Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

PCP questiona Procuradora Geral da República sobre situação da Justiça e do Ministério Público

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O PCP não propôs esta audição, mas considera justificada e pertinente a sua realização, embora, neste momento seja um tanto tardia.

É sabido que o Procurador-geral da República não responde politicamente perante a Assembleia da República e não pode nem deve responder perante a Assembleia da República por casos concretos objeto de investigação. É assim, e é assim que deve ser.

Contudo, todos respondemos perante o povo e todos temos o dever de lhe prestar contas e quando todo o país é abalado por dúvidas e perplexidades sobre a atuação da Justiça e, em particular, sobre a proporcionalidade e a adequação de atuações do Ministério Público, todos temos o dever de contribuir para dissipar essas dúvidas e não permitir que se instale e permaneça um clima de alarme social que ponha em causa a confiança nas instituições democráticas.

Por isso, sempre dissemos que era muito importante que a Sr.ª Procuradora-geral da República prestasse esclarecimentos ao país perante a perplexidade gerada por intervenções do Ministério Público que, tendo tido enorme impacto mediático e enormes repercussões no plano político, a nível nacional e mesmo internacional, se viram afinal desvalorizadas pelo poder judicial.

Não exigimos que esses esclarecimentos fossem prestados perante a Assembleia da República, mas sempre considerámos que eles eram devidos ao país e que a Assembleia da República, enquanto sede da representação nacional, poderia ser o local adequado para esse efeito.   

A independência do poder judicial e a autonomia do Ministério Público são traves-mestras do Estado de Direito Democrático que não podem ser removidas nem abaladas. O PCP será sempre intransigente na sua defesa.

Importa também deixar claro que o PCP não perfilha, nem a tese do golpe de Estado promovido pelo Ministério Público, nem a tese da campanha orquestrada contra o Ministério Público.

As preocupações com o funcionamento da Justiça que justamente preocupam os portugueses são graves, são estruturais, e estão muito para além da atuação do Ministério Público.

A morosidade dos processos judiciais não se deve exclusiva nem principalmente ao Ministério Público, tal como não é da responsabilidade do Ministério Público a falta de oficiais de justiça, as contradições entre decisões judiciais em diversas instâncias, os recursos meramente dilatórios ou a falta de acesso de tantos cidadãos à Justiça por razões económicas.

Não culpemos, pois, o Ministério Público daquilo que o Ministério Público não tem culpa.

Porém, há questões decorrentes de atuações do Ministério Público que não devemos deixar de suscitar nesta audição.

Destaco quatro questões:

Começo pelas escutas telefónicas. Trata-se, como sabemos, de um dos meios de investigação criminal mais intrusivos da vida privada de qualquer cidadão. Devem ser usadas quando estritamente necessário e pelo tempo estritamente necessário aos objetivos da investigação criminal. Sabemos que as escutas telefónicas carecem de autorização judicial, mas são requeridas pelo Ministério Público. Tendo em conta os números que são por vezes publicitados sobre as escutas realizadas, não considera que podemos estar a assistir a uma banalização do recurso a este meio de investigação. E mais concretamente: considera proporcional e adequado que um cidadão esteja quatro anos sob escuta até que se encontre algum indício que o possa comprometer criminalmente?

Segunda questão:

Em entrevista concedida à RTP, a Sr.ª Procuradora-geral referiu que, em relação ao antigo Primeiro-Ministro não tinham sido detetados quaisquer indícios da prática de crimes, mas – acrescentou – “a investigação continua”. Pergunto: continua, até quando? Não haverá aqui uma inversão da ordem das coisas? afinal, a investigação existe porque há indícios, ou existirá indefinida e permanentemente até encontrar indícios?

Terceira questão:

Do Relatório Síntese do Ministério que recebemos, no que se refere ao DCIAP, consta que dos 1142 inquéritos findos, apenas 24, ou seja, 2,1 %, terminaram com acusação. Esta percentagem não difere muito em relação a anos anteriores. 131 inquéritos foram arquivados, mas a grande maioria, 984, foram remetidos a outros departamentos.

Estes números são merecedores de algum esclarecimento. A ideia com que ficamos é que as capacidades de um departamento como o DCIAP poderiam ser utilizadas de uma forma mais produtiva, aliviando-o de uma carga processual que, eventualmente, deveria ser ab initio da competência de outros departamentos.

Quarta e última questão: o segredo de justiça.

Todos assistimos, de forma recorrente, a grosseiras violações do segredo de justiça, em mega-operações que, antes de serem realizadas, têm à sua espera batalhões de jornalistas, microfones e câmaras de televisão para que a sua cobertura ocorra em direto. Escutas telefónicas constantes de processos criminais e outras que por não pertencerem deveriam ter sido destruídas, são amplamente difundidas através da comunicação social, pondo em causa a presunção de inocência dos envolvidos e causando danos reputacionais irreversíveis mesmo em caso de absolvição.

Estamos perante a prática de crimes, cometidos à vista de todos e não nos recordamos de nenhum caso em que estes crimes não fiquem impunes. Mesmo quando se anuncia alguma investigação sobre um caso concreto, esta acaba por cair no esquecimento e desaparece sem deixar rasto.

O que nos tem a dizer sobre isto? Tem alguma justificação para que o crime de violação do segredo de justiça seja, porventura, o crime mais impune da ordem jurídica portuguesa?

Obrigado.   

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