A publicitação recente da auditoria do Tribunal de Contas ao processo de privatização da ANA – Aeroportos, decidida em 2013 pelo Governo PSD/CDS, veio trazer elementos novos quanto à dimensão do escândalo em que se traduziu essa operação, cujos contornos concretos foram completamente escondidos do povo português e da própria Assembleia da República.
Desde logo quanto ao valor da venda. Quando foi vendida, a ANA detinha já a concessão da rede aeroportuária nacional por 50 anos e foi afirmado publicamente pelo Governo que a empresa tinha sido vendida por 3080 milhões de euros. Afinal, o Tribunal de Contas demonstrou que o valor efetivo de venda foi de 1.127 milhões, ou seja, pouco mais de um terço.
E pior ainda, foram oferecidos à Vinci os dividendos de 2012 no valor de 71,4 milhões de euros, quando em 2012 a empresa ainda era pública.
Há aqui três questões a apurar: a responsabilidade política de quem mentiu ao povo português, a responsabilidade financeira da Vinci que pode ter recebido um desconto ilegal e a responsabilidade de quem ofereceu esse desconto.
Uma segunda ordem de questões prende-se com a avaliação prévia que era legalmente exigida, e que não foi realizada. O Tribunal de Contas evidenciou que o conjunto de dividendos que a multinacional retirará ao longo da concessão será superior a vinte mil milhões de euros, e que a divisão de receitas entre a multinacional e o Estado será, na melhor das hipóteses, de 79% para a multinacional e 21% para o Estado, um valor absolutamente fora do vulgar, para mais tratando-se de um conjunto de infraestruturas já construídas.
Uma terceira ordem de questões está relacionada com a promiscuidade entre a gestão da administração pública e privada, tanto na fase de privatização como na fase de gestão privada. A última Administração da ANA pública foi nomeada depois de iniciado o processo de privatização, e um mês depois a Vinci informou publicamente que iria contratar essa mesma administração para assumir a gestão privada da empresa, o que viria a ser concretizado, um ano depois, com a manutenção de todos os gestores «públicos» na gestão privada. Daí a mudança de posição da ANA sobre a proposta global da Vinci, que passou de «irrealista e irrealizável» para «a mais forte e a mais competitiva».
Se estes factos seriam suficientes para a realização imediata de uma Comissão Parlamentar de Inquérito ao processo de privatização da ANA, também o impacto desta privatização tem sido desastroso para o país.
Desde logo, pelo papel da ANA privatizada na oposição sistemática a qualquer tentativa de construção do Novo Aeroporto de Lisboa. Na altura da privatização, o país foi convencido que o novo aeroporto seria construído pela ANA e alguns até juraram que seria graças à privatização. A realidade dos últimos 10 anos é que a Vinci já demonstrou que não quer, de forma nenhuma, sair do Aeroporto Internacional Humberto Delgado, que considera altamente lucrativo para si.
E também há que apurar responsabilidades pela queda brutal do investimento no aeroporto de Lisboa, que nos dez primeiros anos de gestão privada foi menos de metade do investimento realizado nos 10 últimos anos de gestão pública, o que transformou o aeroporto de Lisboa num dos piores da Europa.
Há que apurar as circunstâncias da compra das lojas francas à TAP.
Há que avaliar a dimensão do aumento escandaloso de taxas aeroportuárias praticadas com a privatização, e dos impactos desses aumentos na atividade económica em Portugal considerando a importância do transporte aéreo para a economia nacional.
Há que avaliar o impacto sobre os trabalhadores da ANA, a crescente precariedade, e recurso à subcontratação, a degradação salarial e de direitos, e o impacto destas políticas na vida dos trabalhadores e na resposta operacional da empresa.
Se tudo isto não justifica a realização de um inquérito parlamentar, não sabemos o que poderá justificar um inquérito parlamentar.
Disse.