Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Audição «O Estado para cumprir a Constituição»

O Estado para cumprir a Constituição

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A designação escolhida para esta audição – «o Estado para cumprir a Constituição» – constitui sem dúvida um ponto de partida de inegável actualidade e sentido político.

Em primeiro lugar porque põe em evidência os objectivos que ao Estado cumpriria preencher para efectivar o que a Constituição da República dispõe para o ordenamento económico, social, político e cultural, e para garantir a soberania e independência nacionais.

E também porque evidencia, por contraste e em colisão com o comando constitucional, o que o processo de reconfiguração do Estado, ao serviço dos interesses do grande capital nacional e transnacional, representa de negação de direitos, princípios e valores, de destruição de conquistas alcançadas com a Revolução de Abril.

Não será o momento, nem o propósito desta audição, para uma consideração mais desenvolvida sobre a natureza de classe do Estado. Embora se justifique deixar anotado que as teses que por aí abundam sobre Estado neutro ou regulador, vagueando alegadamente acima das coisas e bens, “interesse público e nacional” e “bem-estar geral” que o Estado em abstracto estaria mandatado para realizar, visam rasurar a dimensão e natureza de classe do Estado e do seu papel nas formas de dominação de classe, e instrumento para assegurar, no quadro do capitalismo, o prosseguimento das relações de produção baseadas na exploração.

Não nos fixaremos também na abordagem particularizada do real significado e alcance do chamado Guião para a Reforma do Estado apresentado por Paulo Portas, há um ano atrás, em nome do actual Governo. Mas justifica-se, perante o propósito desta “reforma”, dos seus pressupostos e dos seus objectivos políticos e ideológicos, que alertemos para o que eles significam de novos desenvolvimentos da política de direita e de ambição na concretização de novos patamares de afrontamento, se não de subversão constitucional.

Sublinhar cinco aspectos mais em particular.

Um primeiro de dimensão económica. A Constituição da República Portuguesa aponta para a existência de uma economia mista – baseada num forte e dinâmico sector empresarial do Estado e num papel fundamental das pequenas e médias empresas – indispensável ao desenvolvimento económico, ao progresso social e à independência nacional. O que hoje conhecemos – em confronto com o texto constitucional – é uma situação caracterizada no plano económico por uma verdadeira ditadura dos grupos monopolistas associados, muitos deles dependentes, do grande capital estrangeiro, que está a conduzir à ruína as pequenas e médias empresas e à desqualificação e destruição da presença Estado na actividade económica nacional e, como consequência, à total sujeição dos interesses estratégicos nacionais, aos estritos interesses desses grupos monopolistas e ao seu posicionamento na economia global.

Uma dominação construída e disfarçada sob a capa da “ concertação”, da regulação” ou de ”mecanismos de supervisão”, sempre dirigida, por quem comanda o Estado, para favorecer o processo de acumulação de lucros ao grande capital. Sempre iludindo e escondendo, na base de um colossal suporte de difusão ideológica, que o Estado é reflexo da base económica e que da relação biunívoca destes se baseia o essencial que determina um uso do Estado ao serviço da base económica capitalista favorecendo e promovendo os interesses associados a esse modo de produção e a representação desses interesses na configuração do Estado e dos órgãos de poder – legislativo, executivo, judicial - que lhe dão corpo.

Exemplo claro da imperiosa necessidade do controlo público sobre os sectores estratégicos é a necessidade de assegurar uma política de crédito que, ao invés da actual, guiada pela lógica dos interesses do sector financeiro, vá ao encontro das reais necessidades de financiamento das pequenas e médias empresas e dos sectores produtivos e do desenvolvimento do País ou, para dar outro exemplo, a necessidade da alteração das condições em que é fornecida a energia aos sectores produtivos e às pequenas e médias empresas, um sector onde imperam em exclusivo os interesses dos monopólios.

Um segundo, sobre a sua organização e a sua expressão na Administração. A Constituição da República ao definir uma Administração Pública com determinadas funções e papel, faz uma opção clara a favor de um Estado prestador de serviços públicos e de funções sociais, assegurando assim a persecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e pelos princípios da igualdade e justiça. Uma Administração Pública capaz de assegurar a gestão diversificada, qualificada e eficaz dos recursos públicos de acordo com as necessidades do desenvolvimento do País constitui uma das condições essenciais para a condução de uma política que pretenda concretizar os principais direitos do povo português. A prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses dos cidadãos que a Constituição lhe incumbe devia pois constituir o objectivo essencial de qualquer reforma da Administração Pública.

Isso implica desde logo e no que respeita aos trabalhadores da Administração Pública, suporte fundamental para a concretização de tais direitos e interesses das populações e ao contrário do que tem vindo a ser feito, alterar a política de admissão de pessoal, dotando os serviços com os meios humanos necessários à garantia de um serviço público de qualidade, pôr fim à crescente precariedade das relações laborais e, designadamente, promover o imediato descongelamento das carreiras, criando assim condições para que o País tenha uma Administração Pública com trabalhadores motivados e serviços capazes de prestar o serviço público a que os portugueses aspiram.

A realidade portuguesa, moldada por mais de 38 anos de política de direita, testemunha não só o domínio do Estado por parte do poder monopolista com a retoma do seu poder económico – decorrente em grande parte do processo de privatizações – como explica os avanços na destruição da concepção de Estado e Administração Pública consagrados na Constituição. É neste quadro que se insere o processo em curso de desmantelamento da Administração Pública visando a adaptação da administração do Estado ao novo estádio de desenvolvimento do capitalismo monopolista, reduzindo-a ao mínimo. Bem como a deliberada destruição do vínculo público de emprego inerente às funções que estão atribuídas constitucionalmente aos funcionários e agentes do Estado para o cumprimento dos serviços e funções que lhe estão cometidas pela Constituição.

É este caminho que urge inverter garantindo as condições à Administração Pública – desde logo dos meios humanos indispensáveis – para garantir os direitos constitucionalmente consagrados.

Um terceiro aspecto, associado não estritamente ao Estado mas à sua organização democrática – o da descentralização administrativa, em particular o papel e lugar do Poder Local democrático, cujo edifício constitucional se encontra por cumprir e realizar com a ausência das regiões administrativas. A ofensiva que há décadas é dirigida contra a autonomia administrativa e financeira das autarquias faz parte do ataque mais geral aos direitos e interesses populares. Reduzir a sua capacidade financeira e de realização, retirar-lhe meios (a começar pela redução imposta em matéria de emprego público na administração local, o empobrecimento democrático que a liquidação de mais de um milhar de freguesias é prova mais notória, a ambicionada perversão do seu carácter plural e colegial são parte dessas limitações que atingem sobretudo as populações e as sua condições de vida). Afirmar o Poder Local no conjunto das suas expressões é valorizar a democracia, favorecer a resposta pública às aspirações e direitos das populações, realizar o que a Constituição da República estatui.

Neste plano e, no imediato, impunha-se a urgente desgovernamentalização da gestão dos fundos comunitários e assegurar o efectivo acesso das Autarquias aos meios financeiros disponíveis, visando acelerar a concretização dos muitos projectos que têm em carteira visando o desenvolvimento local. Uma medida que exige ser complementada com o reforço da capacidade financeira dos municípios e freguesias de forma a poderem responder aos interesses e aspirações das populações.

Um quarto aspecto, relativo ao Estado enquanto elemento estruturante da soberania e independência nacionais.

A crescente e assumida subordinação externa que os promotores da política de direita têm imposto, articulada e integradamente com o processo de integração capitalista europeu constitui hoje um factor de amputação do direito ao desenvolvimento soberano do País. Sob a teorização de uma «partilha voluntária da soberania», desde logo a confissão de uma assumida submissão externa do País como doutrina e política oficial, se instala a estratégia de dominação pelos interesses do grande capital transnacional que, já não confinada nos limites do Estado-Nação, tem no entrelaçamento internacional do Estado um elemento para manter e prolongar a natureza de classe da sua intervenção.

Hoje já não é só nos limites do Estado-Nação que se desenvolvem e promovem as políticas que, fundindo poderes político e económico, cria condições a uma concentração e centralização forçadas para lá do que a simples dinâmica da regra da concorrência permitiria. A elas somam-se, talvez com peso determinante, as decisões e orientações que, com origem em instâncias supranacionais comandadas pelo grande capital transnacional, da União Europeia ao Fundo Monetário Internacional, visam assegurar que os Estados se conformem com esses objectivos, seja por via da promoção de políticas supranacionais ou da facultação de instrumentos regulamentares ou monetários, seja por via de processos de chantagem e subtracção de parcelas de soberania, que articuladamente classes e poderes dominantes nacionais e supranacionais promovem e consagram.

Esta é uma realidade que não prescinde da luta e acção convergente dos povos e da iniciativa das forças que, como o PCP, não abdicam de procurar as vias para a libertação da sistemática ingerência externa à afirmação de um projecto de desenvolvimento soberano ao serviço dos povos. É neste quadro de procura de soluções que o PCP tem proposto e vai continuar a lutar pela realização de uma conferência Intergovernamental para tratar da resolução do problema da dívida e dos constrangimentos impostos pelo Tratado Orçamental ao desenvolvimento de países como Portugal.

A ruptura com a dependência e subordinação externas - nas suas variadas expressões, dimensões e domínios de política de Estado – constitui uma condição crucial para a afirmação da independência e soberania nacionais. Em áreas nucleares do Estado como a Política de Defesa, assiste-se em confronto com a Constituição à lógica da prevalência na inserção e participação externa. Insiste-se na aplicação de um conceito de Segurança nacional visando misturar Forças Armadas e Segurança Interna. Prossegue a comunitarização das respectivas políticas alienando crescentes parcelas de soberania.

Finalmente, um quinto aspecto. Inseparável do conjunto de todos os outros anteriores, assistimos à intensificação do ataque à democracia que está a conduzir a uma profunda degradação do funcionamento do regime democrático.

O poder económico sobre o poder político revelou de forma muito nítida renovadas teias de promiscuidade entre cargos públicos e interesses privados, novos casos de corrupção e de fraude económica e financeira que há muito alimentam o processo restauração do capital monopolista e o seu domínio sobre a vida nacional.

Por outro lado, assistimos hoje à multiplicação de casos de violação do exercício de direitos e liberdades, visando impedir ou limitar o direito à greve, de reunião, manifestação e de propaganda, ao mesmo tempo que verificamos um crescente processo de concentração de órgãos da comunicação social nas mãos de um restrito número de grupos económicos.

No domínio da Justiça, a política do governo do PSD/CDS acentuou o carácter de classe de uma justiça discriminatória, de difícil acesso às populações de menores recursos. O País conheceu uma particular e violenta ofensiva contra o Tribunal Constitucional, ao mesmo tempo que prosseguiram as iniciativas e tentativas de governamentalização da justiça.

Prosseguiu a política de desinvestimento na segurança das populações. Continuou o fecho de esquadras, a concentração de efectivos e a degradação das condições de trabalho das forças de segurança.

A actividade do Sistema de Informações da República está à margem de qualquer fiscalização democrática e é objecto de instrumentalização por interesses obscuros, onde predominam também as escutas e intercepções ilícitas de comunicações.

Teremos ocasião nesta audição de ouvir e recolher contribuições que, sobre estas como muitas outras matérias, permitam um enriquecimento de um tema cuja abordagem tem tanto de complexo quanto determinante a uma política patriótica e de esquerda.

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