviço público;
  7. «Áreas portuárias de serviço privativo», as áreas situadas na zona portuária e as instalações nelas implantadas que sejam objeto de direitos de uso privativo de parcelas de domínio público sob a jurisdição da autoridade portuária, nas quais se realizam operações de movimentação de cargas, exclusivamente destinadas ou com origem no próprio estabelecimento industrial e que se enquadram no exercício normal da atividade prevista no título de uso privativo;
  8. «Serviço público de movimentação de cargas», aquele que é prestado a terceiros por empresa devidamente licenciada para o efeito, com fins comerciais, na zona portuária;
  9. «Autoridade portuária», as administrações portuárias a quem está cometida a administração e a responsabilidade pelo funcionamento dos portos nacionais.

Artigo 3.º

Contingente portuário

  1. As Administrações Portuárias, ouvindo o conjunto dos operadores e as Organizações Representativas dos Trabalhadores, definem o efetivo necessário ao contingente de cada porto.
  2. O contingente previsto no número anterior é constituído por trabalhadores com contrato de trabalho sem termo.
  3. Pelas razões reconhecidas na lei para a contratação de trabalhadores a termo, esses contingentes podem ser alargados a trabalhadores a termo. A existência, durante mais de dez meses, de trabalhadores a termo, deve traduzir-se no alargamento do contingente e na transformação dos contratos de trabalho em contratos sem termo.
  4. O contingente portuário inclui os trabalhadores diretamente contratados pelas empresas de estiva e aqueles que se encontram na Empresa de Trabalho Portuário.
  5. As empresas de estiva contratam da ETP, e em caso de insolvência ou redução de atividade, os trabalhadores afetados regressam à ETP.

Artigo 4.º

Trabalhadores do contingente portuário

  1. Todo o trabalho de movimentação de cargas deve ser feito por trabalhadores do contingente portuário, distribuído de forma equitativa entre todos eles, nos termos da contratação coletiva.
  2. Todos os trabalhadores, efetivos ou eventuais, das atuais ETP e das empresas de estiva ficam afetos ao contingente portuário, sendo-lhes reconhecidos todos os seus direitos, incluindo antiguidade de trabalho realizado.

Artigo 5.º

Empresa de Trabalho Portuário

  1. Em cada Porto existe apenas uma Empresa de Trabalho Portuário.
  2. A ETP prevista no número anterior deve ser detida, pelo menos em 51%, pela respetiva Autoridade Portuária.
  3. Na Administração de cada ETP participam, sem direito a voto, um trabalhador eleito pelos trabalhadores, e um representante de cada empresa de estiva.

Artigo 6.º

Formação e qualificação profissional

  1. O trabalhador que desenvolve a sua atividade profissional na movimentação de cargas deve receber periodicamente da respetiva entidade empregadora a formação profissional necessária ao desempenho correto e em segurança das suas funções, a ministrar por entidades certificadas.
  2. Para efeitos de cumprimento do disposto no número anterior, a entidade empregadora deve assegurar ao trabalhador:
    1. Formação inicial no momento do ingresso no mercado do trabalho portuário;
    2. Formação profissional periódica visando a atualização de conhecimentos, sem prejuízo do direito individual à formação contínua prevista no artigo 131.º do Código do Trabalho.
  3. Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos números anteriores.

Artigo 7.º

Proteção da saúde e segurança no trabalho

  1. É aplicável à atividade de movimentação de cargas o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, aprovado pela Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
  2. A entidade empregadora deve assegurar ao trabalhador condições de saúde e segurança em todos os aspetos relacionados com a atividade de movimentação de cargas, nomeadamente no plano da instalação e manutenção da sinalização de segurança nas áreas portuárias.
  3. Sem prejuízo da formação prevista no artigo anterior, a entidade empregadora deve assegurar ao trabalhador uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho.
  4. Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos números 2 e 3.

Artigo 8.º

Certificado de aptidão profissional

  1. A atividade de trabalho portuário requer a devida habilitação com certificado de aptidão profissional, emitido pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I. P.
  2. No prazo de seis meses após a publicação da presente lei, é automaticamente atribuído aos atuais trabalhadores, efetivos ou eventuais, o certificado previsto no número anterior.

Artigo 9.º

Norma revogatória

É revogado o atual Regime Jurídico do Trabalho Portuário, definido pelo Decreto-Lei n.º 280/93, de 13 de agosto, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 3/2013, de 14 de janeiro.

Artigo 10.º

Regulamentação

O Governo procede, no prazo de 180 dias após a publicação da presente lei, às medidas necessárias com vista à regulamentação e implementação deste regime, em articulação com as administrações portuárias.

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