Realizamos este nosso Encontro Nacional nas vésperas de uma grande jornada de luta dos trabalhadores e do povo português. E poderá, talvez, haver quem se interrogue por que acontece que realizemos um Encontro sobre as questões da Cultura precisamente neste momento.
Se existisse algum problema nesse facto ele resultaria, naturalmente, de um agendamento muito anterior à marcação da Greve Geral. Mas nós não consideramos que exista qualquer problema. Muito pelo contrário, julgamos que esta coincidência é altamente valorizadora da sua realização e que é, ela própria, uma confirmação da concepção que temos da Cultura enquanto terreno de emancipação individual, social e nacional, enquanto terreno de intervenção e combate essencial para todos aqueles que, como nós, lutam pela superação, radicalmente transformadora, democrática e de progresso do estado das coisas actual. Julgamos, até, que a luta de massas contém necessariamente em si elementos de importante valor cultural e que – incluindo, como tantas vezes sucede, a criatividade nas suas formas de se organizar e de se exprimir - multiplica o seu impacto, o seu poder mobilizador e a sua repercussão transformadora.
Entendemos, seguindo as palavras do nosso camarada Bento de Jesus Caraça, a «aquisição de cultura como um factor de conquista de liberdade». Assim temos entendido a cultura ao longo de toda a nossa história. Assim o reafirmamos agora.
Um dos traços que marcam historicamente a actividade do nosso Partido, sobretudo nos períodos de maior crescimento da sua implantação, afirmação e influência, é o esforço para estimular iniciativas e movimentos de ordem cultural que, com as suas formas e autonomia próprias, acompanhassem, partilhassem e contribuíssem para a luta emancipadora dos trabalhadores e do povo. É, sem dúvida, essa uma das razões que favoreceram uma tão significativa aproximação e integração no Partido de muitas das maiores figuras da intelectualidade portuguesa, a sua participação activa na resistência ao fascismo, a sua intervenção criadora no Portugal democrático, a persistência no presente, embora crescentemente dificultada, de componentes de orientação progressista em diversas áreas da actividade cultural.
Mas não foi apenas na integração progressista de intelectuais e artistas no movimento operário e popular que o Partido desempenhou e desempenha um papel determinante. É na valorização e emancipação da própria cultura popular, no trabalho directo de construção, que é também cultural, de uma identidade e de uma autonomia de classe dos trabalhadores portugueses. Este Partido é tanto o Partido do matemático Bento de Jesus Caraça, ou do compositor Fernando Lopes-Graça, ou do poeta José Gomes Ferreira, ou do intelectual Alberto Vilaça como o do arsenalista Bento Gonçalves, cujo perfil é também o de um exemplar intelectual operário, ou do sapateiro Francisco Miguel Duarte, quadro revolucionário cuja dedicação inteira à luta do povo inclui uma expressão poética própria do seu ideal de combatente comunista.
Ao longo de praticamente toda a sua história, o nosso Partido tem acompanhado e intervido sobre as questões da cultura, na base do amplo entendimento que temos de cultura e que inclui tanto a cultura artística como a cultura científica, tecnológica e filosófica, a educação, o ensino e a comunicação social. Ao longo de toda a sua história o Partido exprimiu publicamente opinião acerca das dinâmicas e políticas culturais, reivindicou a democratização da cultura e combateu a sua elitização e isolamento em relação às aspirações populares.
O regime fascista, cuja memória e realidade há quem pretenda activamente branquear, foi um regime de obscurantismo, de atraso, de ignorância, de repressão e de reaccionária mediocridade cultural. Combateu e perseguiu através do aparelho do Estado, das forças repressivas, das instituições corporativas e da censura, todas as expressões genuínas da livre criatividade popular, da livre expressão artística, e muitas das mais destacadas figuras da intelectualidade portuguesa. Muitas dessas figuras, tanto nas áreas da criação artística como nas da criação científica, ao mesmo tempo que eram perseguidas e impedidas de exercer a sua actividade criadora no seu próprio país, eram alvo do mais amplo reconhecimento internacional. O carácter anticultural do regime fascista constitui uma das mais vivas expressões do seu carácter antinacional, e a longa persistência dos seus efeitos constitui uma das suas mais pesadas heranças.
Mas devemos também recordar que a outra face deste sombrio quadro de quase cinco décadas foi a da continuada, persistente e fecunda resistência cultural. Resistência de artistas, de cientistas, da intelectualidade progressista e também resistência popular no associativismo, nas colectividades, no teatro amador, no cineclubismo. Resistência cultural no movimento estudantil, nos grupos e publicações universitárias. Resistência na investigação, defesa e divulgação do património cultural popular, da arquitectura popular, dos contos tradicionais, da música. Resistência em movimentos culturais e estéticos que procuraram enraizar-se na realidade do mundo do trabalho. Múltiplas formas de resistência cultural em todas as quais existe a marca, em muitos casos determinante, do estímulo, da iniciativa, da dinamização, da participação essencial do PCP.
Grande Partido da Resistência, só o PCP pode efectivamente honrar-se de um tão influente papel de combate e resistência organizada na frente cultural, um papel tão determinante na mobilização de intelectuais e artistas para a intervenção e a militância antifascista. Só o PCP poderia conter, no seu património histórico, a abordagem de uma mesma matéria – a das Praças de Jorna – num texto político por um grande escritor, Soeiro Pereira Gomes, e num texto de ficção literária por um grande dirigente político, Álvaro Cunhal.
E a este papel determinante na resistência cultural corresponde um idêntico património de iniciativa e construção no período posterior à Revolução e no processo de defesa e consolidação do regime democrático, com particular destaque para o papel pioneiro desempenhado pelas autarquias FEPU, APU e depois CDU.
No decurso das três décadas de regime democrático mudou muito profundamente a face cultural do país. Mudaram as condições de acesso e fruição, mudaram expectativas e reivindicações em relação à cultura, mudaram consumos e práticas culturais, em processos que envolvem significativas alterações nos níveis de escolarização e profundas mudanças sócio-culturais, nomeadamente as que decorrem de um acelerado processo de urbanização e suburbanização das populações, acompanhado tanto pelo acelerado declínio e desertificação humana do mundo rural como por processos de desindustrialização e de fragmentação do sector secundário.
Estas profundas mudanças têm uma muito importante expressão quantitativa nomeadamente na construção de equipamentos, no crescimento de públicos, em múltiplas iniciativas de diferente dimensão, continuidade e alcance. E, sobretudo, na intervenção, iniciativa e realização dos próprios criadores, investigadores e cientistas, no aumento do seu número e nos seus elevados níveis de qualificação. Também neste âmbito o Portugal de hoje é profundamente diferente do de há 30 anos.
Nós valorizamos justamente o que se avançou. Mas afirmamos que poderia e deveria ter-se avançado muito mais se não tivesse sido brutalmente cerceado o impulso revolucionário de Abril, se tivesse sido prosseguido um verdadeiro rumo de democratização cultural, se tivesse sido atribuída às áreas da Cultura a prioridade que exigem, como parte integrante da resposta às necessidades de desenvolvimento e de progresso do nosso país.
Mas não foi essa a opção das políticas de direita empreendidas por sucessivos Governos. E devemos aqui sublinhar um traço marcante na política do actual Governo. A alternância no poder de Governos PS e PSD, associados ou não ao CDS/PP, teve durante algum tempo um elemento de diferenciação, pelo menos na formulação programática, no que dizia respeito à política cultural. A situação actual traduz, como a Resolução Política do nosso Encontro justamente assinala, «a rendição total da social-democracia às políticas de direita também nesta área». Agravando, até limites insustentáveis, a asfixia financeira, a instrumentalização clientelar, a desresponsabilização do Estado, a elitização, a integração internacional subalterna e estéril, a entrega ao mercado das políticas culturais. E não se trata aqui apenas da actuação do Ministério da Cultura. Assumem igualmente pesadas responsabilidades pelos impactos culturais das suas medidas o Ministério da Educação, o Ministério da Ciência e do Ensino Superior, toda a repercussão futura de uma política social e culturalmente indiferente que friamente destrói ou inviabiliza condições, instituições e recursos humanos, artísticos, científicos e técnicos sem os quais o país fica incomparavelmente mais pobre, mais subalterno e mais dependente.
Também nesta área é necessária e urgente uma radical correcção das políticas seguidas. Inverter as políticas orçamentais e de responsabilização do Estado. Apoiar o desenvolvimento da criação, produção e difusão culturais. Valorizar a função social dos criadores e dos trabalhadores das áreas culturais. Promover e apoiar tanto a defesa, o estudo e a divulgação do património cultural nacional como a criação contemporânea, que, ajudando a configurar criadoramente o presente, também acrescenta novos sentidos à reactivação da memória do passado. Defender o intercâmbio com os outros povos, a abertura aos grandes valores da cultura da humanidade e a sua apropriação criadora. Combater a colonização cultural, o afunilamento das relações culturais num mercado hegemonizado pelos valores que são próprios do capitalismo na sua fase actual, valores que se colocam em confronto aberto com muito do que de melhor a humanidade construiu, na infinita riqueza e diversidade culturais da sua trajectória histórica.
A Cultura, nas suas diferentes expressões, é um terreno de contradição, de conflito e de confronto. Integram hoje a esfera cultural elementos de enorme potencial transformador e emancipador e também poderosos factores de alienação e de dominação de classe. O combate e a intervenção na frente cultural travam-se num terreno em que, em diversos aspectos, existe uma correlação de forças desfavorável. Mas no qual, simultaneamente, reside um enorme potencial transformador e emancipador.
A batalha contra o rumo que vem sendo seguido e a ruptura com a actual política inclui - com importância idêntica à da luta em outras frentes - a luta pela democratização cultural. A Resolução Política deste nosso Encontro formula a questão com toda a clareza: «se a democratização cultural depende da criação de condições materiais para a sua efectivação, também os avanços que consigamos na democratização da cultura produzirão efeitos na economia, no desenvolvimento e na modernização económico-social, porque aquela representa a qualificação do trabalho que é a principal força produtiva. A democratização da cultura é um factor de democratização da sociedade, porque proporcionará uma participação e intervenção crescentes dos trabalhadores, das classes mais vitalmente interessadas na democracia, no conjunto da vida social e política».
Neste nosso Encontro deve ficar reafirmada, com toda a clareza e convicção, a importância a atribuir à intervenção nesta frente. Intervenção de intelectuais e criadores, certamente. Mas também intervenção e iniciativa do mundo do trabalho, intervenção e iniciativa determinante de todo o nosso povo. A Democracia Cultural é parte integrante e inseparável das outras vertentes da Democracia Avançada que propomos e por que nos batemos - Democracia Avançada que só poderá realizar-se como uma muito ampla construção colectiva de todos aqueles que, no trabalho, na arte, na ciência, na investigação, na cultura em todas as suas dimensões, desejem efectivamente libertar individual e colectivamente o potencial criador imenso que possuem e, ao libertá-lo, ajudem a mudar de vez a face do nosso país e do mundo em que se integra.
É por esse imenso espaço de transformação, emancipação e liberdade que lutamos – e pelo qual, tarde ou cedo, caminharemos. E, entendendo como nós entendemos o carácter indissociável das diversas vertentes da democracia, no plano político e económico, social e cultural e de soberania nacional, este governo PS pela prática, pela omissão, pela opção, desencadeou uma ofensiva global sem precedentes, em clara rota de confronto e colisão com o projecto de democracia que a Constituição da República consagrou por vontade e conquista dos trabalhadores e do povo português, por razão de Abril! Direitos laborais e sociais que eram e são elementos constitutivos de avanços civilizacionais, reivindicados e conquistados a pulso por diversas gerações de trabalhadores – direito ao salário, ao horário, à segurança no emprego, à liberdade sindical, à contratação colectiva, à greve, mas também o direito à saúde, à segurança social, ao ensino e à cultura.
Já não se trata tão só de estarmos perante um governo que não cumpre promessas mas que actua concretamente para reduzir, condicionar ou mesmo destruir tais direitos. Não por maldade, por incompetência, ou dias menos felizes deste ou daquele Ministro! Antes determinado em servir os interesses dos poderosos e atender às suas retrógradas e classistas exigências que sempre fizeram há 10, 20, 30 ou 100 anos atrás, com as devidas adaptações e adjectivos inventados como a “flexigurança” ou nessa criativa definição de uma esquerda moderna, chapéu novo para realizar no plano económico e social uma política de direita antiga. O confronto, a luta de classes aí está com toda a actualidade a exigir uma resposta de classe, dos trabalhadores e do seu Partido para a qual estão convocados os homens e as mulheres de cultura, também eles atingidos por esta política ou que se identificam solidariamente com essa justa luta.
A importância que tem voltar a contar com aqueles intelectuais que consideraram não ser necessário continuar do lado da classe operária, dos trabalhadores porque causas e bandeiras tinham sido alcançadas, liberdade, emprego, salários, liberdade sindical, direito à greve, direitos ganham-se e perdem-se.
Estamos de novo em tempo de luta e resistência onde se alicerça o avanço e a construção do devir colectivo.
Por tudo isto, e como disse no início da minha intervenção, este nosso Encontro Nacional sobre a Cultura insere-se na luta que travamos contra a política de direita e por uma alternativa de esquerda – luta que, na situação actual, tem na Greve Geral de 30 de Maio uma elevada expressão. Não porque a Greve Geral constitua um ponto de chegada, mas precisamente porque ela é um ponto de passagem para a necessária continuação da luta como elemento fundamental da transformação da realidade, de recusa em habitar ou coabitar no pântano do conformismo, para ter esperança e confiança nos trabalhadores e no povo português e no seu protagonismo para construir um país mais justo, mais livre e mais democrático.
Não nos perguntem para quando. O que sabemos é que temos todos os dias e o tempo que for preciso para prosseguir e alcançar os objectivos que o nosso projecto comporta, a luta pelo socialismo e o comunismo.