Exposição de motivos
Os serviços de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais, foram, de 1976 a 1993, uma responsabilidade exclusiva da administração local, sendo a sua gestão controlada por órgãos democraticamente eleitos e orientada para a prestação de um serviço público.
O reconhecimento de que a prestação dos serviços de proximidade, entre os quais os serviços de águas e saneamento, se inseria num movimento geral de democratização da sociedade portuguesa é realizado, fundamentalmente, com a publicação de três diplomas: a Lei de Delimitação dos Setores, em julho de 1977, que vedava a empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza o acesso à captação, tratamento e distribuição de água para consumo público através de redes fixas; a Lei n.º 79/77 de 25 de outubro, que definia as atribuições das autarquias e as competências dos respetivos órgãos, procedendo ao reforço da autonomia do poder local democrático; e da Lei n.º 1/79 de 2 de janeiro, Lei das Finanças Locais. Reconhecia-se, igualmente, que o envolvimento dos cidadãos nas questões que lhes dizem respeito contribui para o enriquecimento da democracia.
A partir de 1993, os diversos governos aprovaram, ao longo dos anos, legislação que foi criando as condições para a privatização do setor, numa lógica de apropriação privada gradual dos serviços de águas e saneamento.
Neste processo o número de câmaras municipais que geriam diretamente ou através de serviços municipalizados os sistemas de abastecimento de água em baixa foi decrescendo, enquanto o número de empresas públicas ou municipais e concessões ia aumentando. Em 2020, o modelo de gestão concessionada representava 12% e o modelo de delegação atingia 13% das entidades gestoras.
A privatização dos serviços de águas, que o PCP sempre combateu, tem vindo a revelar-se cada vez mais desastrosa, representando a degradação da qualidade dos serviços e agravam as assimetrias no acesso aos serviços, principalmente através do aumento dos preços para satisfação dos lucros das empresas concessionárias.
Tal política é alvo de contestação por todo o mundo, e em Portugal, inquéritos e estudos de opinião têm revelado uma muito significativa maioria de opositores à privatização.
Entre centenas de reversões por todo o mundo, por vezes antes do término e muito onerosas devido aos contractos leoninos, cita-se o exemplo paradigmático da reversão para gestão pública do abastecimento de água a Paris, anteriormente concessionado às duas maiores multinacionais do sector – CGE - Compagnie Generale des Eaux (alias Veolia) e à Lyonnaise des Eaux (alias Suez).
Também em Portugal, temos o recente exemplo da autarquia de Setúbal, que reverteu para a esfera pública a gestão do abastecimento de água, reintegrando os trabalhadores, garantindo a continuidade do serviço e a redução de preços aos consumidores.
Os serviços de águas com redes fixas são, por definição, monopólios naturais, e as concessionárias dos diversos monopólios regionais formam um oligopólio.
Como era previsível, os resultados das privatizações têm-se demonstrado ruinosos para as Autarquias Locais e atentatórios do direito universal à água e ao saneamento, reconhecido pelas Nações Unidas em 2010 como direito humano fundamental.
O PCP entende que os serviços de abastecimento de água devem ser política e democraticamente controlados, sujeitos ao interesse público e às necessidades do País.
A presente iniciativa prevê a proibição de entrega a entidades privadas, dispondo de uma norma transitória para as concessões atualmente em vigor, impedindo a sua renovação ou prorrogação. Salvaguarda-se ainda a necessidade de assegurar a continuidade do abastecimento e os direitos dos trabalhadores das empresas concessionárias, no processo de transferência para a gestão pública. Com esta proposta de Lei, nada impede que as entidades titulares dos serviços possam, ainda antes do termo dos contratos, proceder à sua denúncia.
Assim, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente Lei estabelece a obrigatória recuperação da gestão pública dos Sistemas de Águas e Saneamento e a proibição da concessão, subconcessão ou delegação desses serviços a entidades de capital privado.
Artigo 2.º
Gestão pública dos Sistemas de Água e Saneamento
- O exercício das atividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, bem como a recolha, tratamento e rejeição de águas residuais e de águas pluviais urbanas através de redes fixas, é assegurado exclusivamente por entidades de direito público, sendo proibida a concessão, subconcessão ou delegação de serviços a entidades de direito privado.
- A proibição do acesso da iniciativa privada às atividades referidas no número anterior engloba a participação de capitais privados no capital de entidades titulares dos serviços ou delegatárias.
Artigo 3.º
Regime transitório
- No caso de sistemas de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais urbanas, ou parte delas, que estejam concessionados, subconcessionados ou delegados a entidades privadas à data da entrada em vigor da presente Lei, a proibição de concessão, subconcessão ou delegação do abastecimento público, definido no Artigo anterior, aplica-se a partir do termo dos contratos em vigor.
- Ainda que disponham de cláusulas contratuais que permitam a renovação ou prorrogação dos contratos referidos no número anterior, as concessões, subconcessões ou delegações dos serviços com entidades privadas que estejam em vigor à data da entrada em vigor da presente Lei não podem ser prorrogadas nem renovadas, devendo as entidades titulares dos serviços desenvolver as diligências contratuais necessárias ao termo do contrato, assim como à reversão da prestação destes serviços para o setor público.
- É vedada qualquer alienação ou redução da participação pública nas concessionárias de capitais mistos, enquanto estas detiverem a concessão.
- Nos casos referidos no n.º 1, a recuperação da gestão pública dos Sistemas de Águas e Saneamento, independentemente da forma que venha a assumir, é realizada de forma a assegurar a continuidade dos serviços prestados, a manutenção dos postos de trabalho e a sua integração nos quadros de pessoal das entidades públicas que passem a prestar estes serviços, e a aplicação a todos os trabalhadores da contratação coletiva vigente mais favorável aos trabalhadores, até substituição por outra livremente negociada entre as partes.
Artigo 4.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.