Exposição de motivos
O regime jurídico do contrato de trabalho de serviço doméstico está previsto no Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de outubro, que foi revisto pela primeira vez em 2023, pela Lei n.º 13/2023, de 13 de abril.
Apesar de Portugal ter ratificado, em 2015, a Convenção n.º 189 da OIT, sobre trabalhadores e trabalhadoras do serviço doméstico, através da Resolução da Assembleia da República n.º 42/2015, de 27 de abril, a legislação nacional não foi alterada em conformidade com as disposições desta Convenção e, mesmo com as alterações introduzidas em 2023, o referido regime jurídico continua em desconformidade com algumas das previsões da Convenção.
Consequentemente, o regime em vigor, além de ser manifestamente insuficiente, nomeadamente por deixar de fora vários aspetos que carecem de ser regulados, como a idade mínima de admissão ao serviço doméstico, o regime da cessação do contrato de trabalho ou as condições de alojamento quando este for na residência do agregado familiar.
Acrescem a falta de garantias e formas de proteção contra todas as formas de abuso, assédio e violência e as condições em que a inspeção do trabalho pode ter acesso ao domicílio dos agregados familiares, a fim de fiscalizar as condições de trabalho.
Tal como atualmente regulado, o contrato de trabalho para serviço doméstico mantém características manifestamente inaceitáveis à luz dos princípios legais atuais, prevendo, num conjunto de situações, que os interesses do empregador e do respetivo agregado familiar se sobrepõem aos direitos do trabalhador de serviço doméstico. O facto é que, tais características determinam que os trabalhadores de serviço doméstico tenham, em geral, menos direitos que os demais trabalhadores de outros sectores.
O presente Projeto de Lei pretende inverter a situação e caminhar no sentido se eliminar o atual regime do contrato do serviço doméstico, tornando aplicável a estes trabalhadores o regime geral do contrato de trabalho e introduzindo, neste regime geral, as regras especificas e excecionais aplicáveis às relações de trabalho em atividades desenvolvidas no domicílio dos empregadores, concretamente através da previsão normativa de uma nova modalidade contratual.
Fora deste projeto fica o regime laboral aplicável aos trabalhadores que prestam serviços domésticos por conta de empresas (ou seja, entidades com fins lucrativos), sejam empresas convencionais ou plataformas digitais – uma vez que, neste caso, não se trata de contrato de trabalho de serviço doméstico, mas de contrato de trabalho que se rege integralmente pelo regime geral previsto no Código do Trabalho.
Além do reforço nos direitos laborais, é fundamental garantir aos trabalhadores do serviço doméstico uma proteção social condigna e ao nível da conferida aos demais trabalhadores, nomeadamente procedendo à alteração da base de incidência contributiva do IAS para a RMMG, aumentando assim a proteção na eventualidade de desemprego, doença, doença profissional, parentalidade e reforma.
O reforço da proteção social dos trabalhadores do serviço doméstico é, portanto, de elementar justiça, devendo equiparar-se à proteção de que gozam os trabalhadores incluídos no regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.
Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português apresentam o seguinte projeto de lei:
Artigo 1.º
Objeto
- A presente lei estabelece o regime jurídico do Contrato Individual de Trabalho para Serviço Doméstico, procedendo à alteração do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua redação atual, e à incorporação deste regime no regime geral.
- A presente lei procede ainda à alteração do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, na sua redação atual.
Artigo 2.º
Aditamento
É aditado ao Título II, Capítulo I, Secção IX (Modalidades de Contrato de Trabalho) do Código do Trabalho, a Subsecção VII, constituída pelos artigos 192.º-A a 192-K, com a seguinte redação:
«Subsecção VII – Contrato de Trabalho para Serviço Doméstico
Artigo 192.º - A
Definição de contrato de trabalho para serviço doméstico
- Contrato de serviço doméstico é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a outrem, com carácter regular, sob a sua direção e autoridade, atividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de um agregado familiar, ou equiparado, e dos respetivos membros, nomeadamente:
- Confeção de refeições;
- Lavagem e tratamento de roupas;
- Limpeza e arrumo de casa;
- Vigilância e assistência a crianças, pessoas idosas e doentes;
- Tratamento de animais domésticos;
- Execução de serviços de jardinagem;
- Execução de serviços de costura;
- Outras atividades consagradas pelos usos e costumes;
- Coordenação e supervisão de tarefas do tipo das mencionadas neste número;
- Execução de tarefas externas relacionadas com as anteriores.
- O regime previsto no presente diploma aplica-se, com as necessárias adaptações, à prestação das atividades referidas no número anterior a pessoas coletivas de fins não lucrativos, ou a agregados familiares, por conta daquelas, desde que não abrangidas por regime legal ou convencional.
- Não se considera serviço doméstico a prestação de trabalhos com carácter acidental, a execução de uma tarefa concreta de frequência intermitente ou o desempenho de trabalhos domésticos em regime “au pair”, de autonomia ou de voluntariado social.
- A presente modalidade contratual está vedada à sua utilização por pessoas coletivas com fins lucrativos.
192.º - B
Forma
O contrato de serviço doméstico não está sujeito a forma especial, salvo no caso de contrato a termo.
192.º - C
Contrato a termo
- Ao contrato de serviço doméstico pode ser aposto termo, certo ou incerto, quando se verifique a natureza transitória, superveniente ou temporária do trabalho a prestar, conforme previsto nas seguintes alíneas:
- Caracter temporário previsível das atividades contratadas;
- Necessidade de substituição temporária de trabalhador doméstico.
- O contrato de serviço doméstico pode ainda ser celebrado a termo certo quando as partes assim o convencionarem, desde que a sua duração, incluindo as renovações, não seja superior a um ano.
- Nas situações previstas no n.º 1, na falta de estipulação escrita do prazo considera-se que o contrato é celebrado pelo período em que persistir o motivo determinante invocado.
- A não verificação dos requisitos de justificação, quando exigidos, ou a falta de redução a escrito, no caso do n.º 2, tornam nula a estipulação do termo, convertendo-se o mesmo em contrato sem termo.
- Constitui contraordenação muito grave a violação das disposições previstas nos números anteriores.
192.º - D
Renovação do termo
- O contrato de trabalho a termo certo pode ser objeto de duas renovações, considerando-se o contrato renovado se o trabalhador continuar ao serviço para além do prazo estabelecido.
- Se o trabalhador continuar ao serviço da entidade empregadora após o decurso de 15 dias sobre a data do termo da última renovação do contrato ou da verificação do evento que, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, justificou a sua celebração, o contrato converte-se em contrato sem termo.
192.º - E
Modalidades de contrato para serviço doméstico
- O contrato para serviço doméstico pode ser celebrado segundo as modalidades com ou sem alojamento e com ou sem alimentação.
- Entende-se por trabalhador alojado, para os efeitos deste diploma, o trabalhador cuja retribuição em espécie preveja uma componente paga sob a forma de alojamento ou de alojamento e alimentação.
- O contrato para serviço doméstico pode ser celebrado para prestação de trabalho a tempo inteiro ou a tempo parcial.
Artigo 192.º - F
Período experimental
- No caso de cessação do contrato durante o período experimental, deve ser concedido ao trabalhador alojado um prazo não inferior a quinze dias para abandono do alojamento.
- Constitui contraordenação grave a violação do disposto no número anterior.
Artigo 192.º - G
Condições de alojamento
- Na modalidade de contrato de trabalho para serviço doméstico com alojamento, o alojamento deve compreender, no mínimo, a observância dos seguintes requisitos:
- O alojamento deve ser constituído por uma divisão independente das restantes divisões da casa em que é prestado o serviço, ou em local exterior independente, determinado pelo empregador.
- Ao trabalhador doméstico devem ser dadas as necessárias garantias de privacidade, acesso livre e exclusivo ao seu alojamento, garantindo a reserva de intimidade da sua vida privada nos termos da lei e dos usos aplicáveis.
- O alojamento deve garantir condições de habitabilidade, conforto, e limpeza comparáveis aos estabelecidos para a restante habitação, bem como as condições de salubridade, segurança e espaço condigno, adequado ao uso e fruição pelo trabalhador.
- Ao trabalhador alojado devem ser dadas garantias de receção de correspondência, a respetiva integridade e inviolabilidade.
- Constitui contraordenação muito grave a violação das disposições previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1.
- Constitui contraordenação grave a violação da alínea d) do n.º 1.
Artigo 192.º - H
Tempo de Trabalho
- O tempo de disponibilidade no exercício de tarefas que a tal obriguem conta, para todos os efeitos, como tempo efetivo de trabalho.
- A fixação dos tempos de disponibilidade está sujeita ao acordo entre as partes, devendo estabelecer-se de forma que não constitua prejuízo sério para o trabalhador contratado para serviço doméstico.
Artigo 192.º - I
Inspeção
- Sem prejuízo da competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral na inspeção do cumprimento das normas reguladoras do regime de trabalho para serviço doméstico, as ações de fiscalização que impliquem visitas de autoridades inspetivas ao local de trabalho requerem a comunicação da sua realização com a antecedência mínima de 48 horas.
- O serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral pode estabelecer, em conjunto com a entidade empregadora, formas alternativas de controlo e fiscalização.
Artigo 192.º - J
Idade de Admissão
O contrato de trabalho para serviço doméstico só pode ser celebrado com trabalhador maior de idade, nos termos da legislação aplicável.
Artigo 192.º - K
Subsidiariedade
Aplicam-se subsidiariamente, às matérias omissas reguladoras do contrato de trabalho para serviço doméstico, as disposições previstas no Código do Trabalho.
Artigo 3.º
Alteração ao Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social
Os artigos 118.º, 119.º, 120.º e 121.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado em anexo à Lei n.º Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, na sua redação atual, passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 118.º
Âmbito material
- Os trabalhadores do serviço doméstico têm direito à proteção na maternidade, paternidade e adoção, desemprego, doença, doenças profissionais, invalidez, velhice e morte, de acordo com o especificamente regulado para cada eventualidade.
- (Revogado).
Artigo 119.º
Base de incidência contributiva do trabalho em regime horário e diário
- […].
- Para efeitos contributivos, os valores da remuneração por dia e por hora são calculados sobre a importância que constitui a base de incidência referida no número anterior, de acordo com as seguintes fórmulas: Rd = RMMG/30 Rh = (RMMGx12)/(52x40)
- Nas fórmulas previstas no número anterior, Rd corresponde ao valor da remuneração diária, RMMG à retribuição mínima mensal garantida e Rh ao valor da remuneração horária.
- […].
- (Revogado).
Artigo 120.º
Base de incidência contributiva para trabalho mensal em regime de tempo completo
- A base de incidência contributiva dos trabalhadores contratados ao mês em regime de tempo inteiro corresponde à remuneração ilíquida efetivamente auferida nos termos do disposto nos artigos 44.º e seguintes.
- (Revogado).
- […].
- Para efeitos do número anterior, tratando-se de remuneração convencional, a remuneração diária é determinada nos termos do disposto no n.º 1 do artigo anterior.
- (Revogado).
Artigo 121.º
Taxa contributiva
- A taxa contributiva relativa aos trabalhadores do serviço doméstico é de 33,3 %, sendo, respetivamente, de 22,3 % e de 11 % para as entidades empregadoras e para os trabalhadores.
- (Revogado).
- (Revogado).».
Artigo 4.º
Regulamentação
No prazo de um ano após a aprovação da presente lei, é revisto o regime de proteção social para que o trabalho doméstico passe a integrar o regime geral da Segurança Social previsto para os trabalhadores por conta de outrem.
Artigo 4.º
Norma revogatória
São revogados:
- O Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de outubro, na sua redação atual, que estabelece o regime jurídico das relações de trabalho emergentes do contrato de serviço doméstico;
- o n.º 2 do artigo 118.º, o n.º 5 do artigo 119.º, os n.º 2 e 5 do artigo 120.º e o n.º 2 do artigo 121.º, todos do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, na sua redação atual.
Artigo 5.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor 30 dias após a sua publicação.