A empresa pública ANA Aeroportos foi vendida em 2013 pelo Governo PSD/CDS. A forma utilizada para a vender foi um processo em duas fases: primeiro foi assinado com a ANA enquanto empresa pública um contrato de concessão por 50 anos da rede Aeroportuária nacional por 1200 milhões de euros, e depois foi a própria empresa vendida por 1127 milhões de euros com o valor criado pela concessão.
Este processo mereceu ampla oposição na altura. Daqueles que se opõem à privatização dos ativos estratégicos nacionais, mas também de muitos que não tendo essa posição de princípio não aceitavam a privatização da ANA em concreto. Na altura da privatização da ANA só um outro país da União Europeia – o Chipre – tinha a sua infraestrutura aeroportuária privatizada, apesar da imposição de venda partir da própria Comissão Europeia (uma das componentes da troika que assinou o Memorando de Entendimento com PS, PSD e CDS).
Como acontece com a generalidade destes processos, os contornos concretos da privatização foram completamente escondidos do povo português e da própria Assembleia da República. De tal forma que o Governo da altura se permitiu afirmar publicamente que tinha vendido a empresa por um valor (3,08 mil milhões de euros) muito superior ao valor efetivo de venda (1,127 mil milhões de euros). Os responsáveis políticos por este processo foram à data o Primeiro-Ministro Pedro Passos Coelho, o Ministro das Finanças Vítor Gaspar, o Ministro da Economia Álvaro Santos Pereira e o Secretário de Estado das Infraestruturas Sérgio Monteiro.
Entretanto, factos da maior relevância vieram alertar o povo português para o verdadeiro impacto desta privatização, e fazer despertar as maiores suspeitas sobre a forma e os objetivos do processo de privatização.
O primeiro facto foi o papel da ANA privatizada na oposição sistemática a qualquer tentativa de construção do Novo Aeroporto de Lisboa – NAL. Na altura da privatização, o país foi convencido que o NAL seria construído pela ANA mesmo depois de privatizada (alguns até juraram que seria graças à privatização). A realidade dos últimos 10 anos é que a multinacional Vinci demonstrou que não quer, de forma nenhuma, sair do Aeroporto Internacional Humberto Delgado, que considera altamente lucrativo para si. Ora, retirar o Aeroporto de dentro da Cidade de Lisboa é um objetivo que está assumido pelo Estado português desde 1971. A multinacional Vinci, agora detentora da ANA, tem agido sistematicamente para travar esse objetivo, e tem usado para esse fim os imensos recursos públicos de que se apropriou com a privatização.
A realização de uma Comissão Parlamentar de Inquérito torna-se incontornável perante um segundo facto: a publicação do Relatório do Tribunal de Contas – Relatório de Auditoria 16/2023 sobre a Privatização da ANA. Um relatório cujo conteúdo não pode ser ignorado, sob pena das graves conclusões que o mesmo retira não terem consequências, nem políticas, nem mesmo criminais. Este Relatório, que esta Assembleia da República solicitara em 2018, foi publicado a 5/1/2024, mais de dez anos depois da privatização e quase seis anos depois de ter sido solicitado. Ignorar o conteúdo e as implicações desse relatório transformaria a Assembleia da República num órgão conivente com um processo profundamente lesivo dos interesses nacionais.
Uma ordem de questões prende-se com o valor da venda da empresa. O TdC demonstrou que a venda se realizou por 1127,1 milhões, quando o anúncio público foi de 3,08 mil milhões. E o Tribunal de Contas ainda denuncia que foram oferecidos à Vinci os dividendos de 2012 no valor de 71,4 milhões de euros, quando em 2012 a empresa era pública. Há aqui três questões a apurar: a responsabilidade política de quem mentiu ao povo português, a responsabilidade financeira da Vinci que pode ter recebido um desconto ilegal e a responsabilidade criminal de quem ofereceu esse desconto.
Uma segunda ordem de questões prende-se com a avaliação prévia que era legalmente exigida, e que não foi realizada. O TdC primeiro aponta que a avaliação intempestiva não substitui a avaliação prévia legalmente exigida, depois constata que entre a avaliação intempestiva realizada e a venda, o Governo alterou as condições e o valor do ANA, ao introduzir um conjunto de alterações nos contratos e na lei durante o próprio processo de privatização. O Relatório evidenciou o desastroso negócio realizado, demonstrando que o conjunto de dividendos que a multinacional retirará ao longo da concessão será superior a vinte mil milhões de euros, e que a divisão de receitas entre a multinacional e o Estado (incluindo nas receitas do Estado o preço de venda e os valores a receber a partir de 10º ano de concessão, será, na melhor das hipóteses de 79% para a multinacional e 21% para o Estado, um valor absolutamente fora do vulgar, para mais tratando-se de um conjunto de infraestruturas já construídas.
Uma terceira ordem de questões levantadas pelo Tribunal de Contas está relacionada com a promiscuidade entre a gestão da administração pública e privada, tanto na fase de privatização como na fase de gestão privada. A primeira situação apontada pelo Tribunal de Contas é a nomeação da última Administração da ANA já depois de iniciado o processo de privatização, quando o lógico seria manter uma administração com experiência e conhecimento durante esse processo. Um mês depois de nomeada essa nova administração, a multinacional Vinci publicamente informa que irá contratar essa mesma administração para assumir a gestão privada da empresa, o que viria a ser concretizado, um ano depois, com a manutenção de todos os gestores «públicos» na gestão privada. Estes factos são depois agravados com as suas implicações, nomeadamente a mudança de posição da ANA sobre a proposta global da Vinci, que passa de «irrealista e irrealizável» para «a mais forte e a mais competitiva».
Por fim, coloca-se a questão da fidedignidade da documentação, expressamente levantada pelo Tribunal de Contas, que por diversas vezes dá conta da sua perplexidade por várias inconformidades na documentação entregue pela Parpública, que «revelam o risco material de deturpação de documentação processual» ou, noutra expressão, o «risco material de falta de fidedignidade de documentação processual».
Este conjunto de questões levantadas pelo Tribunal de Contas na sua Auditoria, e aqui apresentadas, seriam suficientes para a realização imediata de uma Comissão Parlamentar de Inquérito ao processo de privatização da ANA. A dissolução do Parlamento pelo Presidente da República impediu a apresentação dessa iniciativa, que se mantém tão atual como então.
Coloca-se ainda uma terceira e fundamental razão para a realização desta Comissão de Inquérito: a própria gestão privada, a forma como esta se tem desenvolvido, os prejuízos que tem trazido para o país e a necessidade de travar essa gestão, reverter a privatização e salvaguardar o interesse público. E as razões de queixa vão muito mais fundo que as já apontadas sobre o papel da multinacional na questão do NAL. É preciso constatar a queda brutal do investimento com a privatização (menos de metade do investimento realizado nos 10 primeiros anos de gestão privada face aos 10 últimos anos de gestão pública); constatar a profunda degradação do Aeroporto de Lisboa, transformado nestes 10 anos num dos piores da Europa; constatar a própria degradação da qualidade do serviço noutros Aeroportos Nacionais. É necessário apurar as condições concretas da «compra» das Lojas Francas à TAP, num processo de chantagem realizada em prejuízo de uma empresa nacional. É necessário ainda avaliar a verdadeira dimensão do aumento global de taxas praticada com a privatização, e dos impactos desses aumentos na atividade económica em Portugal; avaliar o impacto sobre os trabalhadores da ANA, a crescente precariedade, e recurso à subcontratação, a degradação salarial e de direitos, e o impacto destas políticas na vida dos trabalhadores e na resposta operacional da empresa. Tudo isto sem esquecer, e exatamente tendo em conta, a importância do transporte aéreo para a economia nacional.
É indispensável, portanto, analisar e escrutinar com rigor o processo de privatização da ANA Aeroportos, e nomeadamente apurar:
- Foram cometidas ilegalidades no processo de privatização, incluindo no processo de entrega da concessão à ANA dos aeroportos, como aponta o Tribunal de Contas?
- Essas ilegalidades cometidas, foram cometidas por quem? Quais os efeitos jurídicos dessas ilegalidades sobre a concessão e sobre a privatização?
- Quais as causas concretas para o atraso extraordinário na realização desta Auditoria? Quais as dificuldades geradas pelo facto de o Decreto-Lei de privatização apenas salvaguardar a documentação por cinco anos? O que significa estar em causa «a fidedignidade da documentação» como alerta o TdC? Quais os responsáveis por essa situação? Que medidas é possível realizar para repor a fidedignidade da documentação?
- A informação pública dada ao povo português – de que o preço de venda havia sido de 3,08 mil milhões de euros – resultou de uma ação intencional para enganar o povo português?
- Quem autorizou e qual a legalidade do desconto de 71,4 milhões de euros feito ao preço de compra?
- Qual o grau de consciência dos diferentes decisores sobre o péssimo negócio que estava a ser conduzido pelo Estado Português – perdas em 50 anos de cerca de 20 mil milhões, além das dificuldades acrescidas de decisão nas questões estratégicas do sector?
- No processo de privatização, sobre o futuro do Aeroporto Internacional Humberto Delgado e a necessidade do seu progressivo encerramento, houve má-fé negocial da Vinci, ou foi o Estado português (e por intermédio de quem) que aceitou deixar cair esse objetivo estratégico nacional?
- O conjunto de atitudes da Vinci na questão do Aeroporto Internacional de Lisboa revela apenas o comportamento natural e inaceitável de uma multinacional apenas preocupada com os seus lucros e dividendos, ou revela também a submissão a objetivos estratégicos de outro Estado nacional?
- Que critérios presidiram à nomeação do último Conselho de Administração da ANA enquanto empresa pública? Por que razão se decidiu nomear um CA diferente para conduzir a privatização? Por que razão o Estado português manteve a confiança nesse CA quando a multinacional Vinci anunciou publicamente, um mês depois, a sua contratação para se manterem na gestão privada caso fosse ela a ficar com o direito de receber a ANA, como veio a acontecer?
- Por que razão o Governo escolheu para presidir à NAV e à ANAC dois membros do Conselho de Administração em gestão privada da ANA (Jorge Ponce de Leão e Luis Ribeiro)? Porque manteve essa sua opção, mesmo quando sucessivamente alertado para a incompatibilidade gerada? Que decisões – sobre a ANA e sobre o NAL – foram de facto tomadas por essas duas instituições no período de gestão desses dois administradores, e quais os impactos dessas decisões? Quais os «impactos materiais» sobre a Auditoria do TdC destas incompatibilidades?
- Qual a avaliação da gestão privada da ANA? Qual a queda de investimento nos Aeroportos nacionais depois da privatização? Qual o aumento de taxas registado nos Aeroportos nacionais com a privatização? Quais as razões para o número de trabalhadores da Ana diminuir, particularmente na relação número de trabalhadores por número de voos e de passageiros? Qual o impacto da crescente precariedade nos Aeroportos nacionais? Quais as verdadeiras razões para a «venda» das Lojas Francas de Portugal à ANA? Quais as causas da profunda degradação do funcionamento do Aeroporto Internacional Humberto Delgado com a privatização? Quais as responsabilidades da multinacional?
- É necessário realizar a renacionalização da ANA? Qual a melhor forma de proceder?
Assim, o Grupo Parlamentar do PCP vem propor, ao abrigo da Lei n.º 5/93, de 1 de Março, republicada pela Lei n.º 15/2007, de 3 de Abril, e da alínea i) do artigo 8.º do Regimento da Assembleia da República, a criação de uma Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar nos termos previstos nos artigo 233.º a 237.º do Regimento da Assembleia da República, pelo prazo de 120 dias, tendo por objeto apurar as responsabilidades políticas e administrativas dos Governos e dos Conselhos de Administração da ANA Aeroportos que envolveram a privatização da empresa e as suas implicações para o Estado e a gestão da rede aeroportuária nacional.