Exposição de motivos
I
A Comissão de Inquérito ao colapso do BES e do GES, proposta pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português representou um importante trabalho no quadro da Assembleia da República, bem como os seus resultados devem agora representar e constituir um património de análise, reflexão e proposta que vá muito além da responsabilização de um ou outro elemento da administração do Grupo.
O PCP deixou clara a sua posição quanto ao vasto conjunto de responsabilidades que importa apurar e concretizar, nomeadamente as que foram passíveis de identificação pelos trabalhos da Comissão mas que não foram vertidas no relatório final, aprovado com o voto contra do Grupo Parlamentar do PCP. Contudo, o voto contra do PCP significa especialmente que é necessário ir mais longe do que tem sido prática nas comissões de inquérito que temos testemunhado. A forma como a Comissão de Inquérito funcionou, mas também o conjunto de factos que pôde apurar, justificam uma intervenção política que vá muito além do mero anúncio político, da mera promessa estafada: “não voltará a acontecer”.
Com efeito, para que tal não seja promessa vã, é absolutamente necessário concretizar alterações políticas. A simples alteração legislativa sem a correspondente alteração da substância política e da perspetiva do papel do Estado no garante da estabilidade do sistema financeiro resultará, na prática, apenas na introdução de mais camadas de normativo sobre um problema intrínseco ao funcionamento do capitalismo e aos seus sistemas financeiros. Tais camadas, funcionarão como máscaras e camuflagens para problemas profundos que não se prendem com o bom ou mau carácter deste ou daquele banqueiro, tampouco com a competência e coragem deste ou daquele supervisor ou regulador.
II
Com a constituição de grupos monopolistas o capital financeiro estende o seu domínio e hegemonia sobre os sectores estratégicos, em particular do sector financeiro e impede o desenvolvimento das condições de vida da população, impede o controlo político da economia e o próprio desenvolvimento económico e social, gerando apenas uma esmagadora máquina de concentração de riqueza e de exploração do trabalho alheio.
O impedimento da existência de grupos monopolistas é um comando constitucional e torna-se um instrumento importante para a concretização de uma política que coloque a banca, o dinheiro e o crédito ao serviço do povo e do país, ao invés de como até aqui servir exclusivamente interesses dos seus grandes acionistas.
No caso do BES e do GES, apesar de serem grupos originados na mesma família e nos mesmos interesses, o BES predou o GES porque o GES se endividou de tal forma que deixou de poder pagar juros e capital. Ainda assim, o BES continuou a emprestar através de formas diversas, incluindo com recurso à colocação da dívida em empresas de fora do grupo (PT), de dentro do grupo (Tranquilidade), e clientes de retalho e de private banking.
Todas as soluções que não se fixem no controlo público da moeda e do crédito, com a consequente abolição do controlo do capital monopolista sobre as instituições financeiras cuja dimensão afeta o sistema financeiro português, são necessariamente insuficientes para fazer frente ao processo de acumulação.
A segregação entre componentes financeiras e não financeiras, numa perspetiva transitória, pode ser um passo para garantir um processo de apuramento sobre o que representa cada sector ou empresa, com vista ao controlo público, à colocação dessas estruturas ao serviço dos interesses nacionais, contribuindo para as melhores soluções de organização do setor público empresarial, assim identificando falsos ativos, os tóxicos, ou ativos não determinantes.
Assim, o PCP afirma a urgência de ser assegurado o controlo público da banca, aliás, consolidando a própria proposta que tem vindo a apresentar de que podemos destacar o Projeto de Resolução n.º 1120/XII/4ª que indicava já o controlo público da banca como instrumento fundamental para uma política alternativa.
A simples introdução de limitações ao funcionamento ou constituição dos chamados “conglomerados mistos”, sem a sua subordinação a uma estratégia de colocação da banca ao serviço do interesse nacional redunda na repetição da fórmula esgotada da regulação e supervisão “intrusivas e vigorosas” que até hoje, pesem as alterações legislativas sucessivas, não mostrou um único resultado no que toca a uma ação a anterior. A estabilidade do sistema financeiro é, contudo, demasiado importante para que os Estados apenas disponham de meios para agir após a ameaça concretizada. Pelo contrário, as populações não podem dar-se ao luxo de suportar os custos da má-gestão, da concentração de riqueza dos bancos privados sempre que essas instituições veem ameaçada a sua solvabilidade ou liquidez. Acrescentar regulação à regulação, alimentar a ilusão de que é possível disciplinar os grandes grupos económicos, é atrasar as soluções de que o país precisa, particularmente numa altura, como a que vivemos, em que os recursos económicos e materiais devem ser integralmente utilizados para resolver os profundos problemas estruturais da economia nacional, para libertar Portugal da dependência económica e política e para assegurar a dignificação da vida e do trabalho dos portugueses.
III
A possibilidade de existência de uma banca privada implica assumir uma de duas posições políticas: reforçar, como alguns reclamam, os mecanismos de supervisão e fiscalização; ou aliviar os custos do Estado com a regulação, permitir um mercado financeiro mais liberto da mão dos Estados. A primeira opção, parecendo resolver o problema, gera na verdade uma “banca-sombra” cada vez mais significativa, na medida em que, para assegurar o cumprimento dos objetivos de acumulação, os grupos económicos e financeiros, a banca privada, recorrem ainda mais aos designados paraísos fiscais e outros expedientes, criando uma banca paralela a toda a supervisão. A segunda opção encaminha-nos para a velha e comprovadamente irreal tese de que a “mão invisível” do “mercado” tudo cuida e resolve, como aliás, bem testemunham os portugueses. Não só a mão do “mercado” não é invisível, como é cada vez mais evidente que essa “mão” apenas cuida dos interesses dos próprios grupos económicos que determinam a sua ação.
Dessas duas alternativas apresentadas num contexto de banca privada, agravado pelo contexto gerado pela liberalização financeira que resulta da Estratégia 2020 e da consolidação do projeto da União Europeia, resulta claro que não existe solução enquanto o estatuto patrimonial das instituições não for questionado.
Por ser determinante para uma política que fixe no horizonte o crescimento económico e o bem-estar social, por ser fundamental para a soberania popular e nacional, por ser elemento estruturante da própria democracia económica, a atividade bancária deve estar sujeita a rigoroso controlo público, incluindo no que toca ao seu estatuto patrimonial, à sua propriedade. Num contexto político e social como o atual, em que a propriedade pública de uma tão importante alavanca económica pode determinar a capacidade de financiamento da economia, a capacidade de promover o crescimento económico e a construção de uma alternativa à constante subordinação e submissão a instituições estrangeiras ou às forças dominantes no interior da União Europeia, não se justifica que o Estado Português continue a suportar os custos associados ao privilégio de um punhado de grupos de grandes acionistas poder deter bancos, através dos quais sorve recursos produzidos pelo trabalho dos portugueses.
Assim, nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, a Assembleia da República resolve recomendar ao Governo:
1. O desenvolvimento, a partir do Governo, do Banco de Portugal e restantes supervisores financeiros, de um conjunto de medidas de efetiva supervisão, fiscalização e inspeção permanente e minuciosa dos bancos e outras instituições financeiras;
2. O desenvolvimento do conjunto de medidas políticas, técnicas e jurídicas que, a partir do diagnóstico efetuado, abram caminho a um processo de controlo público da banca comercial;
3. A assunção pelo Estado de responsabilidades de administração direta, além da Caixa Geral de Depósitos, de bancos ou outras instituições financeiras onde tenham sido alocados fundos públicos;
4. A intervenção de emergência, justificada pela defesa do interesse público, na gestão de bancos privados em situação de grave insuficiência de capitais, para manutenção do funcionamento, apuramento de responsabilidades, limitação de danos e salvaguarda da economia nacional;
5. A intervenção pública na segregação de componentes financeiras e não financeiras em grupos mistos, sempre que tal segregação se justifique, particularmente analisando em pormenor a exposição de instituições financeiras;
6. O expurgo dos ativos tóxicos e duvidosos, saneamento e consolidação dos balanços dos bancos intervencionados;
7. A recapitalização e cumprimento paulatino de rácios de capitais seguros nos bancos públicos, sem prejudicar a concessão de crédito de acordo com as prioridades da política económica e social;
8. A profunda reorganização, a partir do controlo público, dos objetivos, funcionamento e estrutura do sistema bancário, em benefício dos setores produtivos, dos pequenos e médios empresários, das famílias, das populações urbanas e rurais, da economia nacional e do País;
9. A inclusão, como objetivos da reorganização do sistema bancário público reforçado, da cooperação da banca com o projeto de desenvolvimento do País; do estímulo ao crescimento económico, sem obsessões dogmáticas com a inflação; da captação de poupanças para o investimento produtivo; da interdição ou penalização da especulação financeira; do crédito de incentivo ao investimento inovador, diversificador e modernizador do tecido produtivo; do crédito em condições favoráveis ao setor cooperativo e às micro, pequenas e médias empresas; do alívio das comissões e taxas cobradas aos clientes e utentes; do respeito pelos direitos, as remunerações e as condições de trabalho dos bancários.
Assembleia da República, em 22 de maio de 2015