Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"Este é um Orçamento inaceitável, que tem contra si a esmagadora maioria dos portugueses"

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Orçamento do Estado para 2014
(proposta de lei n.º 178/XII/3.ª)

Sr.ª Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
Uma diferença entre este Orçamento do Estado e os dois anteriores é que o todo-poderoso Ministro das Finanças que os veio defender já cá não está. E não está cá porque, como reconheceu no seu breve testamento político, a política que impôs ao País falhou clamorosamente nos seus objetivos.
Na sua carta de demissão, deliberadamente esquecida para fazer esquecer a demissão irrevogável que se lhe seguiu, Vítor Gaspar assumiu o falhanço no cumprimento dos limites originais do programa para o défice e a dívida, que atribuiu à «queda muito substancial da procura interna» e que, nas palavras do próprio, minou a sua credibilidade como Ministro das Finanças.
A verdade, porém, é que, se o anterior Ministro das Finanças já cá não está, a sua política permanece intacta e agravada neste Orçamento do Estado. Vítor Gaspar saltou da carruagem, mas os seus ocupantes continuam a todo o galope pelo mesmo caminho, indiferentes ao precipício para onde arrastam Portugal e os portugueses.
Este Orçamento do Estado para 2014 contém tudo o que houve de pior nos dois anteriores.
Dissemos aqui, há um ano, que o Orçamento para 2013 não iria resolver nenhum dos problemas nacionais, agravaria a dívida pública e teria consequências devastadoras no plano económico e social. A realidade aí está para o demonstrar.
No discurso do «novo ciclo» com que tenciona enganar os portugueses, o Governo fala em sinais animadores para a economia e apela a um último esforço até à saída da troica, data em que Portugal recuperaria a soberania económica. Mas, entre o discurso do Governo e os factos da vida, os trabalhadores, os jovens, os reformados, todos os que fazem parte da imensa maioria que sofre as consequências da política do Governo sabem que a realidade não engana. Por muito que a propaganda governamental afirme aos quatro ventos que tudo está a melhorar, os portugueses sabem que, com este Governo, cada ano que passa é pior que o anterior.
O que caracteriza este Orçamento não é qualquer perspetiva de melhoria na situação de Portugal e dos portugueses. O que caracteriza este Orçamento é o agravamento do saque fiscal às famílias e às micro, pequenas e médias empresas; é a acentuação da exploração do trabalho; é a desumanidade dos cortes de salários e pensões; é a venda ao desbarato do mais valioso património empresarial do Estado; é a redução e a eliminação das prestações sociais; é a degradação insuportável das condições de prestação pelo Estado das suas funções sociais fundamentais na saúde, na educação, na justiça, na segurança pública.
As medidas de austeridade, sempre apresentadas como transitórias, mas cujo carácter definitivo é cada vez mais mal disfarçado, prosseguem e agravam-se, agudizam a crise, criam milhares e milhares de novos pobres e recaem sempre sobre os trabalhadores e o povo, vítimas de um saque a distribuir pela banca, pelos especuladores e pelos grandes grupos económicos.
Ao contrário do que o Governo tantas vezes afirma, não há neste Orçamento nenhuma repartição de sacrifícios.
Há sacrifícios para os que sempre foram sacrificados e há benefícios para os que sempre foram beneficiados. Aplausos do PCP.
Enquanto 82% da consolidação orçamental é obtida à custa dos trabalhadores, dos reformados e dos pensionistas, o esforço adicional exigido à banca e ao setor energético representa apenas 4% dessa consolidação e não deixará de ser compensado com as prebendas com que a reforma do IRC se prepara para agraciar os grandes grupos económicos.
Perante a enorme tragédia social que a sua política está a provocar, o Governo e a maioria que aqui o suporta não têm outra desculpa que não seja o discurso da pesada herança do Governo anterior, que entregou o País nas mãos da troica, tentando fazer esquecer as pesadas responsabilidades que assumiram no passado, com as opções que subscreveram, com os Orçamentos que viabilizaram, com os PEC que aprovaram e com o Memorando que também apoiaram.
Nenhum dos três partidos que governaram o País nas últimas décadas pode ser isento de responsabilidades pela grave crise em que o mergulharam, mas um Governo que se prepara para fazer aprovar o seu terceiro Orçamento do Estado não pode apresentar-se perante esta Assembleia e perante o País no papel da vítima indefesa, como se fosse inimputável, como se não tivesse nenhuma responsabilidade no trágico agravamento das condições de vida de milhões de portugueses.
Esse verdadeiro pacto de agressão contra o nosso povo, que é o Memorando da troica, nunca foi assinado para que o Estado português tivesse dinheiro para pagar salários e pensões. Aliás, desde que o Memorando foi assinado, o que o Estado mais fez foi cortar salários, pensões e prestações sociais.
O Memorando foi assinado para que os bancos portugueses se pudessem recapitalizar à custa dos sacrifícios impostos aos trabalhadores e aos reformados, para que os culpados da crise pudessem beneficiar dela, para que os especuladores com a dívida pública pudessem receber até ao último cêntimo o produto da sua agiotagem.
O Memorando foi assinado para pôr em prática os planos da direita portuguesa, da União Europeia e do FMI, de reconfigurar o Estado à medida dos interesses do grande capital, à custa do empobrecimento dos trabalhadores e do desmantelamento das funções sociais do Estado.
Ao contrário do que afirma o Governo, não é este Orçamento que nos vai livrar da troica e que nos vai devolver a soberania perdida. O artigo 239.º deste Orçamento consagra, sem margem para dúvidas, o princípio da austeridade para além da troica. Com ou sem troica, a partir de junho de 2014, as medidas de austeridade constantes do Memorando são para levar por diante até ao final do ano, e no que deste Governo depender até à eternidade.
Sr.ª Presidente, a discussão na especialidade, que hoje terminamos, não serviu para melhorar a péssima proposta que o Governo apresentou.
As promessas de melhoramento que os partidos da maioria anunciaram na sequência das suas jornadas parlamentares, acabaram por ficar no tinteiro. O tão celebrado imposto sobre as PPP, anunciado pela maioria, fez marcha-atrás por imposição do Governo, alegadamente para não prejudicar as brilhantes renegociações em curso, nas quais o Governo conseguiu obter a proeza de só deixar aumentar em 800 milhões de euros os encargos com as PPP em 2014. Decididamente, é mais fácil cortar salários e cortar pensões.
E até o IVA da restauração, cuja reposição nos 13% era uma bandeira dos dirigentes do CDS que não faziam parte do Governo, foi obedientemente enrolada e arrumada no baú das decisões irrevogáveis.
Indiferente à devastação que está a causar no setor da restauração, com a falência de milhares de micro e pequenas empresas, o Governo insiste em manter o IVA a 23%, talvez para ser diferente da Grécia, onde o IVA da restauração é de 13%.
Mas dirão os Srs. Deputados da maioria que os cortes salariais que o Governo propunha que fossem feitos a partir dos 600 € por mês, só serão feitos a partir dos 675 €. Não é grande motivo de orgulho, Srs. Deputados. O que caracteriza este Orçamento não é que não haja cortes nos salários entre os 600 e os 675 €. O que caracteriza este Orçamento é que os cortes salariais, que em 2013 afetavam os salários acima dos 1500 €, passam a incidir sobre salários acima dos 675 € brutos.
Cortar salários a trabalhadores que nem 600 € levam para casa ao fim de um mês de trabalho ficará para a posteridade como uma das marcas mais infamantes deste Orçamento do Estado.
Não digam os Srs. Membros do Governo e os Srs. Deputados da maioria que não há alternativa a este Orçamento do Estado. Alternativa há, mas os senhores rejeitam-na. O Grupo Parlamentar do PCP apresentou, na especialidade, um conjunto de propostas com o objetivo de tornar este Orçamento menos injusto. O PCP propôs um regime de renegociação da dívida pública que, assumindo o pagamento da dívida pública legítima e considerando a necessidade de alargamento dos prazos de pagamento, estabelecesse como limite para o pagamento de juros em 2014 um montante máximo correspondente a 2,5% do valor das exportações de bens e serviços. O PCP propôs que, em 2014, fossem transferidas para as entidades concessionárias das PPP apenas as receitas obtidas com a exploração, acrescidas dos recursos adicionais necessários para a prestação dos serviços e a manutenção dos postos de trabalho. O PCP propôs a anulação dos contratos swap ainda existentes entre entidades públicas e o Banco Santander, eliminando as perdas potenciais que lhes estão associadas.
A maioria rejeitou tudo. Os contratos entre o Estado e o grande capital são sagrados e intocáveis. Os salários dos trabalhadores e as pensões que os aposentados auferem após uma vida inteira de trabalho e de descontos podem ser cortados sem contemplações.
Sr.ª Presidente, este é o terceiro Orçamento do Estado desta maioria. Os dois primeiros foram declarados inconstitucionais. O terceiro insiste em manter e agravar o pior dos anteriores.
Ao insistir em cortes de salários e pensões a título definitivo, incidindo sobre salários exíguos, ao nível dos 600 €, o Governo afronta claramente os limites fixados pela jurisprudência constitucional para a aplicação dos princípios da igualdade e da proteção da confiança em matéria de cortes salariais.
Indiferente à ordem constitucional democrática em que vivemos, o Governo prefere manter uma atitude de permanente confrontação com princípios basilares do Estado de direito democrático e faz letra morta do respeito que é devido ao princípio da igualdade, ao princípio da proteção da confiança ou ao princípio da proibição do excesso em matéria de restrições a direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
Ao insistir em medidas cuja inconstitucionalidade é evidente, e não podendo ignorar essa evidência, o Governo não pode deixar de assumir todas as responsabilidades pelas consequências de uma eventual declaração de inconstitucionalidade de normas do Orçamento de Estado, o que a ocorrer, ocorrerá — sublinhe-se — pela terceira vez consecutiva.
O mesmo se diga quanto às normas com incidência orçamental, como a chamada «convergência das pensões», que, até pelo seu caráter retroativo, se mais não houvesse, constitui uma grosseira afronta ao princípio constitucional da proteção da confiança inerente ao Estado de direito democrático.
Sr.ª Presidente,
Seja qual for o destino imediato deste Orçamento na Assembleia da República ou, mesmo, no Tribunal Constitucional ele está condenado à derrota.
Trata-se de um Orçamento inaceitável, que tem contra si a esmagadora maioria dos portugueses. Tem contra si os trabalhadores, os reformados, os jovens, os pequenos empresários, os agricultores, os taxistas e a generalidade dos sectores profissionais afetados pela política do Governo, como os profissionais da saúde, da educação, da justiça, da generalidade dos serviços públicos, das forças e serviços de segurança, das Forças Armadas.
Este Governo e este Orçamento têm contra si uma ampla frente social de luta, construída por milhares e milhares de portugueses, que daqui saudamos, que não se conformam com este rumo de empobrecimento e de desastre nacional e que, hoje mesmo, estão na rua, aqui à porta e por todo o País, para derrotar este Governo e para construir uma alternativa que, mais cedo do que tarde, acabará por se impor, por Portugal e pela democracia.

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