Intervenção de António Filipe na Assembleia de República, Declaração Política na Reunião Plenária

O Estado fica assim na posição a que se refere a canção brasileira: se fugir o bicho pega, se ficar o bicho come

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Não sei se os senhores Deputados sabem, mas o consórcio privado “Elos – Ligações de Alta Velocidade, S.A.” intentou execução contra o Estado no montante de 202 milhões de euros, decorrente de uma condenação em tribunal arbitral.

O que se passou foi o seguinte:

Em 8 de maio de 2010, foi celebrado entre o Estado Português e a Elos – Ligações de Alta Velocidade, S.A., o contrato de concessão relativo ao projeto, construção, financiamento, manutenção e disponibilização de infraestruturas ferroviárias do troço Poceirão/Caia, incluindo o projeto, construção, financiamento, manutenção, disponibilização e exploração da Estação de Évora.

A adjudicação do contrato de concessão foi efetuada nos termos de despacho conjunto dos Ministros de Estado e das Finanças e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, datado de 19 de janeiro de 2011.
O contrato foi remetido ao Tribunal de Contas, para efeitos de visto prévio em 11 de fevereiro de 2011 e em 21 de março de 2012, através do seu Acórdão n.º 9/12 -21.Mar -1ª S/SS, o Tribunal de Contas, recusou o visto.

A partir daí o Estado Português ficou legalmente impedido de executar o contrato.

Não será necessário dizer nesta Assembleia que, nos termos da Constituição e da lei, o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas e é a entidade com poder, independência e competência para o exercício de poderes de controlo financeiro e jurisdicional, nomeadamente através do apuramento de responsabilidades financeiras sobre quem geriu e utilizou dinheiros públicos indevidamente.

Compete assim ao Tribunal de Contas verificar se os atos, contratos e outros instrumentos geradores de despesa estão conformes com a lei e se os respetivos encargos têm cabimento orçamental.

Havendo desconformidade dos atos e contratos com as leis em vigor, o Tribunal de Contas recusa o visto e essa recusa torna o ato ou contrato ineficaz, o que implica que o mesmo não pode produzir efeitos.

O acórdão do Tribunal de Contas negando o visto prévio a um contrato, após transito em julgado, é obrigatório para todas as entidades públicas e privadas.

Quando um contrato está sujeito a visto prévio do Tribunal de Contas, todos os contraentes o sabem, e se não sabem deveriam saber, que sendo recusado o visto, não há direito à execução do contrato, que fica legalmente proibido, nem há lugar ao pagamento de qualquer indemnização.

No caso do contrato que temos vindo a referir, houve recusa de visto prévio, com todas as consequências legais.

Não obstante, a 26 de abril de 2013, a ELOS apresentou ao Estado Português pedido de constituição de Tribunal Arbitral, para efeitos de obter a compensação que entendia ser-lhe devida "por força da recusa de visto do Tribunal de Contas e do cancelamento do Projeto ".

E este tribunal arbitral veio a condenar o Estado a pagar uma indemnização de cerca de 150 milhões de euros.

Vejam o absurdo Senhores Deputados:

O Estado, o que equivale a dizer, os contribuintes, foram condenados a indemnizar um consórcio privado porque o Estado não cumpriu um contrato que não poderia cumprir porque o Tribunal de Contas o declarou ilegal.

Sucede que se o Estado pagar a condenação do tribunal arbitral incumpre a decisão do Tribunal de Contas e os seus responsáveis incorrem em responsabilidade financeira.

E apesar de estar pendente nos tribunais administrativos uma ação de anulação da sentença arbitral, proposta pelo Estado, esta não tem efeito suspensivo da decisão arbitral e por isso o consórcio promove a execução do Estado no montante de 202 milhões de euros.

O Estado fica assim na posição a que se refere uma conhecida canção brasileira: se fugir o bicho pega, se ficar o bicho come.

Tudo isto, senhores Deputados, porque se permite que o Estado submeta os litígios contratuais em que se possa ver envolvido, não aos tribunais administrativos que existem para esse efeito, mas a um mecanismo espúrio de privatização da aplicação da justiça feita para beneficiar os interesses privados, onde intervém árbitros que não se sabe quem são nem que interesses defendem, onde não se conhecem os fundamentos das decisões, mas em que se sabe à partida que o Estado fica sempre a perder, numa espécie de jogo em que o campo está sempre inclinado a favor dos interesses privados.

E o problema é que o caso concreto que aqui trazemos hoje como exemplo por demais escandaloso não é um caso isolado. O recurso à arbitragem had-hoc está previsto em tudo o que é parceria público-privada, seja na saúde, seja nas PPP rodoviárias, envolvendo milhares de milhões de euros de recursos públicos.

Se esta forma privada e opaca de composição de litígios por via de arbitragem had-hoc, envolvendo em regra muitos milhões de euros de dinheiros públicos, não é um escândalo, não sabemos o que possa ser um escândalo, mas sabemos que sempre que o PCP apresentou nesta Assembleia iniciativas legislativas para acabar com isto, proibindo o Estado de recorrer à arbitragem para a resolução de litígios que envolvam dinheiros públicos, essas iniciativas foram sempre rejeitadas pelo PS, pelo PSD, pelo CDS, pela IL e pelo Chega e é o PCP que, quando defende o interesse público e o dinheiro dos contribuintes, é acusado de ter preconceitos contra a iniciativa privada.

E no dia seguinte, voltam a ser todos contra a corrupção, a dizer que o problema é a falta de regulação do lobbying, a bater com a mão no peito ou a exigir limpezas não se sabe bem de quê, porque quando se aponta a sujidade fazem de conta que não a veem, porque quando se tenta tocar em interesses dos grandes negócios privados, aí é tudo limpinho.

Disse.

 

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