Um Apontamento1
I. Da filosofia
1. Filosofia?
Agradeço o convite para esta fala, e começo logo por uma questão que não deve permanecer silenciada.
A primeira pergunta que se tem que colocar no arranque de uma sessão como a de hoje é, porventura, a seguinte:
Faz sentido que um colectivo de quadros do Partido Comunista Português, oriundo dos sectores económicos, ou com responsabilidades nessa área, dedique uma parte substancial do seu tempo de encontro a debater pendências que caem no âmbito da filosofia?
Aparentemente, parece que não faz sentido.
E o rol dos motivos justificatórios, a eventualmente invocar, ameaça não ter fim na sua enumeração.
Todos conhecemos alguns dos bordões mais dedilhados:
A filosofia é uma «coisa» abstracta, abstrusa, e aborrecente — manifestamente imprópria, tanto para gentes de trabalho, como para quem queira dedicar a vida a um projecto de transformação do mundo;
a filosofia não passa de um «palavreado ininteligível» — que apenas serve para deslumbrar basbaques incautos, ou para entretenimento de «intelectuais» ociosos (de extracção burguesa, ou com origens proletárias, tanto faz) que gostam de fazer alarde de uma (confusa e retórica) «superioridade» presumida;
a filosofia não fornece «resposta imediata» aos problemas da luta com que nos confrontamos no quotidiano — e mal nela se começa a penetrar, logo um matagal sertanejo de «complicações» (de muito duvidoso alcance útil) se adensa ... ;
a filosofia, dissipados os vapores primaveris de algum der-riço de juventude, foi assunto que o próprio Marx condenou ao abandono — algo que apenas o velho Engels se encarregou, mais tarde, de ossificar, com uns toques de manualização avulsa, na aridez insípida de umas quantas páginas (massudas, e vagamente esquecidas) do Anti-Duhring, da Dialéctica da Natureza, ou do Ludwig Feuerbach;
a filosofia ocupa tempo, que disponível não está (ou já não está) — e, por isso, abrindo o lençol das desculpas e lamentos, ou fazendo rapidamente a trouxa ao resto dos trapinhos, o melhor é mesmo passar sem ela;
a filosofia inclina ao idealismo larvar, fomenta litigâncias estéreis, visa tão-só agasalhar em ideologia espampanante dissídios efectivos — pelo que, à cautela, deve ficar sepultada nas estantes dos reservados, e ser conservada aí a bom recato, como um património que, de longe, se reverencia, mas não frequenta (bastando, aqui e além, que se faça, não sem recomendável parcimónia, uma ou outra citaçãozita certeira, que, ademais, transmita aos auditórios o indício fugaz de uma adivinhada profundidade nos estudos).
Em suma, e para arrematar os lotes em praça:
A filosofia é «teoreticismo» estratosférico, «teorice» balofa e presunçosa: aquilo que preocupa e importa é «o prático» (não raro, diga-se, confundido com «o palpável», ou «o pragmático») — e não me venham com mais «histórias» e «conceitos», porque de cabeça cheia, e sem mãos a medir, já eu ando.
E, no entanto...
2. Da crítica da filosofia à dimensão crítica do pensar.
E, no entanto, em termos marxistas — e, desde logo, nos termos do pensamento e da acção revolucionária de Marx —, as coisas não se passam bem assim, ou não se passam simplificada-mente assim.
Quando, por 1845-1846, em A ideologia alemã, Marx enfaticamente declara que «a filosofia» (die Philosophie) está para «o estudo do mundo [efectivamente] real» (das Studium der wirkli-chen Welt) como «o onanismo» ou a masturbação (die Onanie) para «o amor sexual» (die Geschlechtsliebe)2 — não é perante uma acção liminar de despejo, ou perante um despedimento sumário, da filosofia (por indecente e triste figura) que nos encontramos.
Quando, na famosa tese décima primeira «contra Feuerbach» (ad Feuerbach), Marx recorda que os filósofos se têm limitado a apenas «interpretar» (interpretieren) o mundo «de maneiras diversas» (verschieden), e depois insiste, imperativamente, em que aquilo de que se trata é de o «transformar» (verandern)3 — não é perante uma sentença de divórcio, ou perante um decreto de ostra-cização forçosa, relativamente à filosofia que nos encontramos.
À vista desarmada, ou a um repentino olhar preguiçoso: parece que é, mas não é bem assim.
E a complexidade — que alguns experimentam de imediato como perplexidade — radica, à entrada, no próprio estabelecimento do que em causa está.
A questão é, de facto, outra.
A questão não é, em abstracto, disjuntiva: submeter-se por inteiro à filosofia, ou rejeitá-la em bloco.
Em rigor, a questão não é sequer: «A Filosofia».
A questão é:
Como entender a filosofia?,
como fazer filosofia?, — e, sobremaneira — aquilo que se faz com a filosofia.
Mas, logo neste transe a dificuldade, inerente ao inquérito, salta ao caminho:
Para discernir e para resolver — deste modo, e neste tabuleiro — esta questão, é preciso filosofar.
Ou seja, é preciso pensar — exercitando, na sua radicalidade, a demanda crítica de uma compreensão fundada do acontecer na sua deveniência, que traga acrescida luz à necessária perspectivação dos afazeres do agir.
Filosofar — não apenas «previamente» (em redoma protegida, num como ciclo preparatório exterior à vida, e eximido à circuns-tancialidade das suas vicissitudes), mas também «durante», e «de dentro», da própria marcha incerta e atribulada das realidades em que nos inscrevemos, e que vamos escrevendo.
Ao nível dos princípios, há, portanto, que criticar — sem rodeios, nem inibições — todas aquelas diversificadas correntes que contemplam o real como estando dominado e determinado por «Ideias», que erigem as «Ideias» em abscôndito «segredo» que move e rege superiormente os cordelinhos do devir, que, num arremedo de jogo das sombras, convertem o espectáculo do mundo numa expressão directa de «Ideias»4.
No registo do saber, há, portanto, que investigar e que compreender o mundo — e, inclusivamente, as «ideias» que nele se vão formando, evoluindo, e impondo5 — a partir da, e na,
contraditoriedade fluente, e materialidade concreta, das suas polimorfas manifestações, do entramado dinâmico daquelas relações (densas, e tensas) em que elas consistem e in-sistem, dos seus intricados processos.
No regime da accionalidade, enfim, há, portanto, que assumir o pensar, não como uma extravagância etérea sobrepairante, ou uma mera excrescência descartável, mas como encontrando-se concretamente montado sobre a oficina de um viver — de que a prática, de que a transformação material, é, por sua vez, dimensão constitutiva e factor determinante6.
Em suma, e para reverter ao ponto que nos concita, em torno do qual a ontologia do marxismo ganhará figura e andamento:
É necessário re-fundar a filosofia numa base materialista e dialéctica.
E, com uma filosofia deste modo trans-formada, é imprescindível enfrentar, e desenvolver — no plano teórico da compreensão do real, e nos estaleiros da prática que o transforma —, as tarefas mundanas (individuais e sociais) da nossa ocupação (posicionada) com uma história (a que não apenas se assiste da poltrona, mas que no terreiro da luta se faz).
Como, já numa carta de Setembro de 1843, Marx — demarcando-se com nitidez daquela costumada predilecção «filosofante» pelas subtis prestidigitações salvíficas com um receituário desde a tripa autocongeminado — sublinhava a Arnold Ruge, com quem se preparava para vir a editar os Anais franco-alemães:
«Nós não confrontamos então o mundo, de um modo doutrinário [doktrinar], com um princípio novo: Está aqui a verdade, ajoelhai-vos! Nós desenvolvemos para o mundo, a partir dos princípios do mundo, princípios novos.»7.
E foi, na realidade, de acordo com esta orientação vincada (e desafiante) que Marx, com pertinácia (e pertinência), prosseguiu o seu programa teórico, e se entregou na prática aos seus projectos.
3. Uma acção revolucionária materialistamente fundada.
Penso, por isso, camaradas, que é mesmo para levar a sério — não como uma constatação complacente (que massaja, e reconforta, a auto-estima), mas como uma exigência de empenho (que põe em causa, e traz à liça, os comportamentos) — algo que nós todos conhecemos bem, e que Marx e Engels cuidaram de depositar numa passagem interpelante do Manifesto:
«Na prática [praktisch], os comunistas são a parte mais decidida [der entschiedenste Teil] dos partidos operários de todos os países, [a parte] que impele sempre mais para diante [der weiter-treibende Teil]; na teoria [theoretisch], eles [os comunistas] têm, sobre a restante massa do proletariado, a vantagem da penetração [inteligente, Einsicht] nas condições [Bedingungen], no curso [Gang], e nos resultados gerais [allgemeine Resultate], do movimento proletário.»8.
Dir-me-ão talvez alguns (escondendo, ou disfarçando, uma pequena irritação em começos de fervência):
Mas isto não tem rigorosamente nada a ver com a filosofia.
Isto é matéria que releva, sim — e pelo contrário —, da compreensão (científica) da História, da Economia, da Política, da Revolução.
E certamente será correcto dizer-se (o que não dispensa o respectivo exame) que, ao longo do último século e meio de arrastadas discussões atrabiliárias à roda do tópico, não tem faltado quem — de bandas diferentes, e com variados intuitos — a alvitres deste recorte propenda.
Temos também aqui que nos procurar entender.
E consintam no atrevimento (pela sua peremptoriedade) da tese que me permito pôr em cima da mesa:
A compreensão da «história», da «economia», da «política», da «revolução», que Marx desenvolve, e sobre a qual se firma nos seus escritos e na sua acção, é, de uma ponta à outra, indissociável daquela ontologia — materialista e dialéctica — que lhe pulsa na raiz.
De resto, este asserto — apenas na aparência, contundente —, bem ponderadas as vistas, não se salienta por qualquer peculiar nota de «originalidade».
No fundo, ele corresponde à mesma perspectiva que Lénine — por exemplo, em Materialismo e Empiriocriticismo — não se cansa de colocar em destaque:
«A teoria económica e histórica de Marx», escreve ele, tem por fundamento «o materialismo filosófico».
E é, precisamente, com este lembrete, e seguindo nesta linha, que Lénine trata de combater (e de aviar) a efectiva desfiguração do marxismo que — a pretexto de umas revigorantes e «renovadoras» injecções de uma determinada epistemologia (cediça) em voga (que pretendia, a golpes de ferramenta «empirio-crítica», voltar a reduzir o ser à expressão dos seus ideatos na consciência)
— era displicentemente cometida, na forma intentada, por parte de todos aqueles que «Gostariam de ser materialistas em cima, mas não sabem desembaraçar-se de um idealismo confuso em baixo!»9.
Na verdade das realidades, a ontologia não é um factor indiferente — nem uma dimensão negligenciável — sempre que inscrito na ordem do dia esteja o assentamento da política. Haverá quem fareje no ar uma ocasional inflexão no rumo das «políticas», mas não é de exalações aéreas que a política vive.
Aliás, como Marx sensatamente lembrava, para escandalizado descorçoamento eventual de muitas almas:
«A Idade Média não podia viver do Catolicismo, e o Mundo Antigo [viver não podia] da Política»10.
E o chão da economia tem alicerce no ser.
II. Materialismo e dialéctica
4. Filosofia em «O Capital»?
Mal saiu a procissão do adro, mas o cardápio das dificuldades ainda tem pratos por degustar.
A esta etapa chegados, uma segunda pergunta — porventura, igualmente não menos incómoda — se perfila:
O que é que este apelo e esta remissão — na aparência, apenas abstractos — para uma filosofia materialista dialéctica têm a ver com as calças do capital, com a luta renhida que os trabalhadores travam, com aquela emancipação (desejada) relativamente ás múltiplas dominações (sentidas) da «ordem» capitalista (que pesa)?
Um novo berbicacho em formato de interrogação.
Os frequentadores mais assíduos do baú das curiosidades literárias — ainda que algo apressados no viés tomado para as colheitas — até me poderiam desencantar uns testemunhos autorizados de Engels que, à primeira vista, cortariam cerce com as veleidades da minha sugestão.
Numa recensão do Livro primeiro de O Capital, destinada à Elberfelder Zeitung (uma gazeta com propensões para o burgue-sismo liberal), o acento é colocado na «mais rigorosa cientifici-dade» (strengste Wissenschaftlichkeit) do produto11 .
E, para cúmulo, no texto enviado à Rheinische Zeitung de Dusseldorf, Engels chega mesmo a afirmar que o livro é «muito facilmente apreensível» (sehr leicht faßilich) na leitura, com uma ressalva porém (que me deveria prostrar em situação de completo embaraço depressivo): «exceptuadas as coisas algo fortemente dialécticas nas primeiras 40 páginas» (die etwas stark dialektischen Sachen auf den ersten 40 Seiten ausgenommen)12.
Escrupulosa austeridade científica, portanto; e nada de rebuscados devaneios em derrapagem para o «filosofismo».
Claro está que, se eu pretendesse enveredar por estes botes de esgrima com uma mão-cheia de citações — e o nosso problema por esta via ganhasse genuíno aclaramento —, igualmente encontraria munição para retorquir.
Na recensão para o Beobachter de Stuttgart, Engels sublinha que:
«Lá dentro, o autor trata as relações económicas segundo um método totalmente novo: materialista, histórico-natural.»13.
O próprio Marx estaria em condições de ser chamado à barra.
Num projecto de notícia remetido ao The Chronicle de Londres, «um periódico católico» (ein katholisches Blatt), O Capital é anunciado como «primeira tentativa de aplicar o método dialéctico à Economia Política» — «first attempt at applying the dialectic method to Political Economy»14.
E, em fecho das alegações, tornando a Engels, podia eu rematar com a implícita valorização de um pensamento económico — presente em Marx, por contraste com a sua ausência manifesta nos demais artigos de apologética vulgar disponíveis na feira — que se desprende do início da peça enviada para Die Zukunft de Konigs-berg (porta-voz de correntes do democratismo burguês da altura):
«Para qualquer alemão, é um facto doloroso [betrUbend] que nós, o povo dos pensadores [Denker], no domínio da Economia Política, até aqui tão pouco tenhamos efectuado.»15.
Não estamos, porém, num certame contrapontístico de afirmações soltas em tom de desgarrada.
Das Kapital é, reconhecidamente — mesmo entre aqueles que lhe não seguem, ou desfiguram, o itinerário16 —, uma obra marcante de ciência económica, no que se refere, desde logo, ao modo capitalista de produção.
Das Kapital é uma poderosa ferramenta nos combates pelo der-rubamento e pela ultrapassagem — consequentes, porque materialmente fundados — do vigente império de uma ordem capitalista17.
Das Kapital não é, na verdade, nem alguma vez pretendeu ser, um compêndio de filosofia.
Onde é que está, então, a filosofia em O Capital?
5. Unidade de forma e de conteúdo.
Dizem-nos alguns — uma vez mais, falando de diferentes púlpitos, e apontando a intenções diferenciadas — que «a filosofia» de Marx residiria tão-só no «método», a saber: no modo (subjectivo), ou na forma («epistemológica»), de proceder ao tratamento de uma matéria, de a investigar, e de a expor.
No limite, no que diz respeito à «filosofia de Marx», teríamos, assim, apenas a ver com um (engenhoso) dispositivo exterior — acrescentado pela inteligência — para dispor arquitectonicamente os conteúdos.
E, por conseguinte, entre outras coisas, seria não só legítimo, como até — para alguns — muito conveniente, dissociar a maneira de proceder marxista (eventualmente, digna de repescagem eventual) dos resultados, das teses, e das perspectivas, a que aporta (cuja obsolescência seria pública e notória)18.
O expediente da chaveta para arrumos simplificados permitiria, nomeadamente, ocultar a natureza dialéctica das relações que enlaçam forma e conteúdo, e remover, de entrada, o melindroso quesito da necessária consideração de um fundamento material para o método19.
Acontece, porém, que tomar apressadamente este aparente atalho — enveredando por uma redução da dialéctica marxista à condição exclusiva de «método» — nos pode precipitar (em deslizamento acelerado) por umas ribanceiras alcantiladas, que, ademais dos solavancos, nos afastam por inteiro da estrada e dos rumos por Marx efectivamente trilhados.
Com efeito, aquilo que, porventura, distingue, precisamente, o método de que Marx lança mão poderia sumariar-se em duas vertentes principais, que, entretanto, entre si se articulam:
Por um lado, deparamos com aquele rasgo (dialéctico) fundamental de a forma não constituir uma entidade «estranha» (do alhures de uma outra banda provinda), mas expressar traços, relações, e dinâmicas, de um conteúdo.
Por sua vez, porém, os conteúdos — na sua multiplicidade, e contraditoriedade — não se encontram internamente desprovidos de estrutura, de vínculo, de uma conexão que formalmente os organiza na materialidade fenoménica (ou na manifestação) do seu desenvolvimento.
Se a unidade de «forma» e de «conteúdo» — em devir, e a investigar20 — reflecte constitutivamente a dimensão dialéctica,
o primado ontológico dos conteúdos — formalmente estruturados já na sua concreção dinâmica — determina o materialismo, não apenas da abordagem (subjectiva) na demanda de um saber, mas também do teor (objectivo) dos próprios processos em exame.
É por isso que — como, de resto, Marx não deixou de salientar numa conhecida passagem do posfácio à segunda edição alemã do Livro primeiro de O Capital — aquilo que a metódica do pensar científico visa «reflectir ideialmente» (ideell wiederspiegeln), na sua dialecticidade intrínseca, não é mais do que a própria «vida do material» (Leben des Stoffs).
Esta perspectiva implica, entre outros aspectos, que, «no entendimento positivo do subsistente» (in dem positiven Verstãndnis des Bestehenden) na sua materialidade, tenha igualmente — e do mesmo passo — que estar contido «o entendimento da sua negação, do seu necessário declínio» (das Verstãndnis seiner Negation, seines notwendigen Untergangs), ou seja, da sua dialéctica.
Por conseguinte, ao considerar também «o lado transitório» (die vergãngliche Seite) das «coisas» e dos processos, a forma deveniente (transformada, e transformanda) que vão assumindo «no fluxo do movimento» (im Flusse der Bewegung), a dialéctica, restabelecida na sua «figura racional» (rationelle Gestalt), não pode, deste modo, «pela sua essência» (ihrem Wesen nach), deixar de se apresentar — para alarmado «escândalo» (Aergernifi) e para incontida «abominação» (Greuel), generalizados, do «bur-guesame» (BUrgerthum) e dos seus «porta-vozes doutrinários» (doktrinare Wortfuhrer) — como «crítica e revolucionária» (kri-tisch und revolutionar)21.
6. Um conceito novo (dialéctico) de materialismo.
Que há, então, de constitutivo — e, do mesmo passo, de novo — na dialéctica materialista, ou no materialismo dialéctico, de Marx?
Do ponto de vista marxista (que não é distintivo de lapela), a compreensão do acontecer das realidades no seu devir, assim como a intervenção prática humana — nos processos históricos da sua feitura, reconfiguramento, e mudança —, fundam-se na materialidade dialéctica do ser.
Temos, porém, outra vez, que buscar entendimento quanto ao nuclear.
A questão não é, sem mais, a de uma mera «opção» axiomática, simplificadora e diletante — amiúde, tão-só sentimental, ou seguindo as inclinações do gosto — ou pelo «materialismo» ou pelo «idealismo».
Engels denominou-a, correctamente: «a grande questão fundamental de toda a filosofia» (die gofie Grundfrage aller Philosophie)22. Mas ela não remete de todo para os arbítrios presumíveis de uma simples «escolha» inaugural.
A questão é, na verdade, mais funda, mais complexa, mais empenhativa.
Não basta passar descomposturas ao «idealismo», e brandir o «materialismo» como senha.
Para se resolver mesmo — o que não significa: a contento de todos —, o problema não dispensa (tanto no pensar da teoria, como na prática dos interventos) a mobilização consequente de um conceito materialista de materialismo.
O conceito materialista de idealismo diz-nos — no essencial de uma sua possível abreviatura — que é idealista qualquer concepção que antepõe ao real (em termos de prioridade originante, ou tão-só de co-relação fáctica) uma instância subjectiva (de forma egóica, inter-pessoal, divina, transcendental) como sua condição de possibilidade, quanto à existência do «ser», e/ou quanto às determinações daquilo que no «conhecer» é conhecido.
O conceito materialista de materialismo, por seu turno, assenta em que a materialidade de aquilo que há, de aquilo que é (e vai sendo), significa que ele possui, nos seus diferentes patamares de organização própria — de onde elementos de subjectividade se não encontram de modo algum excluídos —, um estatuto de independência ôntica, de existencialidade subsistente, relativamente à consciência que representa, à vontade que quer, ao desejo que suspira, à linguagem que expressa — e, até, à acção que modela.
Esta independência ontologicamente reconhecida, porém, não é nem sinónimo concordantista de um dualismo intransponível entre ser e pensar (tidos por incomensuráveis) — em que apenas se daria a inversão da instância à qual o primado é conferido —, nem garantia tranquilizadora de uma invariância férrea, perpétua, e imutável, das realidades materiais — em que a objectividade desse modo instituída viria a tomar o viso reconfortante da intangibilidade assegurada.
Dialecticamente, na sua própria materialidade, o ser encontra-se empapado de história, de movimento, de transformação, e a própria subjectividade humana — que pensa, sente, anseia, trabalha — é ela mesma também uma ingrediência dele.
O materialismo de Marx — ao invés do que tantas vezes se ouve apregoar (para efeitos de encómio estridente, ou, pelo contrário, para mais facilitada desqualificação) — não é, pois, nem um «empirismo», nem um «positivismo», nem um «mecanicismo», nem um «economicismo».
O materialismo de Marx não será, por certo também, nem aquela pintura paradigmática idealizada de como as coisas «deveriam ser», nem uma amálgama avulsa de contingências indomáveis, nem a certidão autenticada de um necessitarismo cego, desiludido, e quietista.
A materialidade do ser não se confina somente aos «corpos», às «entidades discretas palpáveis», às «forças» — na imediatez rigidificada do seu aparecer a uma instanciação na consciência, de cujas manifestações fenoménicas a certeza sensível nos dá de pronto notícia.
Na sua materialidade, o ser é sempre um processo em devir — no âmbito do qual as coisas e as situações, as representações e os comportamentos, a positividade e a sua transformação prática, vão, numa figura plástica mas determinada, ganhando contornos e adquirindo estação.
Na sua materialidade, o ser — mesmo quando coisificado (objectivado) neste ou naquele fenómeno — é sempre um sistema de relações em desdobramento, uma textura dinâmica de relacionamentos. Neste sentido, uma identidade — ao contrário do que um mau costume leva a imaginar — transcende a simples mono-tonia abstracta de uma constância perdurante, é sempre uma unidade dialéctica do «mesmo» e do «outro»: por isso ela é concreta.
Na sua materialidade, o ser — como complexo de relações, e de realidades em desenvolvimento — não se circunscreve ao existente: com-porta um leque determinado de possibilidades reais que cada existência adiante de si pro-jecta, tece-se e entretece-se de negação e de contraditoriedade (que lhe aquecem o movimento), compreende no seu seio (precisamente, enquanto materialidade) o trabalho quotidiano da própria história pelas colectividades humanas na produção e na reprodução do seu viver.
O materialismo é, na realidade, bastante mais complexo, e animado, do que a tela que alguns adeptos, e a generalidade dos detractores, dele pintam.
III. O capital na materialidade da sua dialéctica
7. Intróito.
Este é o horizonte fundamental, e a trama vibrátil, da ontologia de Marx. Quer isto dizer: da filosofia materialista dialéctica de Marx. Que não é nenhuma entidade misteriosa, mas aquilo de que temos andado a falar.
Trata-se, todavia, e em qualquer caso, de uma moldura de referência que não é estática, mas um quadro em movimento. E com os seres humanos lá dentro, a pensar e a agir, num entramado contraditório (objectivo, e subjectivo) de condições materiais e de possibilidades determinadas (que concitam ao trabalho da materialização).
Perceber como é que tudo isto — na materialidade do seu fundamento, e na dialecticidade do seu devir — funciona, em concreto e historicamente, no marco do capitalismo foi, sem qualquer dúvida, um dos méritos mais assinaláveis (e perdurantes, pelo alcance) da obra que conhecemos como Das Kapital.
Procurarei consagrar, por isso, a parte final da minha exposição de hoje a um modesto ensaio de mostração ilustrativa, a propósito de alguns temas, de como é que a dialéctica materialista em O Capital se encontra presente, e em actuação.
Polarizadas num intento de penetração pensante naquilo em que o «capital» consiste, consideraremos, designadamente, algumas questões que se prendem com o teor, e com a dinâmica, das categorias de «abstracto» e de «concreto»23, de «forma fenomé-nica» e de «essência», de «feiticismo».
(Re)comecemos, então.
8. O concreto e a abstracção.
«O capital» enuncia algo de universal. É, portanto, uma abstracção.
Ora, a filosofia de Marx parecia prometer-nos: o concreto.
Em que ficamos, então?
Resposta (com algum desassossego na ponta): aquilo que a filosofia de Marx nos pretende transmitir é que o caminho da solução para aparentes impasses desta índole reside: em não nos ficarmos...
As contradições não se resolvem na imediatez de um instante — simplesmente, através de um «sim», ou de um «não»24.
As contradições não são um mero enfrentamento estacado de umas polaridades contrapostas, perante o qual tudo se resumiria a «eleger» aquela porção que se retém, deixando a outra cair.
Um emparelhamento de contrários pode reflectir (e ser, na sua estática, sintoma de) uma contradição. Mas as contradições reais constituem elas próprias um processo: são, a um tempo, unidade e luta de contrários, dizemos nós25.
E é de dentro de um processo — fazendo uso, sem dúvida, do «sim» e de bastante «não» — que as contradições laboriosamente se resolvem.
Para falar das «coisas» e dos «processos», é certamente preciso — por exigência estrutural da linguagem, e do próprio pensar — recorrer ao emprego de abstracções, de universais.
Isso não significa, porém, que seja forçoso, operando uma conversão simples, tomarmos essas abstracções como princípio primeiro, ou como sujeito real, a partir dos quais tudo o mais venha a ser deduzido como «resultado» da sua presumida eficácia de entes detentores da forma de «Ideias».
O universal funciona, sem dúvida, de modo abstracto — quando, e sempre que, é separado, desligado, cindido, daquela multiplicidade contraditória e deveniente que na sua imanência mesma reflecte.
Mas o universal — mesmo na sua condição de conceito — também pode ser concreto: quando resulta do, e acolhe o, pensar que opera a mediação de tudo aquilo, de todas as determinações, que na realidade materialmente encerra.
Como Marx trata de recordar nos Manuscritos de 1857-1858, através de uma eloquente exemplificação que quase faz perder o fôlego numa leitura seguida:
«A população [die Bevolkerung] é uma abstracção, quando eu deixo de lado, por exemplo, as classes em que ela consiste. Estas classes são, por sua vez, uma palavra vazia, se eu não conheço os elementos sobre os quais elas repousam. Por exemplo, trabalho assalariado, capital, etc. Estes têm por debaixo [unterstellen] troca, divisão do trabalho, preços, etc. [O] capital, por exemplo, sem trabalho assalariado é nada; [é nada] sem [o] valor, dinheiro, preço, etc.»26.
Isto não pára?
A possibilidade de prosseguir, quase indefinidamente, com este encaixamento sucessivo em desdobramentos interligados não pára?
Não pára, de facto — porque a realidade releva da ordem do «com-plexo», e não está ela própria parada.
E este é, na verdade, o desafio que ao pensar, e à ciência, em geral, se encontra colocado como interpelação incontornável — recorrer a formulações universais que, no entanto, não dispensam o conhecimento (pormenorizado, e mediado) das determinações e dos processos que até elas conduzem, e de que elas constituem, por assim dizer, um condensado.
À luz da dialéctica, e em termos dialécticos, com efeito, o saber não é uma «intuição» repentina de resultados acabados e prontos; o saber é sempre mediação, e um entramado consistente de mediações.
Um saber real é um laborioso processo de pesquisa, e de apropriação pensante, das concreções reais em desenvolvimento.
Vale a pena, nesta ocasião, recordar a maneira como, ainda nos Manuscritos de 1857-1858, Marx coloca o problema, do ponto de vista epistemológico e ontológico:
«O concreto [das Konkrete] é concreto, porque é a reunião [Zusammenfassung] de muitas determinações [vieler Bestimmun-gen] — portanto, [ele é] unidade do diverso [Einheit des Manni-gfaltigen]. No pensar, ele [o concreto] aparece, pois, como processo da reunião, como resultado, não como ponto de partida [Ausgangs-punkt], apesar de ele ser o ponto de partida [efectivamente] real, e, por conseguinte, também o ponto de partida da intuição e da representação. [...] o método de subir do abstracto ao concreto» — isto é, dos diferentes aspectos singulares detectados ao todo que formam — «é, para o pensar, apenas a maneira de se apropriar [aneignen] do concreto, de o reproduzir como um espiritualmente concreto. De modo nenhum [é], porém, o processo de génese [der Entstehun-gsprozess] do próprio concreto»27 — fundamentalmente, porque, na sua materialidade, e não apenas na sua reconstrução subjectiva num saber que dele dá conta, o ser é concreto.
O desafio é, pois, pensar concretamente as concreções do ser.
9. O «capital» como universal concreto. O real é — material e dialecticamente — concreto.
O real não se desfaz numa rapsódia manca de segmentos múltiplos, que, numa insularidade desgarrada de instantes e de instanciações, se fixam, e desarticuladamente justapõem.
O real assume outra natureza. Com-põe um todo, e dispõe de «conexão interna» (innerer Zusammenhang) — dimensões que, justamente, ao saber importa desocultar, e pôr em exame28.
Este concreto encontra-se, porém, organizado nessa totalidade que constitui — mesmo quando a sua estruturação é lábil, mesmo se os equilíbrios que apresenta são instáveis, mesmo quando a «ordem» (aparente, ou invocada) não passa de um resultado provisório de várias «desordens» em tensão29.
Em todas as formas históricas de sociedade há, por isso, um modo de produção determinado que enforma, e configura, a matriz fundamental que preside à instauração e ao desenvolvimento das diferentes relações sociais — definindo até o «posto» (Rang) e a «influência» (Einflufi) que outros modos de produção (herdados do passado, ou a um futuro nascentes) nela possam ocupar e exercer30.
Na «sociedade burguesa» (burgerliche Gesellschaft), «o capital» (das Capital) constitui «o poder económico que tudo domina» (die alles beherrschende okonomische Macht)31 — e, por consequência, é precisamente em torno dele, e por referência a ele, que o funcionamento concreto das colectividades em que exerça o seu império tem que ser compreendido, e perspectivado.
E, com isto, do mesmo passo se aclara algo que não chega a ser enigma.
A obra que leva por título Das Kapital não se chama assim, apenas porque a designação é sonante, apelativa, ou atraente; mas, porque, sob o signo deste emblema, ela visa, enunciar um universal concreto, e anunciar toda aquela mediação (investigada, fundamentada, e pensante) que é necessário levar a cabo.
10. Em que sentido a verdade é sempre concreta.
As categorias — enquanto ferramenta do pensamento — relevam da ordem do abstracto, na medida em que denotam uma universalidade (ou generalidade) que reúne, e unifica, um múltiplo determinado na sua articulação.
No entanto, como vimos, em termos de dialéctica materialista, é imprescindível que elas sejam a expressão abstracta — designadamente, no plano do conhecimento — de uma multiplicidade que é concreta, no teor próprio da sua deveniência:
«A produção em geral [im Allgemeinen] é uma abstracção, mas uma abstracção de entendimento [eine verstandige Abstrac-tion]32, na medida em que ela, de um modo [efectivamente] real [wirklich], salienta, fixa, o comum [das Gemeinsame], e nos poupa, por conseguinte, a repetição [die Wiederholung]. Entretanto, este geral — ou o comum separado [desse múltiplo, heraussondern] por comparação [durch Vergleichung] — é ele próprio um [algo] de muitas maneiras membrado [ein vielfach Gegliedertes], e que se desmultiplica em diversas determinações.»33.
Neste marco, a abstracção é um dispositivo teórico de separação — a partir de um concreto de determinações —, e de apuramento, de um conjunto de traços comuns ao múltiplo que lhe identificam uma unidade (pensada) de que materialmente dispõe.
Comportamento ontologicamente bem diverso é, porém, erigir a abstracção deste modo alcançada em «sujeito» real. Nomeadamente, trata-se do procedimento criticado nas construções à maneira de Hegel empreendidas, que hipostasiam «a Ideia», e que convertem a materialidade histórica do ser numa sua mera «fenomenalização»:
«Quando eu, a partir das maçãs, peras, morangos, amêndoas, [efectivamente] reais, me formo a representação geral "Fruto", quando prossigo e me imagino que a minha representação abstracta: "o Fruto", obtida a partir dos frutos [efectivamente] reais, seria uma entidade existente fora de mim [ein aufier mir exis-tierendes Wesen], e mesmo a essência verdadeira [das wahre Wesen], da pêra, da maçã, etc., eu declaro — expresso de um modo especulativo — "o Fruto" como a "substância [Substanz]" da pêra, da maçã, da amêndoa, etc. Eu digo, portanto, que à pêra é inessencial ser pêra, que à maçã é inessencial ser maçã. O essencial nestas coisas não seria a sua existência [efectivamente] real, sensivelmente intuível, mas a essência por mim delas abstraída, e por baixo delas [por mim] colocada [untergeschoben]: a essência da minha representação, "o Fruto". Eu declaro, então, a maçã, a pêra, a amêndoa, etc., como meras maneiras de existência [Existenzwei-sen], [como] modos [Modi], de "o Fruto". O meu entendimento finito, apoiado pelos sentidos, diferencia, sem dúvida, uma maçã de uma pêra, e uma pêra de uma amêndoa, mas a minha razão especulativa [meine spekulative Vernunft] declara esta diversidade sensível como inessencial e indiferente [gleichgultig]. Ela vê na maçã o mesmo do que na pêra, e na pêra [vê] o mesmo do que na amêndoa, a saber: "o Fruto". Os frutos particulares [efectivamente] reais passam apenas mais por ser frutos aparentes [Scheinfruchte], cuja verdadeira essência é "a substância": "o Fruto".»34.
Ao nível do saber, abstrair de alguma coisa significa não a considerar; enquanto abstrair alguma coisa corresponde a reter, e a fixar, apenas alguma determinação, ou algumas das determinações, de que se reveste (deixando de lado as demais).
Em contrapartida, sabemos concretamente de algo, quando somos capazes de dar conta da totalidade das determinações que o fazem ser aquilo que ele é.
Como Hegel procurava explicar aos seus alunos do liceu de Nurnberg:
«Os objectos são o particular que são, pela determinação [Bestimmung] deles: um objecto sensível, por exemplo, pela sua figura, magnitude, peso, cor, pela conexão mais ou menos estável das suas partes, pela finalidade para o qual ele é empregue, etc. Ora, se se deixar de parte, na representação, as determinações de um objecto, chama-se a isso abstrair. Resta um objecto [ein Gegenstand] menos determinado, ou um objecto [ein Objekt] abstracto. Se, porém, eu extrair [e considerar, herausnehmen], na representação, apenas uma tal determinação singular, também isso é uma representação abstracta. O objecto [der Gegenstand] deixado [belassen] na completude [in der Vollstandigkeit] das suas determinações chama-se um objecto concreto [ein konkreter Gegenstand].»35.
Para efeitos de um potencial ganho de inteligibilidade, é conveniente darmos ainda um pequeno passo mais, em direcção a um outro aspecto relevante de qualquer abordagem dialéctica materialista dos rebatimentos da questão em torno do «abstracto» e do «concreto».
O real — não apenas na amplitude máxima do seu conjunto, mas também nos seus diferentes patamares de realização determinada — constitui, como assinalámos, um imbricado processo de deveniências materiais em continuado movimento endógeno de refiguração.
No plano subjectivo do saber, portanto, é manifesto que aquela verdade que desse real se proponha dar adequadamente conta não pode, em rigor, enclausurar-se na imediatez de uma sua retratação em formato de protocolo vertida: por mais completa e minuciosa que se prometa a narrativa — ou até mesmo a medição quantificada — do momento assim descrito.
Numa perspectiva dialéctica consequente, o verdadeiro tem que englobar, por isso, uma totalidade de determinações, colhidas na sua multiplicidade sincrónica e na unidade das suas diacronias.
A verdade do que quer que seja, a que alguma concreção não faleça, nunca é meramente algo de «simples», e de «inerte», do qual por princípio inconcusso (ou por regra instituída) a contradição se encontrasse arredada, como se, no próprio real, ela não tivesse o seu sítio primeiro de moradia e a sua arena de exercícios.
O modelo e a utensilagem funcionais para operacionalizar um enfoque desta índole encontram-se, de alguma maneira, disponíveis já no idealismo (dialéctico) de Hegel:
«O verdadeiro [das Wahre] é o todo [das Ganze]. Porém, o todo é apenas a essência completando-se [das sich vollendende Wesen] através do seu desenvolvimento [Entwicklung].»36.
Por muito que ao «senso comum» — retido nas malhas da trivial positivação do «coisificado» — custe, a verdade de aquilo que é não se decide na fixidez de um instante, nem no seriado (sem nexo interno atendido) de segmentações alinhadas. Remete para uma totalidade deveniente de determinações múltiplas (e até contraditórias), na unidade convulsa do seu des-dobramento.
É assim que Marx e Engels reelaboram — em clave ontológica materialista — «o grande pensamento fundamental» (der grofie Grundgedanke) presente e actuante neste legado hegeliano:
«O mundo não é de apreender como um complexo de coisas prontas [ein Komplex von fertigen Dingen], mas como um complexo de processos [ein Komplex von Prozessen]»37.
E é a esta luz também que — fazendo, de resto, menção expressa a Hegel — Lénine (com desagradável frequência, mais citado do que bem compreendido) tantas vezes insiste em que
«O princípio fundamental da dialéctica é: não existe verdade abstracta, a verdade é sempre concreta...»38.
Este asserto acerta, mas tem que ser acertadamente assertado.
É a própria objectividade do verdadeiro — a materialidade deveniente do seu fundamento — que impõe que ele não fique circunscrito à abstracção rigidificada: ao aspecto parcelar de uma sua figura momentânea39.
Tornar inteligível a trama dos processos reais supõe uma busca e um estudo da complexidade de que se tecem, e da conexão que os entretece, no fundo: daquela concreção que eles formam e que neles insiste.
Como nos Cadernos filosóficos não deixa de observar-se:
«O conjunto de todos os lados do fenómeno, da realidade e as suas (inter)ligações — eis do que é composta a verdade.»40.
No entanto, a adopção deste enquadramento materialista dialéctico, como bateria de supostos referenciais, não significa de modo algum
nem, por um lado, um severo sacrifício liminar das singularidades — mesmo que evanescentes — à perspectivação em exclusivo da unidade do todo, plasmada nas suas expressões abstractas41, nem, por outro lado, que não haja que aquilatar devidamente da correcção (do fundamento, e da fundamentação, materiais) das determinações múltiplas que, nas suas relações recíprocas e nas suas dinâmicas, integram a totalidade em apreço42
11. O ser do aparecer e o aparecer do ser.
Procurar pensar num horizonte ontológico desta natureza tem certamente as suas implicações, e não propicia qualquer isenção automática de dificuldades.
Tomemos uma afirmação, à vista desarmada, banal (que costuma acompanhar também uma magnificação sorrateira do ilusório império das aparências):
«Aquilo que parece, é», e coloquemo-la à luz dialéctica que eventualmente permitirá divisar-lhe outros sentidos, de entrada, menos suspeitados.
Um sumário dos resultados apontaria, porventura, esquematicamente na seguinte direcção:
Aquilo que parece é: mas não apenas é... aquilo que parece, ou mesmo tão-só... aquilo que aparece; nem o ser de aquilo que parece... se esgota na figura sob a qual imediatamente aparece.
Ser, aparecer, e parecer: encontram-se interligados.
O aparecer é uma forma — imediata, e não raro: abstracta — de manifestação do ser. E perante as aparências — de ordinário, não submetidas a questionamento — muitos pareceres sobem à cátedra, e engrossam no tom, quase na medida directa daquela falta de exame em que se respaldam.
Mas o vínculo que estreita ser, aparecer, e parecer, não é, por conseguinte, a con-junção de uma simples «equivalência».
A ligação, que se verifica, não evacua a necessidade de ponderar o sistema das diferenças em que se enlaçam, e em cujo assentamento a instância determinante advém a aquilo que é, o qual, por seu turno, se não circunscreve àquela positividade fáctica do existente empiricamente perceptível em termos imediatos.
Ser, aparecer, e parecer, relevam de uma ontologia. Para serem compreendidos de modo cabal, aos suores de uma desmontagem ontológica, em cada caso, obrigam.
Por um lado, aquilo que parece pode não corresponder por inteiro áquilo que na realidade se dá.
É deste cais que arranca toda a problemática do enviesamento das «opinações», sobremaneira, no quadro de uma sua sobrede-terminação pelas formatações da ideologia dominante, muito em particular, segundo a perspectiva de classe («espontânea», ou induzida) que as enforma. Estamos no terreno das batalhas ideológicas.
Por outro lado, aquilo que aparece, mesmo quando correctamente fixado nos contornos momentâneos de um seu dar-se imediato, é, na realidade, ele próprio um processo em que vai assumindo formas determinadas que se negam reciprocamente, que conflituam, e — dentro de determinados limites materiais — é ele próprio susceptível de transformação por efeito de prática humana.
Para alguns, o que parece... é.
E tudo está dito, para ficar arrumado.
Para muitos, só é... aquilo que aparece.
E, portanto, a questão resume-se a tratar de «aparecer» naqueles «écran» que mediaticamente definam aquilo que há. Porque, se não «aparece», não «é».
Se pretendermos, porém, dar conta do ser, na sua efectiva realidade, teremos ainda que ser capazes de dar razão do registo das suas «aparições», e do próprio regime dos «pareceres», sobre estas susceptíveis de se originarem.
Uma vez mais, só complicações.
Quando se estava mesmo a «ver» que tudo era tão «simples».
Lá vem esta mania que os filósofos têm de, a torto e a direito, accionar aquele aparelho esquisito tanto da sua predilecção: o «complicómetro» ...
12. «Forma fenoménica» e «essência».
Do ponto de vista técnico, entronca nestes tabuleiros a importante questão da unidade e da diferença entre «forma fenoménica» (Erscheinungsform) — a forma de aquilo que aparece — e «essência» (Wesen), que, no quadro da dialéctica materialista, recebe um tratamento ontológico e epistemológico peculiar.
Como Marx argutamente observa, no livro terceiro de O Capital:
«Se a forma fenoménica e a essência das coisas coincidissem imediatamente, toda a ciência seria supérflua»43.
Caso esta eventualidade maravilhosa se verificasse, bastaria, para o alcançar do saber, uma simples inspecção atenta de aquilo que de pronto se constata.
E, aliás, diferentes orientações epistemológicas, com acentuado pendor para uma «factualidade» exacerbada, parecem não pretender sair de uns exercícios de pilotagem por estas águas ralas. A sofisticação rebuscada de certos instrumentos amiúde brandidos contribui para a composição da aura, mas não deve, na circunstância, induzir-nos no erro de que outra coisa se está a passar.
Segundo a matriz que rege estes entendimentos, é uma acomodação ao existente — imediatamente percebido, ou traduzível em «evidências» — que comanda o «saber» das realidades, porque, no fundo (em que é de toda a conveniência não escarafunchar), «a ordem estabelecida», além de inquestionável, é intransponível, e à «ciência» apenas compete robustecer, e reforçar (teoricamente), o seu império positivo.
Por outro lado, estas questões — na concreção mesma por que se dobram, des-dobram, e re-dobram — ainda se volvem mais retorcidas.
E aquilo que pode ser sentido como perplexidade subjectiva não deixa de possuir fundamento objectivo.
Constatar e compreender não são de todo sinónimos.
O alerta antigo, no que a este ponto respeita, traz a assinatura de um insuspeito Aristóteles:
«Aqueles que têm experiência sabem o que, mas não sabem o por que.» (44.
E acrescem outros factores de perturbação.
A imediatez do «visível», do mesmo passo que mostra, também esconde — como ao dialéctico Heraclito de Éfeso não passou despercebido45 —, e, por vezes, nas próprias unilateralidades que dá a ver: mutila, rasura, e até dis-torce.
Efectivamente, com usitada frequência — e como, não sem uma ponta de bem-humorada ironia, Marx trata de lembrar aos doutos cultores da vulgaridade económica (do tempo dele, e dos que se lhe seguiram) —, no «fenómeno» (ou naquilo que de imediato aparece), as coisas apresentam-se, ou ex-põem-se, «às avessas» (verkehrt) de aquilo que, na realidade, elas são46.
Reflecte-se aqui, por conseguinte, uma circunstância ponderável que não pode deixar de determinar o necessário empenhamento de um esforço e de uma investigação acrescidos, na demanda de um saber verdadeiro acerca da verdade — não só das coisas, mas também das relações, e dos processos.
E o problema que desafia des-cobre-se, ele próprio, no miolo daquela dialéctica em que ser e aparecer se entrelaçam.
Quanto ao outro termo em equação, apenas um breve esboço de reparo.
A «essência» — contrariamente ao entendimento metafísico generalizado que, de ordinário, campeia, e (des)norteia — não é um «Além» de aquilo que se mostra, uma destilação sublimada em misteriosos alambiques da mente, uma «outra» instância que jaz escondida sabe-se lá onde (e de que o acontecer seria automática tradução).
Dando deliberado combate a estas visões antitéticas de um mundo da empiria fenomenalizada e de um reduto de «essenciali-dades» reitoras — reportadas às Ideias de Platão, aos «exemplares» arrecadados no bengaleiro da segunda hipóstase da Trindade, ou a algum outro reservatório selecto de principialidades perdurantes («naturais», ou «transcendentalizadas») —, o idealismo de Hegel elaborou um conceito dialéctico de «essência» (Wesen), cujos constitutivos traços categoriais Marx acolhe (ainda que sem lhe conservar o embasamento ontológico).
A expressão traz a marca do arrevesado — e carrega nos porões uma bateria de supostos não despicienda (que importa criticar) —, mas assinala com nitidez o repartir das águas em que pretende incidir:
«A essência tem que aparecer [erscheinen]. [...]. A essência, por conseguinte, não está por detrás [hinter], ou além [jenseits], de aquilo que aparece [do fenómeno, Erscheinung], mas, pelo facto de que a essência é aquilo que existe, a existência [die Existenz] é aparecimento [fenómeno, Erscheinung].»47.
A «essência» não sub-siste num sacrário, envolta numa redoma: in-siste, e des-envolve-se, no devir mesmo de aquilo que determinadamente ela faz con-sistir.
O jovem Ernst Bloch encontrou, aliás, uma formulação algo poética que, não obstante, se torna feliz, na medida em que assesta a mira no fundamental:
«O segredo do fenómeno resolve-se na história dele» — «Das Geheimnis der Erscheinung lost sich in ihrer Geschichte»48.
A «essência» é aquilo que faz com que o que se mostra apresente os traços que apresenta, >mas é também o ser desenvolvido, mediado, de aquilo que aparece, o qual, precisamente, contém, no processo em que consiste, diferentes negações e transformações da figura que ele imediatamente patenteia.
A «essência» é, deste modo, um universal concreto: é uma unidade abstracta que na sua concreção encerra a processualidade dinâmica das «formas fenoménicas» de que dá razão.
13. A «mercadoria».
Sob o ponto de vista de aquilo que temos vindo a procurar pôr em destaque — ao discorrer, algo apressadamente, sobre o «abstracto» e o «concreto», sobre a «forma fenoménica» e a «essência» —, o primeiro capítulo do Livro primeiro de Das Kapital fornece-nos logo um vasto e complexo campo de ilustração.
Lemos, e ouvimos, por vezes, em endechas de diferentes cantos dedilhadas, que a especial intratabilidade (aparente) deste capítulo — se é que não mesmo do escrito todo — seria tributária da excessiva e embaraçosa presença de uma utensilhagem conceptual directamente importada dos armazéns de Hegel49.
Sem me imiscuir nas miudezas deste eventual negócio tran-sitário (um passo que obrigaria, incontornavelmente, a umas escriturações mais demoradas), pela minha parte, inclino-me a pensar que as ditas «dificuldades» — e, sobretudo, as muitas dificuldades «malditas» — não são nem adventícias, nem nocionais, nem estilísticas.
O difícil de roer no osso decorre, pelo contrário, daquela perspectiva dialéctica que enforma toda a obra — e que nela de modo exuberante pulsa —, enquanto dispositivo teórico destinado a procurar dar conta da própria dialecticidade materialmente inscrita no corpo das realidades50.
Aliás, é neste sentido alargado que cobra a sua inteligibilidade plena, e o seu alcance genuíno, um conhecido aforismo que Lénine regista nos Cadernos filosóficos:
«Não é possível compreender plenamente o "Capital" de Marx e particularmente o seu I capítulo sem ter estudado a fundo e sem ter compreendido toda a Lógica de Hegel. Por conseguinte, século depois nenhum marxista compreendeu Marx!!»51.
Marx, por seu turno, numa fase preparatória ainda dos trabalhos de redacção, não deixou, como é sabido, de reconhecer «o grande serviço» (der grofie Dienst) que uma revisitação da «Lógica» de Hegel lhe prestou, no tocante à «maneira de trabalhar» (Bearbeitung) os materiais52.
Permito-me insistir, porém: o «problema» não reside nas categorias hegelianas, o problema é a dialéctica das realidades que reclamam compreensão.
Porquê começar pela «mercadoria»?
A resposta de Marx é por ele próprio dada53:
O livro começa pela «mercadoria», porque ela constitui a unidade elementar (abstracta) de aquilo que aparece (forma feno-ménica) como a «riqueza» (Reichtum) de uma sociedade dominada pelo modo capitalista de produção, a saber: um acumulamento ou «uma colecção enorme de mercadorias» (eine ungeheure Waren-sammlung).
No entanto, essencialmente — ou seja, na razão que o determina naquilo mesmo que ele é — o capitalismo não consiste num amontoado de mercadorias.
Mais, e aqui o tal complicómetro — termo por que se poderia designar também o taxímetro da dialéctica — começa aceleradamente a contar:
A «mercadoria» aparece — de imediato — como um objecto exterior, como uma «coisa», susceptível de satisfazer necessidades humanas.
No entanto, desde logo, essas necessidades tanto podem provir do batimento das horas que o relógio do «estômago» (Magen) inexoravelmente marca, como podem decorrer das elucubrações mais delicadas que a «fantasia» (Phantasie) engendra;
e, por sua vez, aquilo que é chamado a preencher e a saciar essas carências sentidas tanto pode apresentar-se de pronto como «meio de vida» (Lebensmittel) que assegura a sobrevivência imediata, como pode revestir a forma mais complexa e retorsa do «meio de produção» (Produktionsmittel) que mediadamente permite o fabrico dos artigos mais desvairados ...
E o desfiar da desfilada prossegue.
A própria «coisa» — sob cuja forma de «mercadoria» ela imediatamente aparece — não é apenas uma identidade (abstracta) sem espessura; é uma determinada totalidade de «propriedades» (Eigenschaften), e é de dentro dessa totalidade de determinações que, historicamente, a respectiva «utilidade» (Nutzlichkeit) é identificada como tal e realizada, atendendo ao teor dessas propriedades e também a uma «convenção» (Convention) decorrente das formas sociais históricas em que ela é chamada a funcionar.
Nova aceleração.
Um dado algo — por exemplo, uma «mercadoria», ou o «dinheiro» — aparece decerto como «coisa», mas ele não é somente a figura petrificada sob a qual aparece.
Com efeito, em si mesmos, tanto «mercadoria» como «dinheiro» são o resultado coisificado (reificado, coisal) de um complexo processo em que vão sendo engendrados, de uma teia complicada de relações que preside à sua própria produção (e circulação), e que nessa figura de objecto se deposita.
14. O «feiticismo».
Marx designa justamente pela categoria de «feiticismo» (Feti-schismus):
Aquela atitude teorética — não isenta de implicações práticas, aliás — que toma e encara a «mercadoria» apenas como «coisa», quando — na realidade social histórica da sua concrescência (e significância), na própria materialidade em que consiste — ela é uma expressão de relações de produção determinadas entre pessoas.
Para recordar formulações conhecidas, que figuram na segunda edição alemã do Livro primeiro de O Capital (1872), onde o passo referente a esta temática é particular alvo de desenvolvimentos, relativamente ao texto de 1867:
«A relação social determinada dos próprios seres humanos» (das bestimmte gesellschaftliche Verhaltnifi der Menschen selbst) — designadamente, em muitas das concepções que integram o corpus literário da economia política burguesa — assume «a forma fantasmagórica de uma relação de coisas» (die phantasmagorische Form eines Verhaltnisses von Dingen)54.
Atenção ao que aqui está escrito, e, sobremaneira, ao desembaraço com que, por vezes, aparece treslido.
Contrariamente àquela sofisticação estilizada do idealismo sub-reptício de muitas interpretações (algumas delas gostando de reclamar-se até de um «marxismo autêntico» finalmente revelado à massa dos gentios)55:
não se trata de todo aqui de uma dissolução da materialidade das coisas na acção que as fabrica, ou no tecido social de relações que as subtende, mas, sim, e tão-só, da compreensão (materialista e dialéctica) de que o real, na sua própria materialidade, contém trabalho humano incorporado, e de que as relações sociais em que se produz têm igualmente carácter material.
A experiência originária que pulsa no termo «feiticismo» remete para a língua portuguesa, de onde, através do seu afrance-samento (designadamente, no âmbito de uma crítica setecentista das religiões, em geral), transitou para o léxico alemão. É, aliás, nesta trajectória que o próprio percurso de Marx se inscreve56.
O objecto material adorado como um «ídolo», em virtude de se lhe atribuírem poderes sobrenaturais encantatórios, é um fétiche, é um feitiço:
quer dizer, é algo de feito, mas que se vê convertido em algo de independente e de subsistente por si (investido, ademais, de sortilégios extravagantes), esquecendo-se, ou apagando-se, assim, todo aquele fazer que se lhe encontra na raiz da significação (partilhada por uma comunidade de crentes)57.
Nesta medida, de acordo com uma visão feiticista, por exemplo, da «mercadoria», abstrai-se por completo não só do trabalho nela sedimentado, como também do quadro de relações (de exploração) que presidem ao seu fabrico, para se ficar somente com a reificação do produto, com o resultado objectivado desses processos.
Como Marx sublinha, logo na primeira edição de O Capital: «Assim como, na religião, o ser humano é dominado pela fancaria [Machwerk] da sua própria cabeça, assim, na produção capitalista, ele [é dominado] pela fancaria da sua própria mão.»58.
15. O «capital» como relação social de exploração.
No que diz respeito a uma compreensão de aquilo em que o «capital» consiste, um restabelecimento — materialista, e dialéctico — das coisas no seu tabuleiro correcto adquire traços da maior relevância.
Ao contrário do que habitualmente se imagina (e crê), «o capital não é uma coisa [eine Sache], mas uma relação social [ein gesellschaftliches Verhaltnis] mediada por coisas.»59.
Realizado embora, sob a forma de «dinheiro» (Geld), no processo de circulação das mercadorias, o capital é engendrado, porém, na esfera da produção60: por «trabalho vivo» [lebendige Arbeit]61 não pago — a fonte (escondida no bojo, mas sem insondáveis «mistérios») daquela «mais-valia» (Mehrwert)62 gulosamente embolsada, sob a forma de «lucro» (Profit)63, pelos proprietários dos meios de produção, para vir a ser relançada no circuito produtivo, como «capital-dinheiro adicional» (zuschussi-ges Geldkapital), no quadro da chamada «reprodução alargada» (erweiterte Reproduktion)64.
É por isso que, ao arrepio do que parece imediatamente perceptível, e não pode apenas nessa imediatez65 ser retido:
«A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria [Produktion von Waare]; ela é, essencialmente, produção de mais-valia [Produktion von Mehrwerth].».
«O operário produz, não para ele [próprio], mas para o capital. Não basta mais, por conseguinte, que ele produza, em geral. Ele tem que produzir mais-valia.».
Em conformidade, no estrito (e estreito) quadro do modo capitalista de produção (e de reprodução) do viver:
«Só é produtivo o operário que produz mais-valia para o capitalista, ou que serve para a auto-valorização [Selbstverwerthung] do capital.»66.
Trata-se, verdadeiramente, de um ponto nuclear. Não apenas da doutrina, mas do próprio funcionamento capitalista das realidades materiais. Sem uma compreensão deste dispositivo, e desta dinâmica, não é possível entender o que se passa.
Marx regressa ao assunto repetidamente. Aproveitando, a cada nova retomada, para descortinar, e enriquecer, o conjunto das dimensões conexas.
Como no Livro terceiro de O Capital se refere:
«O capitalista não produz a mercadoria por causa dela própria, não [a produz] por causa do valor de uso [Gebrauchswerth] dela, ou [por causa] do seu consumo pessoal. O produto de que, de facto [in der That], se trata para o capitalista não é o próprio produto palpável [handgreiflich], mas o excedente de valor [WerthUberschufi] do produto acima [Uber] do valor do capital nele consumido.»67.
Nas Teorias acerca da Mais-valia — redigidas por 1862-1863, mas apenas postumamente publicadas —, a questão é por este outro ângulo apresentada:
«Trabalho produtivo no sentido da produção capitalista é o trabalho assalariado [Lohnarbeit] que, na troca [Austausch] contra a parte variável do capital (a parte do capital desembolsada em salário), não apenas reproduz essa parte do capital (ou o valor da sua faculdade de trabalho própria), mas, além disso [aufierdem], produz mais-valia para o capitalista. Só por esse facto [em rigor: através disso, dadurch], mercadoria ou dinheiro são transformados em capital, produzidos enquanto capital. Só é produtivo o trabalho assalariado que produz capital.»68.
É por isso igualmente que aquilo que poderíamos designar pelo incostumado (e rebarbativo) termo de: mercadorização — isto é, «a tendência» (die Tendenz), inerente ao modo capitalista de produção, que aponta no sentido de ele, pela sua própria matriz constitutiva, «transformar toda a produção, o mais possível, em produção de mercadorias»69 — guarda um vínculo determinante e decisivo, do ponto de vista das relações laborais efectivamente reais — já que a respectiva expressão jurídica codificada pode assumir (e, como é notório, assume) formas enganadoras (dos famigerados «recibos verdes», às curiosa figura do «empresário em nome individual»), e que, ademais, na representação social, o fenómeno se encontra vulgarmente distorcido —, com o alastramento do «sistema do trabalho assalariado» (Lohnarbeitssystem)70, inclusivamente, a ramos de actividade que, em etapas anteriores, se lhe encontravam, de alguma maneira, subtraídos (sob a designação genérica de «profissões liberais»).
É a esta luz, designadamente, que importa, com vista a dissipar mal-entendidos vários, ter presente que, no âmbito da Modernidade (e, por maioria de razão, na nossa própria contemporaneidade):
«Do ponto de vista económico [okonomisch], por "proletário" [Proletarier] não é de entender senão o trabalhador assalariado [der Lohnarbeiter] que produz e valoriza "capital", e que é posto na rua [aufs Pflaster] logo que se torna supérfluo [uberflussig] para as precisões de valorização [Verwerthungsbedurfnisse] do "Monsieur Capital", como o dr. Pecqueur71 chama a essa pessoa72.»73
É por isso ainda que, de acordo com uma outra formulação lapidar de Marx, em que nem sempre é devidamente atendida a riqueza de todas as dimensões para as quais remete:
«O capital é trabalho morto [verstorbene Arbeit], o qual apenas se aviva [ou: anima, beleben] — à maneira de um vampiro [vampyrmafiig] — pelo sugamento [ou: sucção, Einsaugung] de trabalho vivo [lebendige Arbeit], e que vive [leben] tanto mais quanto mais dele sugar.»74.
16. Remate
Em suma, arrancando — em modo materialista — com a análise dessa abstracção que dá pelo nome de «mercadoria», acabamos por nos ir elevando a toda uma dialéctica concreta do «capital».
Não por mágicas artes — ou por artifícios rebuscados — de alguma filosofia de «alta escola».
Mas pelo exercício — criterioso e perseverante, fundamentado e lúcido — de um pensar (científico) que visa compreender o teor e a dinâmica das realidades, no sentido de contribuir para a sua transformação, tendo por horizonte o viver enriquecido de uma humanidade emancipada.
Afigura-se-me que — para ilustração rasteira do necessário envolvimento de uma dimensão filosófica pensante na lida com, e na penetração de, matérias económicas — chega.
Em qualquer caso, basta — para uma quase exaustão (sem remédio) da vossa generosa paciência. Mesmo se militantemente revolucionária.
Muito obrigado.
Lisboa, Março de 2010/Julho de 2016.
Nota final A
Trabalho em abstracto e trabalho concreto.
Nesta exposição, tomaremos as categorias marxistas de abstracto e de concreto no seu significado concepcional genérico — tal como ele, no âmbito da ontologia e da epistemologia, se processa —, e não na particularidade (técnica) de que alguns dos seus empregos igualmente se revestem.
Por exemplo, no quadro do problema da determinação do «valor» (Wert) de uma «mercadoria» (Ware), medido pelo tempo médio de trabalho socialmente necessário à sua produção (num determinado estádio do desenvolvimento das forças produtivas, que, na altura, é geralmente partilhado em cada ramo), o, por vezes, denominado: «trabalho abstracto» — ou, melhor: «o trabalho humano em abstracto» (die abstrakt menschliche Arbeit), isto é: «abstractamente» considerado —, assume uma dimensão quantitativa (susceptível de permitir uma equação de actividades muito diferenciadas), enquanto «o trabalho concreto» (die konkrete Arbeit) denota aquela especificidade qualitativa dos trabalhos que produzem «valores de uso» (Gebrauchswerte) determinados.
Como no texto correspondente à segunda edição alemã do Livro primeiro de O Capital (1872) se refere:
«Todo o trabalho [alle Arbeit] é, por um lado, dispêndio de força de trabalho humana no sentido fisiológico, e, nesta qualidade [Eigenschaft] de trabalho humano igual ou de trabalho humano em abstracto, ele forma o valor das mercadorias [der Waren-Wert]. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho humana numa forma particular com uma finalidade determinada [in besondrer zweckbestimmter Form], e, nesta qualidade de trabalho útil concreto, ele produz valores de uso.»75.
Penso que este excerto substitui uma passagem onde — na versão original de 1867 — se lê:
«Do até agora [dito], segue-se que, na mercadoria, não estão decerto metidas duas espécies [Sorten] diversas de trabalho, mas, sim, que o mesmo trabalho [diselbe Arbeit] está determinado de um modo diverso [verschieden], e até mesmo de um modo contraposto [entgegengesetzt], consoante ele seja referido ao valor de uso da mercadoria (enquanto produto dele), ou ao valor das mercadorias (enquanto expressão meramente objectiva dele). Assim como a mercadoria tem que ser, antes de tudo, objecto de uso [Gebrau-chsgegenstand], para ser valor, assim o trabalho, antes de tudo, tem que ser trabalho útil [nutzliche Arbeit], actividade produtiva com finalidade determinada, para contar pura e simplesmente [schlechthin] como dispêndio de força de trabalho humana, e, por conseguinte, como trabalho humano.»76.
Mais tarde, Engels, num artigo de crítica saído em The Com-monweal de Londres (Novembro de 1885) — castigando a destreza de um certo tradutor77 para «a conversão do sentido alemão em contra-senso inglês» (the turning of German sense into English nonsense) — voltará a este tema do «carácter duplo do trabalho» (the duplex character of labour), para lhe aclarar o teor, aproveitando, inclusivamente, virtualidades lexicais de discriminação que o idioma em uso na Grã-Bretanha proporciona:
«O trabalho [labour], considerado como um produtor [a producer] de valor de uso [use-value], é de um carácter diferente, tem qualificações [qualifications] diferentes, do que o mesmo trabalho, quando considerado como um produtor de valor [value]. Um, é trabalho de um tipo especificado [of a specified kind]: fiar, tecer, lavrar, etc.; o outro, é o carácter geral da actividade produtiva humana — comum ao fiar, tecer, lavrar, etc. — que os compreende a todos sob o termo comum único [the one common term]: trabalho. Um, é trabalho no [sentido] concreto [in the concrete]; o outro, é trabalho no [sentido] abstracto [in the abstract]. Um, é trabalho [em sentido] técnico; o outro, é trabalho [em sentido] económico. Em suma, porque a língua inglesa tem termos para ambos: um, é work, enquanto distinto de labour; o outro, é labour, enquanto distinto de work.»78.
Numa nota de Engels ao texto de Marx (na versão de 1872) que começámos por citar — acrescentada à edição inglesa de O Capital (1887), cujos trabalhos acompanhou de perto —, podemos igualmente ler:
«A língua inglesa tem a vantagem de possuir palavras diferentes para os dois aspectos do trabalho [for the two aspects of labour] aqui considerados. O trabalho que cria Valor de Uso, e que conta qualitativamente [qualitatively] é Work, enquanto distinguido de Labour; aquele [trabalho] que cria Valor, e que conta quantitativamente [quantitatively] é Labour, enquanto distinguido de Work.»79.
Tenham-se, ademais, presentes dois aspectos centrais.
Por um lado, em todo este desenvolvimento analítico, não se trata de «dois» trabalhos, mas de um mesmo trabalho — considerado, no entanto, segundo duas das determinações que materialmente encerra.
Por outro lado, não esqueçamos que o «valor» de uma mercadoria, na sua concreção tomado, corresponde à identidade dialéctica de «valor de uso» (que reflecte a respectiva «utilidade») e de «valor de troca» (em que, na sua circulação pelo mercado, adquire um «preço»).
Como o próprio Marx assinala:
«A magnitude de valor [die Wertgrofie] da mercadoria exprime, portanto, uma relação — necessária, imanente ao seu processo de formação — com o tempo de trabalho social. Com a transformação [die Verwandlung] da magnitude de valor em preço, esta relação necessária aparece como relação de troca da mercadoria com uma outra mercadoria [na edição de 1872: a mercadoria-dinheiro, die Geldwaare] existente fora dela. Porém, nesta relação, tanto pode exprimir-se a magnitude de valor da mercadoria como a relação contingente [das zufallige Verhaltnis; na edição de 1872: o mais ou o menos, das Mehr oder Minder] na qual, em dadas circunstâncias, ela é alienável [veraufierlich]. Assim, a possibilidade de incongruência quantitativa entre preço e magnitude de valor, ou o desvio [die Abweichung] do preço relativamente à magnitude de valor, está, portanto, dada [na edição de 1872: reside, liegt] na própriaforma-preço.»80.
Nota final B
As obscuridades de Hegel herdadas
Como no texto anteriormente já referimos, Engels, numa das suas recensões, levanta a ponta do aviso: há umas 40 páginas iniciais de «coisas fortemente dialécticas» (stark dialektische Sachen) que dificultam a apreensão81.
E o próprio Marx, no posfácio de 1872 ao Livro primeiro, explica e confessa o seu namorisco ocasional com «o modo de expressão» (die Ausdrucksweise) peculiar de Hegel, «no capítulo sobre a teoria do valor» (im Kapitel uber die Werththeorie)82.
A Lénine, por sua vez, igualmente não escapou que «a análise dos silogismos em Hegel» — nomeadamente, com o encadeamento entre singularidade, particularidade, e universalidade que manifestam — «lembra a imitação de Hegel em Marx no I capítulo [de O Capital]»83.
As prevenções de Engels e de Marx poderão ser sintomáticas de um determinado ambiente meteorológico em formação, preco-cemente surpreendido.
Todavia, o filão prometia, e não deixou de conhecer — logo, e até hoje — outros garimpeiros esforçados, na busca de minerar outras gemas.
Nas suas tentativas para desmerecer o pensamento de Marx, o celebrado Eugen Duhring conseguia divisar nele — já desde o Zur Kritik der politischen Okonomie de 1859 — uma vassalagem de prosélito supersticioso perante «a caricatura hegeliana da Lógica» (die Hegelsche Caricatur der Logik), leia-se: a dialéctica, servindo ela tão-só para enfarpelar, no que toca ao domínio do económico, uma confrangedora porção de «trivialidades [sacadas] dos ingleses» (Trivialitaten der Englischen)84.
Com mais delicada subtileza nos acenos, outros apontam a um alvo parecido.
E o caso, por exemplo, de Raymond Aron:
«Hegel é um filósofo tão obscuro no pormenor [dans le détail], como no conjunto [dans l’ensemble]. Marx, no pormenor, não é fundamentalmente difícil, se bem que a linguagem dele seja abstracta e exija um certo treino intelectual. A obscuridade dele releva do método seguido, e de um certo número de questões que são, ao mesmo tempo, muito simples, porque se encontram em todas as exposições elementares [leia-se: em qualquer manual para principiantes], e muito difíceis, uma vez que se continua indefinidamente a discuti-las [e, portanto, não têm solução].»85.
Pelo meio, poderíamos ainda recordar Vilfredo Pareto.
Na sequência de um apanhado que faz daquilo que ele imagina ser a doutrina hegeliana do Estado86, remata, não escondendo alguma indignação:
«Tudo isto é incompreensível, e assemelha-se às divagações de um sonho. Ora, é preciso notar que o Hegelianismo dominou o pensamento da maioria dos economistas "éticos", e de uma parte dos socialistas, inclusivamente, até Marx.»87.
Quanto ao fundo da questão, é sintomático que, em 1891, Engels não deixe de recomendar a Conrad Schmidt um estudo sério e aprofundado do pensamento de Hegel, norteado pela perspectiva de, «sob a forma incorrecta» (unter der unrichtigen Form) e mesmo quando haja articulações do conjunto que se apresentam como forçadamente «artificiais» (erMnstelte), descobrir «o correcto e o genial» (das Richtige und Geniale) que nele se encontra.
Tudo isto sem esquecer algo de ontologicamente decisivo:
«A inversão da dialéctica em Hegel repousa em que [segundo ele] ela deve ser [um] "autodesenvolvimento do pensamento", e, por conseguinte, a dialéctica dos factos [deve ser] apenas [uma] imagem reflectida [Abglanz] dele [do pensamento], enquanto [para Marx e para Engels] a dialéctica na nossa cabeça é contudo apenas o reflexo [die Widerspiegelung] do desenvolvimento efectivo [tatsachliche Entwicklung] que se completa no mundo [histórico-]natural e histórico-humano, obedecendo a formas dialécticas. Compare você um dia o desenvolvimento, em Marx, da mercadoria a capital com o [desenvolvimento], em Hegel do ser [Sein] à essência [Wesen], e terá um paralelo totalmente bom: aqui, o desenvolvimento concreto, tal como ele resulta dos factos; ali, a construção abstracta (daquelas que se teria podido fabricar também uma dúzia de outras), onde pensamentos sumamente geniais e, por vezes, conversões [Umschlãge] muito correctas — como a da qualidade em quantidade, e inversamente — são confeccionados [verarbeiten] em um aparente autodesenvolvimento de um conceito a partir de outro.»88.
Nota final C
A malfadada dialéctica
Efectivamente, para determinadas famílias — com bons pergaminhos censórios na criticância, e más digestões no repasto —, esta obscuridade hegelianista que em Marx se reprova tem afinal no endereço uma outra morada:
A encomenda destina-se, no fundo, a aviar — sorrateira, ou abertamente — um sumário despedimento da dialéctica.
Com um rebatimento directo sobre a orientação política dos combates, é por demais significativa a bernsteiniana pressa em remover do palco «as armadilhas do método hegeliano-dialéctico» (die Fallstricke der hegelianisch-dialektischen Methode): não, em virtude de ressaibos idealistas de que se encontrassem eivadas; mas, porque na realidade, o arcaboiço da «dialéctica» é que surge considerado como a ratoeira....
E mais revelador ainda se acusa aquele bernsteiniano palpite aventado de que Marx e Engels, por infelicidade, jamais se conseguiram livrar «completamente» (vollig) de todo um conjunto de abordagens que não passam, no fim das contas, de «produto de um resto de hegeliana dialéctica da contradição» (Produkt eines Restes Hegelscher Widerspruchsdialektik)89.
Este é o contexto preciso para que uma retumbante declaração de fecho possa cobrar o seu verdadeiro sentido (o qual não coincide de todo com aquele que aparenta imediatamente):
«Aquilo que Marx e Engels produziram [leisten] de grande, eles não o produziram graças à dialéctica de Hegel, mas apesar dela.»90.
Sem dúvida que a obra (teórica, e prática) de Marx e de Engels — com aquelas contribuições e atributos que lhe sejam reconhecidos (independentemente da variação axiológica na escala dos apreços) — não é um mero decalque (melhorado) da dialéctica de Hegel.
Todavia, à época, e nos círculos com queda manifesta para o descambo por estas ravinas, o contorcionismo socorre-se de uma outra torção. E a pirueta gímnica traduz o gabarito atlético dos perpetradores da proeza.
O exercício recebe exemplificação notável, por exemplo, na prosa de um artigo do holandês Christian Cornelissen — antigo dirigente da Sociaal-Democratische Bond, em deriva para um certo anarco-sindicalismo afrancesado —, que promete pôr a nu «a influência perniciosa deste método dialéctico sobre a obra de Marx» (der schãdliche Einfluss dieser dialektischen Methode auf Marx’ Werke).
A intenção será «despir», mas determinante é a «roupa» que ele traz vestida.
O achado redunda nisto: «o método filosófico» (die philoso-phische Mehtode) de Marx pretende «colocar sobre os pés» (auf die Fusse stellen) a dialéctica hegeliana; mas, esta «dialéctica de Hegel "revirada"» ("umgestulpte" Hegelsche Dialektik) — ou seja, removida da sua postura (idealista, acrescento eu) de cabeça para baixo —, pasme-se: «permaneceu, apesar disso, dialéctica de Hegel» (sie ist trotzdem Hegelsche Dialektik geblieben)91.
Conclusão, aos balcões aviada: dialéctica é dialéctica, dialéctica é Hegel; e, por isso, há que, sem demora nem contemplações, extirpar do marxismo (não envelhecido) todas essas excrescências dialécticas...
Para além de outras infelizes mínguas supervenientes, aquilo que avulta nestes preparos bernsteino-cornelissenianos é uma cegueira pertinaz para a cor da ontologia.
Enfim, tudo parece servir de pretexto alegável para que se rasure a dialéctica do materialismo dialéctico marx-engelsiano.
Com impacte na desqualificação liminar intentada do discurso de Marx no que se refere à Economia, o enfoque utilizado por Bohm-Bawerk (e que continua a dispor na procissão de seguidores fiéis) deixa transparecer com meridiana clareza o objectivo perseguido.
Na ausência (decretada) de fundamento material, avançam as prestidigitações da «dialéctica»:
«O sistema dele [de Marx] não guarda nenhum contacto [Fuhlung] sólido, cerrado, com os factos [die Tatsachen]. Nem por salutar empiria, nem por uma sólida análise económico-psi-cológica92, conseguiu Marx, a partir dos factos, os fundamentos para o seu sistema, mas ele não o funda em nenhum solo [Boden] mais firme do que o de uma dialéctica de entretela [steifleinene-Dialektik].»93.
Ficamos num balancé, que oscila entre a fancaria de recurso, e o peso morto sem sustentação.
E a entrada do ensaio chega mesmo a ser tocante, no que diz respeito à candura com que até os contornos sociais do ataque são assumidos:
«Karl Marx foi, como escritor, um invejável homem com sorte [ein beneidenswert glucklicher Mann]. Ninguém quererá afirmar que a obra dele pertence aos livros facilmente legíveis, e facilmente entendíveis. Um lastro [ein Ballast] consideravelmente mais diminuto de dialéctica difícil, e de aborrecedoras deduções que trabalham com ferramenta matemática, ter-se-ia tornado, para a maioria dos outros livros, um impedimento invencível para que abrisse o caminho até ao grande público. Marx tornou-se, apesar disso, um apóstolo [ein Apostel] para os círculos mais amplos, e, de resto, para aqueles círculos, exactamente, para os quais a leitura de livros difíceis não é com eles.»94.
De uma penada, ficam, deste modo, «cientificamente» despachados: Marx, a corja ignara dos socialistas, e o proletariado em geral. Não se pode dizer que à obra falte asseio.
Entretanto, deparamos também, por vezes, com tiraços — ou outras tiradas — que generosamente dão a entender o contrário daquilo que, na realidade, dizem.
Por isso, cuidado e cautela nunca fizeram mal nestas andanças.
Um diligente estudioso da matéria, para alicerçar o «cientificismo» de Marx, declara, preambularmente, só ter encontrado
«Poucos vestígios [peu de traces], em O Capital, do famoso método dialéctico», e, na passada, explicita-lhe uma definição:
«aquele que consiste em situar-se alternativamente sobre o cavado [le creux] e a crista [la crête] das vagas»95.
Supõe-se que a pesquisa, neste alto-mar, deve ter dado uma trabalheira, mesmo sem lhe ascender ao píncaro, e comprometido dotes de extraordinária engenharia, no posterior escavamento da hermenêutica.
Com o descritor adoptado para «o método dialéctico» — onde, manifestamente, a dialéctica materialista de Marx não cabe — é de espantar como ainda se conseguiu achar «poucos vestígios», quando não há lá base para um vislumbre sequer que corresponda ao estipulado naquelas «especificações»...
Dissipação do «mistério» (inexistente): Maarek toma como «método dialéctico» (méthode dialectique), atribuído a Marx, «o método absoluto» (la méthode absolue) que Proudhon atamancou (nuns graciosos bailados de «tese» e de «antítese») a partir dos seus mal-entendidos quanto às concepções de Hegel96.
Notas:
(1) O Retomo, e desenvolvo, um texto publicado em: Caderno Vermelho, Lisboa, n. 18 (2010), pp. 40-49, que serviu de base a uma conferência proferida na Quinta da Atalaia, a 20 de Março do mesmo ano. [Texto transcrito de: José Barata-Moura, Ontologia e Política. Estudos em torno de Marx — II, Edições «Avante!», Lisboa, 2016, pp. 309-376.] ↲
(2) Cf. Karl MARX — Friedrich ENGELS, Die deutsche Ideologie. Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten (1845-1846), III, I, Altes Testament: Der Mensch, 6, C; Marx-Engels Werke, ed. IML (doravante: MEW), Berlin, Dietz Verlag, 1969(4), vol. 3, p. 218. ↲
(3) Cf. MARX, Thesen über Feuerbach (1845), 11; MEW, vol. 3, p. 7. ↲
(4) Aliás, é precisamente este o sentido em que Marx e Engels criticam «a ideologia» enquanto expressão do «idealismo» que afectava (e infectava) «a filosofia» dominante no tempo deles — inclusivamente, entre os publicistas que se reclamavam de uma «esquerda» hegeliana —, e contra cujos supostos se insurgiam:
«O idealismo alemão não se separa por nenhuma diferença específica da ideologia de todos os outros povos. Também esta considera o mundo como dominado por Ideias, as Ideias e conceitos como princípios determinantes, determinados pensamentos como o mistério do mundo material acessível aos filósofos.» — «Der deutsche Idealismus sondert sich durch keinen spezifischen Unterschied von der Ideologie aller andern Völker ab. Auch diese betrachtet die Welt als durch Ideen beherrscht, die Ideen und Begriffe als bestimmende Prinzipien, bestimmte Gedanken als das den Philosophen zugängliche Mysterium der materiellen Welt.», MARX-ENGELS, Die deutsche Ideologie, Vorrede; MEW, vol. 3, p. 14. ↲
(5) «A modificação [die Veränderung] da consciência, separada [da modificação] das relações — tal como ela é explorada pelos filósofos como profissão, quer dizer: como negócio —, é ela própria um produto das relações subsistentes, e co-pertence-lhes.» — «Die Veränderung des Bewußtseins, abgetrennt von den Verhältnissen, wie sie von den Philosophen als Beruf, d. h. als Geschäft, betrieben wird, ist selbst ein Produkt der bestehende Verhältnisse und gehört mit zu ihnen.», MARX-ENGELS, Die deutsche Ideologie, III, II; MEW, vol. 3, p. 363. ↲
(6) Porque «a consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos seres humanos é o processo [efectivamente] real de vida deles» (das Bewußtsein kann nie etwas Andres sein als das bewußte Sein, und das Sein der Menschen ist ihr wirklicher Lebensprozeß), é que «a força impulsionadora da história» (die treibende Kraft der Geschichte) não reside naquela «Crítica» (Kritik) que apenas se preocupa com as ideias, mas na «revolução» (Revolution) que traduz em acto (e, assim, actualiza) um poder material prático. Cf. MARXENGELS, Die deutsche Ideologie, I; MEW, vol. 3, respectivamente, pp. 26 e 38. ↲
(7) «Wir treten dann nicht der Welt doctrinär mit einem neuen Princip entgegen: Hier ist die Wahrheit, hier kniee nieder! Wir entwickeln der Welt aus den Principien der Welt neue Principien.», MARX, Brief an Arnold Ruge, Septem-ber1843; Marx-Engels Gesamtausgabe, ed. Günter Heyden e Anatoli Jegorow (doravante: MEGA(2), Berlin, Dietz Verlag, 1975, vol. III/1, p. 56. ↲
(8) «Die Kommunisten sind also praktisch der entschiedenste, immer weitertreibende Teil der Arbeiterparteien aller Länder; sie haben theoretisch vor der übrigen Masse des Proletariats die Einsicht in die Bedingungen, den Gang und die allgemeinen Resultate der proletarischen Bewegung voraus.», MARX-ENGELS, Manifest der Kommunistischen Partei (1848), II; MEW, vol. 4, p. 474. ↲
(9) Cf. Vladímir Ilitch LÉNINE, Materialismo e Empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reaccionária (1909), VI, 2; tradução portuguesa do original em russo, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!» - Edições Progresso (doravante: ME), 1982, p. 250.
Lembremos, ademais, um outro aspecto preponderante.
Quando Lénine alude a, e insiste em, que «filosofia do marxismo» se encontra «fundida de uma só peça de aço» — da qual, por conseguinte, não podemos licitamente suprimir, a não ser sob pena de descaracterização grave, «nenhuma premissa fundamental», «nenhuma parte essencial» —, é precisamente a este «materialismo filosófico» que se está a reportar. Cf., ibid., p. 247. ↲
(10) «Das Mittelalter nicht vom Katholicismus und die antike Welt nicht von der Politik leben konnten», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, 1, 1; MEGA(2), vol. II/5, p. 50. ↲
(11) Cf. ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für die ‘ElberfelderZeitung" (1867); MEW, vol. 16, p. 214. ↲
(12) Cf. ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für die "Rheinische Zeitung" (1867); MEW, vol. 16, p. 213. ↲
(13) «Der Verfasser behandelt darin die ökonomischen Verhältnisse in einer ganz neuen, materialistischen, naturhistorischen Methode.», ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für den "Beobachter" (1867); MEW, vol. 16, p. 226.
Penso que esta afirmação se prende directamente com uma passagem de O Capital. Marx, como é sabido, fazia derivar «os defeitos do materialismo abstractamente científico-natural» (die Mängel des abstrakt naturwissenschaftlichen Materialismus) do facto de este «excluir» (ausschließen), em termos de principialidade, «oprocesso histórico» (der geschichtliche Prozeß). Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, 4, 4; MEGA(2), vol. II/5, p. 303.
Engels põe repetidamente em destaque esta remissão para um imprescindível envolvimento da historicidade:
«Enquanto mesmo a Ciência da Natureza se transforma cada vez mais numa ciência histórica — confira-se a teoria astronómica de Laplace, a Geologia toda, e os escritos de Darwin —, a Economia Nacional era, até agora, uma ciência tão abstracta, [tão] universalmente válida, como a Matemática.» — «Während selbst die Naturwissenschaft sich mehr und mehr in eine geschichtliche Wissenschaft verwandelt — man vergleiche Laplaces astronomische Theorie, die gesamte Geologie und die Schriften Darwins —, war die Nationalökonomie bisher eine ebenso abstrakte, allgemeingultige Wissenschaft wie die Mathematik.», ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für die "Düsseldorfer Zeitung" (1867); MEW, vol. 16, p. 217. ↲
(14) Cf. MARX, Brief an Engels, 7. November 1867; MEW, vol. 31, p. 379. ↲
(15) «Es ist eine für jeden Deutschen betrübende Tatsache, daß wir, das Volk der Denker, auf dem Gebiete der politischen Ökonomie bisher so wenig geleistet haben.», ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für die "Zukunft" (1867); MEW, vol. 16, p. 207. ↲
(16) Um autor insuspeito de efusivas confraternizações com o pensamento de Marx, reportando-se à época de 1790-1870, não deixa, no entanto, de, significativamente (atentos os descontos a que importa proceder quanto à hermenêutica geral), «insistir na grandeza da concepção e no facto de que a análise Marxista é a única teoria económica genuinamente evolucionária que o período produziu» — «to insist on the greatness of the conception and on the fact that Marxist analysis is the only genuinely evolutionary economic theory that the period produced», Joseph Alois SCHUMPETER, History of Economic Analysis (1952), III, 3, 4, b; ed. Elizabeth Boody Schumpeter, London-Boston-Sidney, Allen &Unwin Publishers, 198212, p. 441.
Uma colectânea de estudos que dedicou a «dez grandes economistas» inaugura-se, aliás, com um capítulo, inicialmente publicado em 1942, sobre Marx: SCHUMPETER, Ten Great Economists. From Marx to Keynes, 1; London, George Allen &Unwin, 1952, pp. 3-73. ↲
(17) «Desde que há no mundo capitalistas e operários, não apareceu nenhum livro que fosse de tanta importância para os operários como este. A relação de capital e trabalho — o gonzo em torno do qual gira todo o nosso sistema hodierno de sociedade — é aqui, pela primeira vez, cientificamente desenvolvida» — «Solange es Kapitalisten und Arbeiter in der Welt gibt, ist kein Buch erschienen, welches für die Arbeiter von solcher Wichtigkeit wäre, wie das vorliegende. Das Verhältnis von Kapital und Arbeit, die Angel, um die sich unser ganzes heutiges Gesellschaftssystem dreht, ist hier zum ersten Mal wissenschaftlich entwickelt», ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für das "Demokratische Wochenblatt" (1868); MEW, vol. 16, p. 235.
Entretanto, aos deputados do Partido Social-democrático fora recomendado já que considerassem O Capital «como a Bíblia teórica deles» (als ihre theoretischen Bibel), na medida em que ele constitui «o arsenal» (die Rüstkammer), aonde eles se podem abastecer dos «seus argumentos mais essenciais» (ihre wesentlichsten Argumente). Cf. ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für die "Rheinische Zeitung" (1867); MEW, vol. 16, p. 210.
Referências desta índole encontram-se, aliás, disseminadas pela generalidade das recensões deste período. ↲
(18) Há quem assuma o desassombro na confissão (apesar das confusões quanto ao que retém):
«Acontece que as nossas próprias posições levam [aboutir] a que nos afastemos das perspectivas políticas de Marx, mas a que conservemos quase integralmente as suas posições filosóficas em geral» — «Il se trouve que nos propres positions aboutissent à nous éloigner des perspectives politiques de Marx mais à conserver presque intégralement ses positions philosophiques en général», Lucien GOLDMANN, L’idéologie allemande et les "Thèses sur Feuerbach"; Marxisme et sciences humaines, Paris, Éditions Gallimard, 1970, p. 170.
Para outros, o rebuscamento mascara tão-só aquilo que se pretende mesmo afirmar:
«Ela [a teoria marxiana, Marxian theory] é obsoleta, precisamente, no grau em que esta obsolescência valida os conceitos básicos da teoria» — «it is obsolete precisely to the degree to which this obsolescence validates the basic concepts of the theory», Herbert MARCUSE, The Obsolescence of Marxism (1966); Marx and the Western World, ed. Nicholas Lobkowicz, Notre Dame (Indiana) — London, Notre Dame University Press, 1967, p. 409.
«Quando o marxismo é uma teoria científica do devir social, é, quando muito, uma "teoria do desmoronamento" [do capitalismo, crollo], mas não uma teoria da revolução; quando, pelo contrário, é uma teoria da revolução, sendo apenas uma "crítica da economia política", arrisca-se a que resulte o projecto de uma subjectividade utópica.» — «Quando il marxismo è una teoria scientifica del divenire sociale, è tutt’al più una "teoria del crollo", ma non una teoria della rivoluzione; quando, viceversa, è una teoria della rivoluzione, essendo solo una "critica dell’economia politica", rischia di risultare il progetto di una soggetività utopica.», Lucio COLLETTI, Marxismo e dialettica (1974), 8; Intervista Politi-co-Filosofica, Roma — Bari, Giuseppe Laterza &Figli, 1974, p. 102. ↲
(19) Curiosamente, o idealista Hegel — que, no entanto, era um profundo dialéctico — não deixara já de apontar para o necessário prosseguimento da jornada por outros caminhos:
«O método [...] não é nada de diferente do seu objecto e conteúdo; pois, é o conteúdo em si — a dialéctica que ele tem nele próprio — que o move para diante.» — «Die Methode [...] von ihrem Gegenstande und Inhalte nichts Unterschiedenes ist; denn es ist der Inhalt in sich, die Dialektik, die er an ihm selbst hat, welche ihn fortbewegt.», Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Wissenschaft der Logik (1812), I, Einleitung, Allgemeiner Begriff der Logik; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel (doravante: TW), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969, vol. 5, p. 50. ↲
(20) É precisamente em virtude desta unidade fundante e fundamental de «forma» e de «conteúdo» que Engels — numa passagem que, com frequência é citada fora do seu contexto problemático — pode chamar a atenção para a circunstância «de a concepção» (die Auffassung) que Marx utiliza para a compreensão dos fenómenos históricos não se resolver antecipadamente numa dogmática abstracta:
«Todo o modo de apreensão [ou concepção, Auffassungsweise] de Marx, porém, não é uma doutrina, mas um método. Não dá quaisquer dogmas prontos, mas pontos de apoio para uma investigação ulterior, e o método para esta investigação.» — «Aber die ganze Auffassungsweise von Marx ist nicht eine Doktrin, sondern eine Methode. Sie gibt keine fertigen Dogmen, sondern Anhaltspunkte zu weiterer Untersuchung und die Methode für diese Untersuchung.», ENGELS, Brief an Werner Sombart, 11. März 1895; MEW, vol. 39, p. 428.
Ou seja, aquilo que se encontra em causa neste ajuizamento não é uma contraposição (formal) entre «método» e «sistema» (ou saber determinado organizado), mas tão-só o reconhecimento de que — enquanto método — a dialéctica não pressupõe, não estabelece de antemão, os resultados que há-de vir a atingir, uma vez que estes não se apresentam como meras inferências dedutivas de uma bateria de princípios originariamente postos, mas são, pelo contrário, intrinsecamente indissociáveis da dinâmica material das próprias realidades (a pesquisar). ↲
(21) Para todo este desenvolvimento, veja-se: MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1872, Nachwort; MEGA(2), vol. II/6, p. 709. ↲
(22) Em causa está o sentido em que se estabelece «a relação de pensar e ser» (das Verhältnis von Denken und Sein). Simplificadamente, mas de um modo correcto quanto ao nervo da contraposição, «o campo do idealismo» (das Lager des Idealismus) monta a tenda e os arraiais na «originariedade do espírito frente à Natureza» (Ursprünglichkeit des Geistes gegenüber der Natur), enquanto o materialismo, nas diversas declinações que apresenta, encara «a Natureza como o originário» (die Natur als das Ursprüngliche). Cf. ENGELS, Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie (1888), II; MEW, vol. 21, respectivamente, pp. 274 e 275. ↲
(23) Veja-se a Nota final A: Trabalho em abstracto e trabalho concreto. ↲
(24) Um autor manifestamente insuspeito de exacerbadas simpatias materialistas, Baltasar Gracián, no quadro da moralística do século xvii, havia já posto em merecido destaque esta dimensão da inerência da negação à própria positividade das coisas, através de uma fórmula (talvez, para alguns) perturbadora, porque interpelativa:
«Não encontrarás sim sem não, nem [alguma] coisa sem um senão.» — «No hallarás sí sin no, ni cosa sin un sino.», Baltasar GRACIÁN, El Criticón (1657), III, IX; ed. Elena Cantarino, reprod. Barcelona, Espasa Calpe — Editorial Planeta-DeAgostini, 2003, p. 747.
Por sua vez, lembremos também que Hegel, com todo o seu idealismo dialéctico, não deixa de conceber «o sim reconciliador» (das versöhnende Ja) como um assentimento (sabido) a uma realidade que efectivamente tem que compreender no seu seio, e no desenvolvimento em que consiste, a própria contraditoriedade (resolvida). Cf. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807), Der Geist, VI, C, c; TW, vol. 3, p. 494. ↲
(25) É precisamente contra a metafísica das solidificações inertes que a dialéctica materialista do devir nos pode servir de auxílio:
«A oposição toda», ou seja: inteira, «não é nada de outro senão o movimento dos seus dois lados.» — «der ganze Gegensatz nichts anders ist als die Bewegung seiner beiden Seiten», ENGELS-MARX, Die heilige Familie, oder Kritik der kritischen Kritik. Gegen Bruno Bauer und Konsorten (1845), IV, 4, Kritische Randglosse Nr. II; MEW, vol. 2, p. 36.
«Aquilo que constitui o movimento dialéctico é a coexistência dos dois lados contraditórios, a luta deles, e a fusão deles numa categoria nova. Basta pôr-se o problema de eliminar o lado mau, para se cortar cerce com o movimento dialéctico.» — «Ce qui constitue le mouvement dialectique, c’est la coexistence des deux côtés contradictoires, leur lutte et leur fusion en une catégorie nouvelle. Rien qu’à se poser le problème d’éliminer le mauvais côté, on coupe court au mouvement dialectique.», MARX, Misère de la Philosophie. Réponse à la Philosophie de la Misère de M. Proudhon (1847), II, 1, 4; Oeuvres, ed. Maximilien Rubel, Paris, Éditions Gallimard/Bibliothèque de la Pléiade, 1965, vol. I, p. 81.
Vejam-se, de igual modo, as considerações de Lénine — nomeadamente, nos seus Cadernos Filosóficos — em torno da «luta» e da «unidade dos contrários», enquanto elemento integrante daquela transitividade contraditória que se mostra inerente a cada «coisa» na sua própria fenomenalização. Cf. LÉNINE, Conspecto do livro de Hegel «Ciência da Lógica» (1914), A lógica subjectiva ou a doutrina do conceito, Terceira secção: a Ideia; Obras escolhidas em seis tomos, ed. José Barata-Moura, Francisco Melo, e José Oliveira (doravante: OE6), Lisboa — Moscovo, Edições «Avante!» - Edições Progresso, 1989, vol. 6, pp. 198-200. ↲
(26) «Die Bevölkerung ist eine Abstraktion, wenn ich z. B. die Klassen aus denen sie besteht weglasse. Die Klassen sind wieder ein leeres Wort, wenn ich die Elemente nicht kenne, auf denen sie beruhn. Z. B. Lohnarbeit, Capital etc. Diese unterstellen Austausch, Theilung der Arbeit, Preisse etc. Capital z. B. ohne Lohnarbeit ist nichts, ohne Werth, Geld, Preiß etc.», MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 3; MEGA(2), vol. II/1.1, p. 36. ↲
(27) «Das Concrete ist concret weil es die Zusammenfassung vieler Bestimmungen ist, also Einheit des Mannigfaltigen. Im Denken erscheint es daher als Prozeß der Zusammenfassung, als Resultat, nicht als Ausgangspunkt, obgleich es der wirkliche Ausgangspunkt und daher auch der Ausgangspunkt der Anschauung und der Vorstellung ist. [...] die Methode vom Abstrakten zum Concreten aufzusteigen, nur die Art für das Denken ist sich das Concrete anzueignen, es als ein geistig Concretes zu reproduciren. Keineswegs aber der Entstehungsprocess des Concreten selbst.», MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 3; MEGA(2), vol. II/1.1, p. 36.
Para uma reconstrução materialista deste processo, indispensável a um «conhecimento correcto da realidade objectiva», efectuada, no entanto, assinale-se, a partir de uma leitura de Hegel, e definida, no sentido que aí é privilegiado, como uma ascensão do «concreto» ao «abstracto», veja-se, por exemplo: LÉNINE, Conspecto do livro de Hegel «Ciência da Lógica» (1914), A lógica subjectiva ou a doutrina do conceito, Do conceito em geral; OE6, vol. 6, p. 155. ↲
(28) Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band. Hamburg 1894, III, II, VII, 48, III; MEGA(2), vol. II/15, p. 792.
Para outros desenvolvimentos em torno do tema, veja-se, por exemplo o meu estudo: «Marx e a cientificidade do saber», Materialismo e Subjectividade. Estudos em torno de Marx, Lisboa, Edições «Avante!», 1997, pp. 67-145. ↲
(29) Como Marx observa, reportando-se à «anarquia industrial» (industrielle Anarchie) decorrente da saltitante emigração dos capitais de ramo para ramo na árvore dos negócios, em virtude das oscilações de preços e da concorrência:
«O movimento total [ou conjunto, Gesamtbewegung] desta desordem é a sua ordem.» — «Die Gesamtbewegung dieser Unordnung ist ihre Ordnung.», MARX, Lohnarbeit und Kapital (1849); MEW, vol. 6, p. 405.
Sem extravagante exagero — e chamando à conversa muitos outros fenómenos de contradição e de crise —, poderíamos decerto facilmente convir em que esta observação reflecte um vector constitutivo da própria «ordem» do capitalismo, em geral.
E não se trata propriamente, no que me diz respeito, de nenhuma esconsa conversão tardia aos prodígios da tão cantada (e decantada) «mão invisível» (invisible hand) posta a circular por um ilustrado escocês setecentista, enquanto travestimento, na esfera do económico, daquela teodiceica e leibniziana «harmonia pré-estabe-lecida» (harmonie préetablie) entre o tropel de umas mónadas incomunicantes...
Quanto às fontes, veja-se: Adam SMITH, The Theory of Moral Sentiments (1759, 1790(6), IV, 1, 10; ed. David Daiches Raphael e Alec Lawrence Macfie, reimpr. Indianapolis, Liberty Fund, 1984, pp. 184-185, e An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (1776), IV, 2; ed. William Letwin, London — New York, J. M. Dent &Sons — E. P. Dutton &Co. (Everyman’s Library), 1975(2), vol. I, p. 400.
E, no outro caso: Gottfried Wilhelm LEIBNIZ, Essais de Theodicée sur la Bonté de Dieu, la Liberté de l’Homme et l’Origine du Mal (1710), III, 291, e Monadologie (1712-1714), §78 e 81; Die philosophischen Schriften, ed. Carl Immanuel Gerhardt, Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1965, vol. 6, respectivamente, pp. 289-290, 620, e 621. ↲
(30) Cf. MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 3; MEGA(2), vol. 11/1.1, p. 41. ↲
(31) Cf. MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 3; MEGA(2), vol. II/1.1, p. 42. ↲
(32) Atente-se na forte e persistente interlocução que com Hegel continua a ser mantida:
«O entendimento» (der Verstand) não é de criticar, propriamente, porque, ao abstrair, ele fixe e distinga (umas das outras) as determinações de uma coisa. Este traço mostra-se, aliás, indispensável a que um qualquer conteúdo disponha de «precisão» (Präzision). A crítica (fundamental, e irremovível) incide, sim, sobre o facto de as orientações que privilegiam em exlusivo o entendimento converterem o resultado a que ele aporta — «um tal abstracto limitado» (ein solches beschränktes Abstraktes) — em expressão acabada do real: em algo «que subsiste e é por si» (für sich bestehend und seiend).
Cf. HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), 80; TW, vol. 8, pp. 169-172. ↲
(33) «Die Production im Allgemeinen ist eine Abstraktion, aber eine verständige Abstraction, sofern sie wirklich das Gemeinsame hervorhebt, fixirt, und uns daher die Wiederholung erspart. Indeß dieß Allgemeine, oder das durch Vergleichung herausgesonderte Gemeinsame, ist selbst ein vielfach Gegliedertes, in verschiedne Bestimmungen auseinanderfahrendes.», MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 1; MEGA(2), vol. II/1.1, p. 23. ↲
(34) «Wenn ich mir aus den wirklichen Äpfeln, Birnen, Erdbeeren, Mandeln die allgemeine Vorstellung "Frucht" bilde, wenn ich weitergehe und mir einbilde, daß meine aus den wirklichen Früchten gewonnene abstrakte Vorstellung "die Frucht" ein außer mir existierendes Wesen, ja das wahre Wesen der Birne, des Apfels etc. sei, so erkläre ich — spekulativ ausgedrückt — "die Frucht" für die "Substanz" der Birne, des Apfels, der Mandel etc. Ich sage also, der Birne sei es unwesentlich, Birne, dem Apfel sei es unwesentlich, Apfel zu sein. Das Wesentliche an diesen Dingen sei nicht ihr wirkliches, sinnlich anschaubares Dasein, sondern das von mir aus ihnen abstrahierte und ihnen untergeschobene Wesen, das Wesen meiner Vorstellung, "die Frucht". Ich erkläre dann Apfel, Birne, Mandel etc. für bloße Existenzweisen, Modi "der Frucht". Mein endlicher, von den Sinnen unterstützter Verstand unterscheidet allerdings einen Apfel von einer Birne und eine Birne von einer Mandel, aber meine spekulative Vernunft erklärt diese sinnliche Verschiedenheit für unwesentlich und gleichgültig. Sie sieht in dem Apfel dasselbe wie in der Birne und in der Birne dasselbe wie in der Mandel, nämlich "die Frucht". Die besondern wirklichen Früchte gelten nur mehr als Scheinfrüchte, deren wahres Wesen "die Substanz", "die Frucht" ist.», ENGELS-MARX, Die heilige Familie (1845), V, 2; MEW, vol. 2, p. 60.
Em Hegel, com efeito, os contornos genéricos desta maneira de proceder são discerníveis, ainda que, em rigor, ele não pretenda fazer da «essência» um ente à parte (como nas metafísicas tradicionais acontece), mas atribuir-lhe o primado ontológico autêntico:
«A substância [die Substanz] é o Absoluto, o [efectivamente] real sendo em e para si: em si [an sich], como a identidade simples da possibilidade e da realidade [efectiva], [como] essência absoluta, contendo em si toda a realidade [efectiva] e [toda a] possibilidade; para si [für sich], [é] esta identidade como poder [Macht] absoluto, ou [como] negatividade que, pura e simplesmente, a si [mesma] se refere.» — «Die Substanz ist das Absolute, das an und für sich seiende Wirkliche, — an sich als die einfache Identität der Möglichkeit und Wirklichkeit, absolutes, alle Wirklichkeit und Möglichkeit in sich enthaltendes Wesen, — für sich diese Identität als absolute Macht oder schlechthin sich auf sich beziehende Negativität.», HEGEL, Wissenschaft der Logik (1816), II, Vom Begriff im allgemeinen; TW, vol. 6, p. 246.
A «resolução» (idealista) do problema sobressai, mais adiante, no manquejo das operações de salvamento que se intentam empreender:
«O pensar que abstrai [das abstrahierende Denken] não é, por conseguinte, de considerar como mero pôr-de-lado do material sensível — o qual, por esse facto, não sofreria qualquer dano na sua realidade [Realität] —, mas é, antes, o superar [das Aufheben] e a redução [die Reduktion] dele, enquanto mero fenómeno, ao essencial, que apenas no conceito [Begriff] se manifesta.» — «Das abstrahierende Denken ist daher nicht als bloßes Auf-die-Seite-Stellen des sinnlichen Stoffes zu betrachten, welcher dadurch in seiner Realität keinen Eintrag leide, sondern es ist vielmehr das Aufheben und die Reduktion desselben als bloßer Erscheinung auf das Wesentliche, welches nur im Begriff sich manifestiert.», HEGEL, Wissenschaft der Logik (1816), II, Vom Begriff im allgemeinen; TW, vol. 6, p. 259. ↲
(35) «Die Gegenstände sind das Besondere, was sie sind, durch ihre Bestimmung, ein sinnlicher Gegenstand z. B. durch seine Gestalt, Größe, Schwere, Farbe, durch den mehr oder weniger festen Zusammenhang seiner Teile, durch den Zweck, zu dem er gebraucht wird, usf. Läßt man nun die Bestimmungen von einem Gegenstand in der Vorstellung weg, so heißt man dies abstrahieren. Es bleibt ein weniger bestimmter Gegenstand oder ein abstraktes Objekt übrig. Nehme ich aber in der Vorstellung nur eine einzelne solche Bestimmung heraus, so ist auch dies eine abstrakte Vorstellung. Der Gegenstand, in der Vollständigkeit seiner Bestimmungen belassen, heißt ein konkreter Gegenstand.», HEGEL, Rechts-, Pflichten- und Religionslehre für die Unterklasse (1810), Erläuterungen zur Einleitung, 1; TW, vol. 4, pp. 207-208. ↲
(36) «Das Wahre ist das Ganze. Das Ganze aber ist nur das durch seine Entwicklung sich vollendende Wesen.», HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807), Vorrede; TW, vol. 3, p. 24.
Para um acompanhamento mais pormenorizado das implicações deste tema, pode ver-se o meu estudo: «A concepção hegeliana da verdade», Estudos sobre a ontologia de Hegel. Ser, verdade, contradição, Lisboa, Edições «Avante!», 2010, pp. 111-141. ↲
(37) «Die Welt nicht als ein Komplex von fertigen Dingen zu fassen ist, sondern als ein Komplex von Prozessen», ENGELS, Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie (1888), IV; MEW, vol. 21, p. 293. ↲
(38) Cf. LÉNINE, Um passo em frente, dois passos atrás. A crise no nosso Partido (1904), s; Obras Escolhidas em Três Tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, 1977, vol. 1, p. 367. ↲
(39) Cf. LÉNINE, Materialismo e Empiriocriticismo (1909), II, 4 e 5; ME, pp. 92-103. ↲
(40) Cf. LÉNINE, Conspecto do livro de Hegel «Ciência da Lógica» (1914), A lógica subjectiva ou a doutrina do conceito, III; OE6, vol. 6, p. 179. ↲
(41) De alguma maneira, é estribando-se em incompreensões desta índole que Sartre se sente investido da soteriológica missão de preencher o «vazio antropológico» que no interior do marxismo grassaria com umas vivenciadas aportações «existencialistas»:
«Nós censuramos ao marxismo contemporâneo [o facto de ele] repelir para o lado do acaso todas as determinações concretas da vida humana e de nada guardar [rien garder] da totalização histórica senão a sua ossatura abstracta de universalidade. O resultado é que ele perdeu inteiramente o sentido de aquilo que um homem é» — «nous reprochons au marxisme contemporain de rejeter du côté du hasard toutes les déterminations concrètes de la vie humaine et de ne rien garder de la totalisation historique si ce n’est son ossature abstraite d’universalité. Le résultat, c’est qu’il a entièrement perdu le sens de ce qu’est un homme», Jean-Paul SARTRE, «Questions de Méthode», II; Critique de la raison dialectique, Paris, Éditions Gallimard, 1960, vol. I, p. 58. ↲
(42) Saltando com desembaraço por cima desta exigência indescartável, os mal-entendidos nesta esfera levam outros adversários a denegrir o saber fundamentado, e fundamentável, mediante a sua expeditiva conversão em simples «mito» transferido para presumidas paragens de «cientificidade»:
«O Marxismo original permaneceu fundamentalmente no solo do pensamento filosófico. [...]. E Marx avançou no [sentido de] elaborar a Concepção Materialista da História como o recinto doutrinal de uma visão mítica em que o dualismo das forças em conflito do eu [self] alienado era apreendido como um dualismo de forças sociais, uma luta de classes na sociedade, uma guerra de trabalho e capital. Deste ponto de vista, poderia dizer-se que o Marxismo maduro é Marxismo original mistificado. O veículo clássico desta mistificação é O Capital.» — «Original Marxism remained fundamentally on the ground of philosophical thought. [...]. And Marx went on to elaborate the Materialist Conception of History as the doctrinal enclosure of a mythic vision in which the dualism of conflicting forces of the alienated self was apprehended as a dualism of social forces, a class struggle in society, a warfare of labour and capital. Fron this standpoint it might be said that mature Marxism is mystified original Marxism. The classic vehicle of this mystification is Capital.», Robert Charles TUCKER, Philosophy and Myth in Karl Marx (1961), XV; Cambridge, Cambridge University Press, 1972(2), p. 219. ↲
(43) «Alle Wissenschaft wäre überflüssig, wenn die Erscheinungsform und das Wesen der Dinge unmittelbar zusammenfielen», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band. Hamburg 1894, III, II, VII, 48, III; MEGA(2), vol. II/15, p. 792. ↲
(44) ARISTÓTELES, Metafísica, A, 1, 981 a 28-29.
«Além disso, consideramos que nenhuma das sensações seja sabedoria [aon>ía]; ainda que elas próprias sejam os principais conhecimentos acerca das coisas particulares [Tà Ka0’eKaaTa]; mas elas não nos dizem o por que [tò ôià t\] acerca de coisa nenhuma, como, por exemplo, por que é quente o fogo, mas apenas que [õti] é quente.» — «£Ti ôè TÔv aía0^aewv oi>ôe|iíav f|yoú|ie0a eivai ao^íav- KaÍToi KupiÓTaTaí y’eíaiv aiiTai tôv Ka0’ÊKaaTa yvóaeiç áÀÀ’oi> Àéyouai tò ôià t\ rcepi oúôevóç, oiov ôià t\ 0ep|iòv tò mCp, ãÀÀà |ióvov õti 0ep|ióv.», ARISTÓTELES, Metafísica, A, 1, 981 b 10-13. ↲
(45) «A natureza gosta de se esconder.» — «núaiç KpÚTCTea0ai niÀeí.», HERACLITO, Fragmento B 123; Die Fragmente der Vorsokratiker, ed. Hermann Diels e Walther Kranz, Berlin, Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 195 6(8), vol. I, p. 178. ↲
(46) «Que, no fenómeno, as coisas se expõem frequentemente às avessas é mais ou menos familiar [bekannt] em todas as ciências, excepto na Economia Política.» — «Daß in der Erscheinung die Dinge sich oft verkehrt darstellen, ist ziemlich in allen Wissenschaften bekannt, außer in der politischen Oekonomie.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, V, 4, a; MEGA(2), vol. II/5, p. 435. ↲
(47) «Das Wesen muß erscheinen. [...]. Das Wesen ist daher nicht hinter oder jenseits der Erscheinung, sondern dadurch, daß das Wesen es ist, welches existiert, ist die Existenz Erscheinung.», HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), 131; TW, vol. 8, pp. 261-262.
Engels, aliás, não deixará de assinalar que, mau grado a indispensável crítica do posicionamento ontológico de Hegel, «a doutrina da essência» (die Lehre vom Wesen) constitui «a parte principal» (der Hauptteil), porquanto incide sobre o processo (dialéctico) em que se opera «a dissolução das oposições abstractas na sua inconstância» (die Auflösung der abstrakten Gegensätze in ihre Haltlosigkeit). Cf. ENGELS, Brief an Conrad Schmidt, 1. November 1891; MEW, vol. 38, p. 203. ↲
(48) Cf. Ernst BLOCH, Geist der Utopie (1918), 6; Gesamtausgabe, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1977, vol. 16, p. 387. ↲
(49) Veja-se a Nota final B: As obscuridades de Hegel herdadas. ↲
(50) Veja-se a Nota final C: A malfadada dialéctica. ↲
(51) Cf. LENINE, Conspecto do livro de Hegel «Ciência da Lógica» (1914), A lógica subjectiva ou a doutrina do conceito, I; OE6, vol. 6, p. 164.
Para um fantasiado malabarismo na «ruminação» (rumination) hermenêutica deste passo: Louis ALTHUSSER, Lénine devant Hegel (1968); Lénine et la philosophie, suivi de Marx et Lénine devant Hegel, III, Paris, François Maspero, 1975(2), pp. 78-79.
(52) Cf. MARX, Brief an Engels, um den 16. Januar 1858; MEW, vol. 29, p. 260. ↲
(53) Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, I, 1; MEGA(2), vol. II/5, pp. 17 e seguintes. ↲
(54) Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1872, I, I, 1, D, 4; MEGA(2), vol. II/6, p. 103. ↲
(55) Estas peregrinas teses adoptam, às vezes, um guarda-roupa enfaixado por subtilezas garridas, para efeito de desencadear resplandecentes fascínios.
Por exemplo, quando intentam convencer os incautos (ou conferir robustecimento à convicção dos já «convencidos») de que o materialismo de Marx não passaria afinal de «algo de superado na teoria dialéctica da sociedade, e somente a partir dela algo de totalmente a entender» — «etwas in der dialektischen Theorie der Gesellschaft Aufgehobenes und erst von ihr aus ganz zu Verstehendes», Alfred SCHMIDT, Der Begriff der Natur in der Lehre von Marx (1962), I, A; Frankfurt am Main — Köln, Europäische Verlagsanstaltung, 1978(3), p. 25.
Escusado será dizer que se entende perfeitamente o estratagema empregue para comodamente sentar a materialidade do ser no regaço — «dialéctico» — da socialidade...
Não posso entrar em minudências, mas o elenco das variações é bastante mais rico.
Aponto apenas uma outra declinação. Bastante inclinada para um confusio-nismo contrastivo que, à época, dispunha de largo auditório, com uma claque academizada:
Como «ele não entende o significado real da "dialéctica do finito" (o idealizar-se, ou desvanecer-se, do mundo) [...], aquilo que Engels e todo o "materialismo dialéctico" depois dele apresentam como a forma mais elevada e evoluída de materialismo, com efeito, não é senão idealismo absoluto.» — «egli non intende il reale significato della "dialettica del finito" (l’idealizzarsi o vani-ficarsi del mondo) [...], ciò che Engels e tutto il "materialismo dialettico" dopo di lui presentano come la forma piu alta e evoluta di materialismo non è altro, in effetti, che idealismo assoluto.», Lucio COLLETTI, Il marxismo e Hegel (1969), II, 3; Roma — Bari, Giuseppe Laterza &Figli, 1976(5), vol. II, p. 211.
Para quem diga que os gostos não se discutem, talvez seja de retorquir que o mau gosto sempre se pode deplorar ...
Abordei outros aspectos desta problemática, designadamente, em dois livros de 1986, saídos na Editorial Caminho: Ontologias da «práxis» e idealismo, e Da representação à «práxis». Itinerários do idealismo contemporâneo. ↲
(56) Embora a palavra «feitiço» apareça grafada como «Fetisso», Marx retém, e refere, a sua origem no português. Esta informação, junto com outras, provém da leitura de uma obra de Charles De Brosses (Du Culte des dieux Fétiches, ou Parallele de l’ancienne Religion de l’Egypte avec la religion actuelle de Nigritie, 1760), que ele conhece na tradução alemã de Christian Pistorius (1785).
Dispomos dos excertos que realizou: cf. MARX, Bonner Hefte (1842), Exzerpte aus Charles De Brosses: Ueber den Dienst der Fetischengötter; MEGA(2), vol. IV/1, pp. 320-329. ↲
(57) Como curiosidade, um apontamento em amostra.
Hegel — com alta probabilidade, tendo também De Brosses por fonte, ainda que o não mencione — segue, na sua exposição do tema, uma linha semelhante.
O «feitiço» — desta vez, correctamente grafado — corresponde a uma «coisa» que é «feita», na qual se plasma um investimento de «vontade» (Wille) do seu «feitor», mas que, para ludíbrio próprio e de quem partilhe a mesma fé, se vê de pronto despojada da sua efectiva condição de fabricato, para adquirir uma aparente «autonomia». Cf. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Einleitung, Geographische Grundlage der Weltgeschichte, Die alte Welt, b, Afrika (TW, vol. 12, pp. 122-124), bem como Vorlesungen über die Philosophie der Religion, II, I, I, 2 (TW, vol. 16, pp. 294-296). ↲
(58) «Wie der Mensch in der Religion vom Machwerk seines eignen Kopfes, so wird er in der kapitalistischen Produktion vom Machwerk seiner eignen Hand beherrscht.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, VI, 1, c; MEGA(2), vol. II/5, p. 500. ↲
(59) «Das Kapital nicht eine Sache ist, sondern ein durch Sachen vermitteltes gesellschaftliches Verhältniß zwischen Personen», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, VI, 3; MEGA(2), vol. II/5, pp. 611-612.
O tema conhecera já desenvolvimentos anteriores:
«É apenas o hábito da vida diária que faz aparecer como trivial, como evidente, que uma relação social de produção», neste caso, o capital, «tome a forma de um objecto, de tal modo que a relação das pessoas no seu trabalho se exponha antes como uma relação em que coisas se comportam umas para com as outras e para com as pessoas.» — «Es ist nur die Gewohnheit des täglichen Lebens, die es als trivial, als selbstverständlich erscheinen läßt, daß ein gesellschaftliches Produktionsverhältniß die Form eines Gegenstandes annimmt, so daß das Verhältniß der Personen in ihrer Arbeit sich vielmehr als ein Verhältniß darstellt, worin Dinge sich zu einander und zu den Personen verhalten.», MARX, Zur Kritik der politischen Ökonomie (1859), I, 1, 1; MEGA(2), vol. II/2, p. 114.
«Também o capital é uma relação social de produção. É uma relação burguesa de produção, uma relação de produção da sociedade burguesa.» — «Auch das Kapital ist ein gesellschaftliches Produktionsverhältnis. Es ist ein bürgerliches Produktionsverhältnis, ein Produktionsverhältnis der bürgerlichen Gesellschaft.», MARX, Lohnarbeit und Kapital (1849); MEW, vol. 6, p. 408. ↲
(60) É neste sentido que Marx pode afirmar que «a circulação do capital é realizadora de valor [wertrealisierend], assim como o trabalho vivo [é] criador de valor [wertschaffend].» — «Die Circulation des Kapitals ist wertrealisirend, wie die lebendige Arbeit wertschaffend.», MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, II, III, Kreislauf des Kapitals; MEGA(2), vol. II/1.2, p. 441.
Ou, de acordo como uma formulação mais desenvolvida que ocorre no Livro terceiro de O Capital:
«A fórmula universal do capital é D[inheiro] — M[ercadoria] — D[inheiro]’; quer dizer: uma soma de valor [determinada] é lançada em circulação para arrancar dela [depois] uma soma de valor maior. O processo que engendra [erzeugen] esta forma de valor maior é a produção capitalista; o processo que a realiza [realisieren] é a circulação do capital.» — «Die allgemeine Formel des Kapitals ist G — W — G’; d. h. eine Werthsumme wird in Cirkulation geworfen, um eine größre Werthsumme aus ihr herauszuziehen. Der Proceß, der diese größre Werthsumme erzeugt, ist die kapitalistische Produktion; der Proceß, der sie realisirt, ist die Cirkulation des Kapitals.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band. Hamburg 1894, I, I, 2; MEGA(2), vol. II/15, p. 44. ↲
(61) Na máquinas, por exemplo, jaz decerto sepultado «trabalho morto» (tote Arbeit, verstorbene Arbeit), «trabalho passado» (vergangene Arbeit).
No entanto, «o trabalho vivo», uma prestação actual efectiva de trabalho, «tem que agarrar nessas coisas, que as ressuscitar dos mortos, que as transformar [verwandeln] de [valores de uso] apenas possíveis em valores de uso [efectivamente] reais e operantes.» — «Die lebendige Arbeit muß diese Dinge ergreifen, sie von den Todten erwecken, sie aus nur möglichen in wirkliche und wirkende Gebrauchswerthe verwandeln.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, III, 1; MEGA(2), vol. II/5, p. 134.
Nos termos de uma formulação anterior:
«O capital não consiste em trabalho amontoado [aufgehäufte Arbeit] servir de meio ao trabalho vivo para [uma] nova produção. Consiste em o trabalho vivo servir de meio ao trabalho amontoado para obter, e multiplicar, o seu valor de troca.» — «Das Kapital besteht nicht darin, daß aufgehäufte Arbeit der lebendigen Arbeit als Mittel zu neuer Produktion dient. Es besteht darin, daß die lebendige Arbeit der aufgehäuften Arbeit als Mittel dient, ihren Tauschwert zu erhalten und zu vermehren.», MARX, Lohnarbeit und Kapital (1849); MEW, vol. 6, p. 409. ↲
(62) Com efeito, «o valor da força de trabalho e a sua valorização no processo de trabalho» (der Werth der Arbeitskraft und ihre Verwerthung im Arbeitsprozeß) são «duas grandezas diversas» (zwei verschiedne Größen): cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, III, 1; MEGA(2), vol. II/5, p. 143.
Ou seja, e por aqui se desvanecem os enigmas:
A força de trabalho empregue é, na realidade, «de mais valor, do que aquele que ela própria tem» (von mehr Werth als sie selbst hat), quando medida tão-só pelo «salário» (Lohn) que «o trabalhador assalariado» (der Lohnarbeiter) recebe pelo dispêndio das suas energias: cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1872, I, III, 5; MEGA(2), vol. II/6, p. 206.
É em consequência disso que se pode, portanto, afirmar — contrariando, para escândalo de alguns, a «aparência» fenoménica das coisas (onde, como vimos, elas, não raro, aparecem de uma forma invertida) — que a «mais-valia» (Mehrwert) provém «de trabalho alheio não pago» (aus unbezahlter fremder Arbeit). Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1890, I, VII, 22, 1; MEGA(2), vol. II/10, p. 521. ↲
(63) Neste contexto, e nesta medida, o «lucro» consiste «no excedente da soma total de trabalho contida na mercadoria sobre a soma de trabalho paga nela [na mercadoria] contida» — «in dem Ueberschuß der in der Waare enthaltnen Gesammtsumme von Arbeit über die in ihr enthaltne bezahlte Summe Arbeit».
Acontecendo, por conseguinte, que «a taxa de lucro» (die Profitrate) se apresenta determinada por dois factores principais: «a taxa da mais-valia» (die Rate des Mehrwerths) e «a composição de valor do capital» (die Werthzusammensetzung des Kapitals).
Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band. Hamburg 1894, respectivamente: III, I, I, 2, e III, I, I, 3; MEGA(2), vol. II/ 15, pp. 45 e 70. ↲
(64) Indo ao nervo da questão:
Na «reprodução alargada» (erweiterte Reproduktion), «uma parte da mais-valia realizada» (ein Theil des realisirten Mehrwerths) é descarregada pelos capitalistas na circulação sob a forma de «capital produtivo adicional» (produktives zuschüssiges Kapital), ou seja, é reinvestida.
Em contrapartida, na «reprodução simples» (einfache Reproduktion), a «mais-valia» produzida e, entretanto, realizada é consumida, «de um modo improdutivo» (unproduktiv), enquanto «rendimento» (Revenue) dos capitalistas.
Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Zweiter Band. Hamburg 1885, respectivamente: II, II, 7, II, e II, II, 7, I; MEGA(2), vol. II/13, pp. 319 e 301. ↲
(65) É precisamente sobre este foco que incidem afirmações conhecidas, e recorrentes:
«De facto, a produção capitalista é a produção de mercadorias [die Waa-renproduktion] como forma universal [allgemeine Form] da produção, mas ela só o é, e nisso se torna sempre [cada vez] mais no seu desenvolvimento, porque o trabalho aparece aqui ele próprio como mercadoria, porque o operário [o trabalhador, der Arbeiter] vende o trabalho, quer dizer: a função da sua força de trabalho.» — «In der That ist die kapitalistische Produktion die Waarenproduktion als allgemeine Form der Produktion, aber sie ist es nur, und wird es stets mehr in ihrer Entwicklung, weil die Arbeit hier selbst als Waare erscheint, weil der Arbeiter die Arbeit, d. h. die Funktion seiner Arbeitskraft, verkauft.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Zweiter Band. Hamburg 1885, II, I, 4; MEGA(2), vol. II/13, p. 108. ↲
(66) «Die kapitalistische Produktion ist nicht nur Produktion von Waare, sie ist wesentlich Produktion von Mehrwerth. Der Arbeiter producirt nicht für sich, sondern für das Kapital. Es genügt daher nicht länger, daß er überhaupt producirt. Er muß Mehrwerth produciren. Nur der Arbeiter ist produktiv, der Mehrwerth für den Kapitalisten producirt oder zur Selbstverwerthung des Kapitals dient.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, V, 1; MEGA(2), vol. II/5, pp. 413-414. ↲
(67) «Der Kapitalist producirt die Waare nicht ihrer selbst wegen, nicht ihres Gebrauchswerths oder seiner persönlichen Konsumtion wegen. Das Produkt, um das es sich in der That für den Kapitalisten handelt, ist nicht das handgreifliche Produkt selbst, sondern der Werthüberschuß des Produkts über den Werth des in ihm konsummirten Kapitals.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band. Hamburg 1894, III, I, I, 2; MEGA(2), vol. II/15, p. 44. ↲
(68) «Produktive Arbeit im Sinn der kapitalistischen Produktion ist die Lohnarbeit, die im Austausch gegen den variablen Teil des Kapitals (den in Salair ausgelegten Teil des Kapitals) nicht nur diesen Teil des Kapitals reproduziert (oder den Wert ihres eignen Arbeitsvermögens), sondern außerdem Mehrwert für den Kapitalisten produziert. Nur dadurch wird Ware oder Geld in Kapital verwandelt, als Kapital produziert. Nur die Lohnarbeit ist produktiv, die Kapital produziert.», MARX, Theorien über den Mehrwert, I, 4, 1; MEW, vol. 26.1, p. 122. ↲
(69) «Alle Produktion möglichst in Waarenproduktion umwandeln», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Zweiter Band. Hamburg 1885, II,
I, 4; MEGA(2), vol. II/13, p. 103.
É, de resto, neste sentido que «a produção de mercadorias» (die Waarenproduktion) acaba (e começa) por se apresentar como «a forma universal da produção capitalista» (die allgemeine Form der kapitalistischen Produktion). Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Zweiter Band. Hamburg 1885,
II, III, 21, I, 1; MEGA(2), vol. II/13, p. 460.
(™) Cf., por exemplo, MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Zweiter Band. Hamburg 1885, II, III, 20, XII; MEGA(2), vol. II/13, p. 444. ↲
(71) Veja-se: Constantin PECQUEUR, Théorie nouvelle d’économie sociale et politique, ou études sur l ’organisation des sociétés, XLIV, 13; Paris, Capelle Libraire-Éditeur, 1842, p. 880. ↲
(72) Será conveniente não esquecer que o vocábulo latino persona traduz o termo grego mpóawmov, que originariamente significava, no seu território teatral helénico de surgimento: a máscara, ou o «invólucro» (indumentum), que os actores usavam para, melhor fazendo «ressoar» (personare) a voz, representarem determinados tipos de «personagem».
Vejam-se, por exemplo: quanto ao uso, ARISTÓTELES, Poética, 5, 1449 b 3-4; para a recepção no latim: Aulus GELLIUS, Noctes Atticae, V, VII.
Penso que estas últimas considerações — a um primeiro olhar, deslocadas
— habilitam, no entanto, a porventura surpreender outros traços de concreção num reparo que, de passagem, Marx não deixa de assinalar:
«O capitalista» (der Kapitalist) aparece, em termos económicos de fun-damentalidade, como uma «personificação»: de facto, ele é «apenas o capital personificado, [o capital] dotado de consciência própria e de vontade [própria]»
— «nur das personificirte, mit eignem Bewußtsein und Willen begabte Kapital ist», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band. Hamburg 1894, III, I, IV, 17; MEGA(2), vol. II/15, p. 284. ↲
(73) «Unter "Proletarier" ist ökonomisch nichts zu verstehen als der Lohnarbeiter, der "Kapital" producirt und verwerthet und aufs Pflaster geworfen wird, sobald er für die Verwerthungsbedürfnisse des "Monsieur Capital", wie Dr. Pecqueur diese Person nennt, überflüssig ist.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, VI, 1, c; MEGA(2), vol. II/5, p. 495. ↲
(74) «Das Kapital ist verstorbene Arbeit, die sich nur vampyrmäßig belebt durch Einsaugung lebendiger Arbeit und um so mehr lebt, je mehr sie davon einsaugt.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, III, 4; MEGA(2), vol. II/5, p. 179. ↲
(75) «Alle Arbeit ist einerseits Verausgabung menschlicher Arbeitskraft im physiologischen Sinn und in dieser Eigenschaft gleicher menschlicher oder abstrakt menschlicher Arbeit bildet sie den Waaren-Werth. Alle Arbeit ist andrerseits Verausgabung menschlicher Arbeitskraft in besondrer zweckbestimmter Form und in dieser Eigenschaft konkreter nützlicher Arbeit producirt sie Gebrauchswerte.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1872, I, I, I, 2; MEGA(2), vol. II/6, pp. 79-80. ↲
(76) «Aus dem Bisherigen folgt, daß in der Waare zwar nicht zwei verschiedene Sorten Arbeits stecken, wohl aber dieselbe Arbeit verschieden und selbst entgegengesetzt bestimmt ist, je nachdem sie auf den Gebrauchswerth der Waare als ihr Produkt oder auf den Waaren-Werth als ihren bloß gegenständlichen Ausdruck bezogen wird. Wie die Waare vor allem Gebrauchsgegenstand sein muß, um Werth zu sein, so muß die Arbeit vor allem nützliche Arbeit, zweckbestimmte produktive Thätigkeit sein, um als Verausgabung menschlicher Arbeitskraft und daher als menschliche Arbeit schlechthin zu zählen.», MARX, Das Kapital.
Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867,I, 1, 1; MEGA(2), vol. II/5, pp. 26-27. ↲
(77) Trata-se de Henry Mayers Hyndman, dirigente da Social Democratic Federation, que — sob o pseudónimo de John Broadhouse — publicara, em Outubro de 1885, no To-day de Londres, uma tradução inglesa de partes de O Capital, à margem de qualquer acompanhamento por parte dos responsáveis pelo legado literário de Marx. ↲
(78) «Labour, considered as a producer of use-value, is of a different character, has different qualifications from the same labour, when considered as a producer of value. The one is labour of a special kind, spinning, weaving, ploughing, etc.; the other is the general character of human productive activity, common to spinning, weaving, ploughing, etc., which comprises them all under the one common term, labour. The one is labour in the concrete, the other is labour in the abstract. The one is technical labour, the other is economical labour. In short — for the English language has terms for both — the one is work, as distinct from labour; the other is labour, as distinct from work.», ENGELS, How not to translate Marx (1885); MARX-ENGELS, Über Sprache, Stil und Übersetzung, ed. Heinz Ruschinski e Bruno Retzlaff-Kresse, Berlin, Dietz Verlag, 1974, pp. 488-489.
(79) «The English language has the advantage of possessing different words for the two aspects of labour here considered. The labour which creates Use-Value, and counts qualitatively, is Work, as distinguished from Labour; that which creates Value and counts quantitatively, is Labour, as distinguished from Work.», MARX, Capital. A Critical Analysis of Capitalist Production. London 1887, I, I, I, 2; MEGA(2), vol. II/9, pp. 39-40. ↲
(80) «Die Werthgröße der Waare drückt also ein nothwendiges, ihrem Bildungsprozeß immanentes Verhältniß zur gesellschaftlichen Arbeitszeit aus. Mit der Verwandlung der Werthgröße in Preis erscheint dieß nothwendige Verhältniß als Austauschverhältniß der Waare mit einer andern außer ihr existirenden Waare. Diese Form kann aber ebensowohl die Werthgröße der Waare als das zufällige Verhältniß ausdrücken, worin sie unter gegebnen Umständen veräußerlich ist. Die Möglichkeit quantitativer Incongruenz zwischen Preis und Werthgröße, oder der Abweichung des Preises von der Werthgröße, ist also in der Preisform selbst gegeben.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1867, I, I, I, 3, A; MEGA(2), vol. II/5, p. 64.
Quanto ao texto de 1872: MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1872, I, I, 3, 1; MEGA(2), vol. II/6, p. 128. ↲
(81) cf. ENGELS, Rezension des Ersten Bandes "Das Kapital" für die "Rheinische Zeitung" (1867); MEW, vol. 16, p. 213. ↲
(82) Cf. MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Hamburg 1872, Nachwort; MEGA(2), vol. II/6, p. 709. ↲
(83) Cf. LÉNINE, Conspecto do livro de Hegel «Ciência da Lógica» (1914), A lógica subjectiva ou a doutrina do conceito, I; OE6, vol. 6, p. 161. ↲
(84) Cf. Eugen DUHRING, Kritische Geschichte der Nationalökonomie und des Socialismus, VIII, 1, 1; Berlin, Verlag von Theobald Grieben, 1871, p. 490. ↲
(85) «Hegel est un philosophe aussi obscur dans le détail que dans l’ensemble. Marx, dans le détail, n’est pas fondamentalement difficile, bien que son langage soit abstrait et exige un certain entraînement intellectuel. Son obscurité tient à la méthode suivie, et à un certain nombre de questions qui sont à la fois très simples, parce qu’on les trouve dans tous les exposés élémentaires, et très difficiles, puisqu’on continue indéfiniment à les discuter.», Raymond ARON, Le marxisme de Marx (1976-1977), II, IX; ed. Jean-Claude Casanova e Christian Bachelier, Paris, Éditions de Fallois, 2002, p. 305. ↲
(86) No pensamento paretiano, é detectável uma vaga reminiscência de Hegel — com algum paramento escolástico —, sempre que se trata de investir contra o fantasma «Estado»:
«Quando se acena para o "Estado", o mais das vezes, entende-se uma entidade que não existe, e encontramo-nos reportados àqueles tempos beatos em que se discorria acerca de uma substância modificada pelos acidentes, e se acreditava que a brancura pudesse existir sem que existissem corpos brancos. O "Estado", portanto, seria algo de etéreo de que os governos são acidentes; entende-se que tudo aquilo que de bom acontece é obra da substância "Estado", tudo aquilo que de mal sucede é culpa do acidente governo. E, depois, demonstra-se facilmente que o Estado é ético e perfeito!» — «Quando si fa cenno allo "Stato", il più delle volte si intende una entità che non esiste, e ci troviamo riportati a quei beati tempi in cui si discorreva di una sostanza modificata dagli accidenti, e si credeva che potesse esistere la bianchezza senza che esistessero corpi bianchi. "Stato" dunque sarebbe qualche cosa di etereo di cui i governi sono gli accidenti; s’intende che tutto ciò che accade di bene è opera della sostanza "Stato", tutto ciò che segue di male è colpa dell’accidente governo. E dopo si dimostra agelvolmente che lo Stato è etico e per-fetto!», Vilfredo PARETO, Stato etico (1894); Opere Politiche, ed. Giovanni Busino (doravante: OP), Torino, Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1984(2), vol. I, p. 755.
É ainda nesta mesma linha de raciocínio que abundam as referências a «o Deus Estado dos socialistas da cátedra» — «il Dio Stato dei socialisti della catedra», PARETO, Socialismo e Libertà (1891), II, 1; OP, vol. I, p. 400. ↲
(87) «Tout cela est incompréhensible et ressemble aux divagations d’un rêve. Or, il faut noter que l’Hegelianisme a dominé la pensée des économistes "éthiques" et d’une partie des socialistes, jusqu’à Marx inclusivement.», PARETO, Les Systèmes Socialistes, VI; Paris, V. Giard &E. Brière, 1902, vol. I, p. 326.
No idiolecto de Pareto, as adjectivações entoadas na clave do «ético», distribuídas por diferentes segmentos de agraciados, têm uma calda unificadora e um alcance bem definidos:
«O ideal caro aos éticos» (l’idéal cher aux éthiques) consiste em «favorecer sistematicamente os fracos, os viciosos, os preguiçosos, os mal adaptados, os "pequenos e os humildes" (favoriser systématiquement les faibles, les vicieux, les paresseux, les mal adaptés, les "petits et les humbles"), numa espécie de filantropismo exercido «à custa dos fortes, dos homens enérgicos, que constituem a elite» (aux dépens des forts, des hommes énergiques, qui constituent l’élite). Cf. PARETO, Les Systèmes Socialistes (1902), Introduction; ed. cit., vol. I, pp. 11-12. ↲
(88) «Die Verkehrung der Dialektik bei Hegel beruht darauf, daß sie "Selbstentwicklung des Gedankens" sein soll und daher die Dialektik der Tatsachen nur ihr Abglanz, während die Dialektik in unserm Kopf doch nur die Widerspiegelung der sich in der natürlichen und menschengeschichtlichen Welt vollziehenden, dialektischen Formen gehorchenden, tatsächlichen Entwicklung ist. Vergleichen Sie einmal die Entwicklung bei Marx von der Ware zum Kapital mit der bei Hegel vom Sein zum Wesen, und Sie haben eine ganz gute Parallele, hier die konkrete Entwicklung, wie sie sich aus den Tatsachen ergibt, dort die abstrakte Konstruktion, worin höchst geniale Gedanken und stellenweise sehr richtige Umschläge, wie der der Qualität in Quantität und umgekehrt, zu einer
scheinbaren Selbstentwicklung eines Begriffs aus einem ändern verarbeitet werden, deren man auch ein Dutzend andrer hätte fabrizieren können.», ENGELS, Brief an Conrad Schmidt, 1. November 1891; MEW, vol. 38, p. 204. ↲
(89) Cf. Eduard BERNSTEIN, Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie (1899, 1921(2), 2, a; ed. Horst Heimann, Berlin
— Bonn, Verlag J. H. W. Dietz Nachf., 1984(8), respectivamente, pp. 46 e 48. ↲
(90) «Was Marx und Engels Großes geleistet haben, haben sie nicht möge der Hegelschen Dialektik, sondern trotz ihrer geleistet.», BERNSTEIN, Die
Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie, 2, b; ed. cit., p. 62. ↲
(91) Cf. Christian CORNELISSEN, «Ueber den Einfluss der Hegelschen Dialektik auf die sozialistische Doktrin von Karl Marx», I; Sozialistische Monatshefte, Berlin, (1898), n. 12, respectivamente, pp. 549 e 548. ↲
(92) Em linha com os partidários das doutrinas subjectivistas do valor (em particular, do seu mestre Carl Menger), Böhm-Bawerk considera que a «psicologia económica» é o factor determinante nas explicações, designadamente, dos fenómenos da concorrência no mercado:
«Na concorrência dos compradores e vendedores, todos estes impulsos [Antriebe] e razões determinantes [Bestimmgründe]» — que relevam da ordem do psicológico — «se encontram agora uns com os outros, e quem, para a explicação de uma formação de preços apelar para a concorrência, no fundo, apela, sob um substantivo colectivo, para o jogo [das Spiel] e [para] a operação [die Wirkung] de todos os motivos e impulsos psíquicos que dirigiam [leitend waren] ambas as partes no mercado.» — «In der Konkurrenz der Käufer und Verkäufer treffen nun alle diese Antriebe und Bestimmgründe auf einander, und wer sich zur Erklärung einer Preisbildung auf die Konkurrenz beruft, beruft sich
im Grunde unter einem Sammelnamen auf das Spiel und die Wirkung aller der psychischen Motive und Antriebe, die bei beiden Marktparteien leitend waren.», Eugen von BÖHM-BAWERK, Zum Abschluß des Marxschen Systems (1896), IV, 3; Aspekte der Marxschen Theorie, ed. Friedrich Eberle, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973, vol. 1, p. 103. ↲
(93) «Sein System hält keine solide, geschlossene Fühlung mit den Tatsachen. Weder durch gesunde Empirie noch durch eine solide wirtschaftspsychologische Analyse hat Marx aus den Tatsachen die Fundamente seines Systems gewonnen, sondern er gründet es auf keinen festeren Boden als den einer steifleinenen Dialektik.», BÖHM-BAWERK, Zum Abschluß des Marxschen Systems, IV, 3; ed. cit., vol. 1, p. 112. ↲
(94) «Karl Marx ist als Schriftsteller ein beneidenswert glücklicher Mann gewesen. Niemand wird behaupten wollen, daß sein Werk zu den leicht lesbaren und leich verständlichen Büchern gehört. Ein erheblich geringerer Ballast von schwieriger Dialektik und von ermündenden, mit mathematischem Rüstzeug arbeitenden Deduktionen wäre für die meisten anderen Bücher zum unüberwindlichen Hindernis geworden, sich den Weg in das große Publikum zu bahnen. Marx ist trotzdem ein Apostel für weiteste Kreise und gerade für solche Kreise geworden, deren Sache sonst die Lektüre schwieriger Bücher nicht ist.», BÖHM-BAWERK, Zum Abschluß des Marxschen Systems, Vorbemerkung; ed. cit., vol. 1, p. 25. ↲
(95) «Peu de traces dans le Capital de la fameuse méthode dialectique, celle qui consiste à se situer alternativement sur le creux et la crête des vagues», Gérard MAAREK, Introduction au "Capital" de Karl Marx, Avant-Propos; Paris, Calmann-Lévy, 1975, p. 19. ↲
(96) Cf. MARX, Misère de la Philosophie. Réponse à la Philosophie de la Misère de M. Proudhon (1847), II, 1, 1; Oeuvres, ed. Maximilien Rubel, Paris, Éditions Gallimard/Bibliothèque de la Pléiade, 1965, vol. I, p. 77-78.↲