Acabámos de apresentar o Projecto do PCP de Lei de Bases da Política de Saúde. Tal como anunciámos no passado mês de Abril, caso fosse aberto na Assembleia da República o processo de revisão da actual Lei de Bases da Saúde, o PCP não deixaria de intervir neste processo de forma autónoma.
Na altura chamámos a atenção para o facto de que a abertura do processo de revisão, nesta fase, considerando as propostas de cada partido com assento na Assembleia da República para a saúde, continha perigos e que por isso podia estar em causa a possibilidade de uma revisão progressista da Lei.
Chamámos igualmente a atenção para o facto de, na opinião do PCP, uma parte significativa dos problemas que afectam hoje o Serviço Nacional de Saúde, não terem origem na Lei actual - apesar de nos termos oposto à sua aprovação - mas na política de direita que tem sido seguida nos últimos anos por sucessivos governos. Questões como o subfinanciamento ou as PPP são opções políticas que podiam ser evitadas e não um problema que resulte da Lei de Bases da Saúde.
Do que nos foi dado a conhecer até hoje, das propostas avançadas pelo PSD e do ante-projecto avançado pela comissão nomeada pelo Governo e presidida por Maria de Belém, os portugueses têm razões para ficar preocupados. Esta é uma discussão que vai ser feita na Assembleia da República, mas que não pode deixar de ser acompanhada pela intervenção dos portugueses e de uma intervenção determinada em defesa do SNS.
É neste quadro que a proposta hoje apresentada pelo PCP ganha uma extraordinária importância, na medida em que clarifica de forma inequívoca o papel central do Estado na garantia do direito à saúde a todos os portugueses, independentemente da condição sócio-económica de cada um.
Direito que o Estado, de acordo com a Constituição da República Portuguesa, concretiza através do SNS. E por isso a proposta do PCP aponta para a resolução de um dos mais graves problemas que afecta o SNS: a promiscuidade crescente entre o público e o privado, atribuindo ao sector privado e social um carácter supletivo ao SNS.
Os últimos anos são caracterizados na área da saúde pelo agudizar da luta entre quem defende que cabe ao Estado assegurar o pleno direito à saúde, através de um Serviço Nacional de Saúde universal (acessível a todos e que todos sirva), Geral (actuante de forma eficaz em todos os domínios da área da saúde) e Gratuito (sem custo directo para quem dele necessita) e aqueles que, a partir do Governo do País e de outras importantes posições de poder, têm visto na Saúde uma promissora, altamente rentável e cobiçada área de negócio para as mais diversas entidades de natureza privada.
Como é referido na exposição de motivos do Projecto de Lei que acabou de ser apresentado, «Foram e têm sido, as opções políticas dos governos da política de direita responsáveis pela situação que se vive actualmente no SNS, sendo responsáveis por políticas que o desacreditam e o fragilizam promovendo e consolidando avanços na implementação de um sistema de saúde a duas velocidades – por um lado um serviço público desvalorizado pela falta de recursos para os mais pobres e por outro a prestação privada dotada de meios a que só alguns têm acesso. Ou seja, atribui-se ao Estado a função de regulador e financiador, e aos grandes grupos económicos com intervenção na área da saúde, o fundamental da prestação de cuidados no essencial pagos pelo Estado.
Como é amplamente conhecido, nos países em que tais soluções têm sido adoptadas, uma parte muito significativa da população ficou sem cobertura de qualquer sistema organizado.
Ao contrário da actual Lei de Bases que estabeleceu o enfraquecimento da resposta pública, a proposta do PCP não só torna esta resposta mais robusta, como impede que o processo de privatização continue a conduzir a uma concentração da propriedade num reduzido número de grandes grupos, onde o capital estrangeiro tem posições cada vez mais hegemónicas, e se transformaram em autênticos predadores dos dinheiros públicos.
Como consequência de uma política concertada de privatizações da saúde, 40% da população portuguesa, para além de ser beneficiária do SNS, passou a estar coberta por um subsistema de saúde (público ou privado) ou por um seguro de saúde que abrange nesta altura cerca de 2,5 milhões de portugueses. No total são mais de 4 milhões de portugueses que estão nesta situação.
Depois de consolidarem uma participação nos grandes centros urbanos, os grandes grupos privados, avançaram nos últimos anos para outras cidades absorvendo muitas clínicas privadas de menor dimensão, a que se junta um modelo particular de privatização que são as PPP, com a entrega da construção e gestão de grandes unidades hospitalares. É assim que os 4 maiores grupos privados dominam o mercado com 80% do volume do negócio privado da medicina. Como se pode verificar, a prestação de cuidados de saúde, é altamente cobiçada pelos grandes grupos capitalistas que vêem nela uma muito rentável área de negócio.
A ofensiva contra o SNS desenvolveu-se ao longo dos anos, em múltiplas frentes, com o seu subfinanciamento continuado, encerrando, fundindo e amputando as suas unidades e serviços, promovendo a sua desarticulação estrutural e desmotivando os seus profissionais, de forma a diminuir a sua capacidade e qualidade de resposta. Ao mesmo tempo, os diversos governos de PS, PSD e CDS, aumentaram substancialmente o apoio e financiamento do Estado aos grandes prestadores privados, transferindo para eles doentes e serviços, procurando reduzir o SNS a um papel residual, dedicado à assistência das camadas mais pobres e desfavorecidas da população.
Só no ano em curso, 3.726 milhões de euros, cerca de 40% do orçamento do SNS, sem contabilizar os medicamentos, serão canalizados para pagamentos a entidades privadas. Também as despesas pagas pelo cidadão com dinheiro saído do seu bolso, atingiram nos últimos anos os níveis mais elevados da Europa – 27,4% do total dos gastos em saúde. Não é, pois, por falta de dinheiro ou por desmazelo ou desperdício que o SNS “é insustentável” como argumentam os arautos da política de direita na saúde, e o próprio discurso oficial das últimas décadas.
Ainda recentemente num relatório da Goldman Sachs (um conhecido grupo financeiro), era suscitada a questão: curar os doentes é um modelo de negócio sustentável? Colocavam dúvidas se o investimento a realizar em tecnologias e terapias na área da saúde era positivo, dando o exemplo do medicamento que tem uma taxa de cura da hepatite C superior a 90%. Diz o relatório que os primeiros anos de venda desse medicamento representaram um elevado volume de negócios, mas que na evolução daí para a frente é expectável que a receita desça significativamente.
Não podia ser mais claro! Para os privados o que importa é a doença e não a saúde. O que dá lucro aos privados é a doença e não a saúde. Duas lógicas de funcionamento diametralmente opostas: para o público a lógica é a da saúde, para os privados a doença.
Enquanto o Serviço Nacional de Saúde vive sufocado num subfinanciamento crónico e sistematicamente atolado num mar de dívidas que o impede de cumprir a sua missão com a qualidade e segurança a que habituaram os portugueses, e que o catapultaram para um lugar cimeiro a nível mundial, os grandes grupos privados vão fazendo crescer o seu negócio e aumentando os seus lucros.
Como temos afirmado desde há muito, a medicina privada, cuja existência não é posta em causa e cuja importância social o Estado reconhece, deve cumprir um papel supletivo em relação ao SNS, devendo os dois sistemas ser completamente independentes pois traduzem filosofia e objectivos diferentes.
Na sequência das eleições de 2015, da derrota do Governo PSD/CDS e do novo quadro de correlação de forças saído das legislativas de 4 de Outubro, foi possível interromper a política de exploração e empobrecimento, de destruição das funções sociais do Estado e, consequentemente do Serviço Nacional de Saúde. Desde 2016 que se deram passos, embora de forma tímida, para inverter o rumo de desinvestimento no SNS.
No entanto, a obsessão pela redução do défice para valores ainda mais baixos do que a União Europeia impôs, levou a um investimento nos serviços públicos muito aquém das necessidades do País, levando a que, no caso da saúde, se mantenha um conjunto de problemas estruturais que dificultam o acesso à prestação de cuidados de saúde, à maioria dos portugueses.
Perante a ofensiva, o PCP lutou e resistiu! Solidarizou-se com as lutas travadas pelos profissionais e pelos utentes traduzindo as suas justas reivindicações em propostas concretas apresentadas na Assembleia da República. Foi dos partidos que mais propostas avançou para resolver os problemas neste sector. As iniciativas apresentadas combatiam toda e cada uma das malfeitorias perpetradas ao SNS, aos profissionais de saúde e aos utentes, e simultaneamente resolviam os problemas, reforçavam a resposta pública e os direitos dos trabalhadores e dos utentes.
Entre a multiplicidade de propostas destacamos as que combatiam: o subfinanciamento crónico do SNS; o fecho e transferência de valências hospitalares; a degradação da generalidade dos serviços de urgência hospitalares; o encerramento de centros de saúde e outras unidades; a falta de médico e enfermeiro de família e de outros profissionais de saúde; as intermináveis listas de espera.
Hoje, passados 39 anos após a fundação do SNS, podemos concluir dois aspectos da maior importância para a avaliação que fazemos da situação e definição dos objectivos para a nossa intervenção:
Um primeiro, é que apesar dos problemas que afectam o normal funcionamento do SNS, este mostrou uma capacidade de resiliência invejável, mantendo-se ainda hoje como um dos melhores do mundo;
Um segundo, é de que existem no País e particularmente no interior do SNS, forças suficientes para o defenderem.
Efectivamente a luta das populações e dos trabalhadores em defesa dos serviços públicos de saúde, são um real obstáculo à concretização dos projectos do grande capital.
A Constituição da República estabelece que o direito à saúde é realizado “pela criação de condições económicas, sociais e culturais que garantam a protecção da infância, da juventude e da velhice e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho”.
Não quero terminar sem uma palavra dirigida aos profissionais que trabalham no Serviço Nacional de Saúde: Médicos, Enfermeiros, Assistentes Operacionais e outros Técnicos de Saúde.
No PCP temos a convicção de que sem os trabalhadores, os que estão actualmente no SNS e os milhares que por lá passaram desde a sua criação em 1979, o Serviço Nacional de Saúde não teria a importância que tem ainda hoje para a saúde dos portugueses. A sua dedicação, a luta por melhores condições de trabalho e de atendimento, a exigência de uma gestão rigorosa ao serviço dos portugueses, são parte integrante de um património invejável que constitui esta construção de Abril que é o Serviço Nacional de Saúde.
O conjunto das propostas que o PCP avança no Projecto de Lei de Bases da Saúde que acabámos de apresentar, partindo de uma avaliação objectiva e rigorosa, integrando elementos centrais da política patriótica e de esquerda que o PCP apresentou ao Povo português, são um importante contributo, da nossa parte, não apenas para a defesa do SNS mas para o seu desenvolvimento, mesmo tendo consciência que algumas delas só terão concretização num quadro de um governo patriótico e de esquerda capaz de a materializar! Vale a pena lutar por esta causa.