Declaração do Encontro Nacional da Saúde do PCP

Pelo Direito à Saúde

O Serviço Nacional de Saúde é um produto da vontade revolucionária do povo português. As suas extraordinárias realizações na melhoria das condições de saúde da população portuguesa são fruto da capacidade técnica, do brio e da consciência democrática dos seus profissionais e da sua identificação com os interesses do povo. A resistência à criação e desenvolvimento do SNS e uma pertinaz acção pela privatização dos serviços de saúde caracteriza a política da direita, ao serviço do grande capital, na área da saúde.

A ofensiva privatizadora atingiu nos últimos anos uma dimensão nunca vista afectando gravemente o direito à saúde. A ofensiva ideológica, política e social contra os trabalhadores da saúde é uma componente fundamental da estratégia da direita e do grande capital, que atingiu êxitos assinaláveis traduzidos na criação e aprofundamento de linhas de divisão destes entre si e com os restantes trabalhadores e o povo, com degradação da sua imagem pública e consequente perda de influência ideológica e política e de importantes direitos sociais e laborais. O reforço da influência e da organização do PCP entre os trabalhadores da saúde é uma condição essencial indispensável à defesa dos seus direitos, das suas condições de realização profissional, à defesa e desenvolvimento do SNS e à concretização do direito à saúde para todos.

I – A situação do Serviço Nacional de Saúde

Na sociedade contemporânea a saúde é entendida como o reflexo de múltiplos factores de ordem política, económica, ambiental, social, cultural e biológica que permitem ao ser humano desenvolver-se e realizar-se na plenitude das suas capacidades. A procura de saúde, seja da sua promoção ou do combate e prevenção da doença, embora continue a assumir-se através de manifestações particulares inseridas nas tradições culturais e religiosas dos indivíduos, famílias e comunidades, assenta actualmente, sobretudo, na acção, fundada em critérios baseados na ciência e na razão, de serviços de saúde socialmente organizados.

A procura de serviços de saúde generalizou-se nas áreas da saúde da mulher, em particular no que se refere à saúde materna e reprodutiva; da saúde da criança e do adolescente; da saúde do trabalhador; da saúde do idoso e da saúde mental. Os cuidados continuados e paliativos e as doenças crónicas e degenerativas tornaram-se motivo de vasta procura de cuidados. Os condicionantes ambientais de saúde e as actividades que visam manter ou elevar os níveis de desempenho pessoal e profissional, prevenir a doença e promover a saúde são cada vez mais motivo de atenção. A situação de doença aguda ou de agudização de doença crónica continua no entanto a ser o principal motivo de procura de cuidados de saúde.

Correspondendo às novas necessidades do desenvolvimento sócio-económico a saúde passou a ser reivindicada como um Direito cabendo ao Estado assegurá-lo através da oferta de serviços de saúde. A forma como o Estado se organiza para assegurar a oferta dos serviços de saúde corresponde à correlação de forças de classe e aos recursos da sociedade. Na sequência da Revolução de Abril a Constituição da República consagrou o Direito à Saúde cabendo ao Estado criar um Serviço Nacional de Saúde para assegurar o acesso geral, universal e gratuito de todos aos cuidados de saúde.

O recuo e perda de influência social e política das forças populares que levaram a cabo a Revolução e a crescente influência e domínio do poder político pelo grande capital que havia sido derrotado a 25 de Abril, levou a que o acesso à saúde passasse a ser “tendencialmente gratuito” e mercantilizado num contexto em que a procura de cuidados é vista como uma brutal oportunidade de negócio. As forças políticas que dominaram e dominam o aparelho do Estado (PS, PSD e CDS) convergiram numa concepção mais ou menos minimalista do papel do Estado em saúde. Apesar da ofensiva de quem sido alvo e dos espartilhos criados à sua acção e desenvolvimento, o SNS é possuidor de um extraordinário património de realizações contribuindo decisivamente para colocar em Portugal a mortalidade infantil num dos mais baixos valores a nível mundial, para o aumento significativo da esperança de vida e para o alto nível de desempenho reconhecido pela OMS ao nosso sistema de saúde.

O SNS foi alvo de uma permanente sub-orçamentação e desinvestimento; não foi feita a formação de recursos humanos; aceitaram-se as condições das multinacionais do medicamento; a modernização tecnológica foi caótica; sem estruturas de saúde pública e epidemiologia capazes o planeamento foi nulo; a gestão foi clientelar e incompetente. Os portugueses pagam em despesas de saúde, directamente do seu bolso, quase 30% do total da despesa em saúde ; os profissionais de saúde no SNS são alvo de forte pressão no sentido da precarização dos seus vínculos contratuais e da diminuição do valor relativo das suas remunerações; faltam Hospitais, Centros e Extensões de Saúde; praticamente não há consultas domiciliárias no âmbito do SNS; os serviços de urgência funcionam mal; o atendimento é frequentemente desumanizado; as taxas moderadoras e o aumento dos preços dos medicamentos e as dificuldades de acesso a consultas e intervenção terapêuticas afectam gravemente as condições de saúde e a esperança de vida em particular dos indivíduos dos grupos sociais mais desfavorecidos; 1 milhão de utentes não tem médico de família e 234 mil aguardam uma cirurgia.

A concretizar-se nas actuais condições, a liquidação dos sub sistemas que têm assegurado a cobertura de cuidados de saúde a 25% da população, traduzir-se-á num agravamento da situação existente. A desresponsabilização do Estado em matéria de saúde e a privatização da prestação de cuidados atinge actualmente proporções em que é legítimo afirmar-se que está em causa o Direito à Saúde para largos sectores da sociedade portuguesa.

II – O processo de privatização do SNS

 

A única característica permanente na gestão do SNS foi o processo da sua privatização. O principal argumento utilizado é o de que o Estado não tem instrumentos nem vocação para assegurar a eficiência dos serviços de saúde. Este argumento baseia-se na prática de gestão clientelar e incompetente seguida pelos mesmos que agora atribuem ao Estado falta de instrumentos e de vocação. Durante anos e anos não foi criado qualquer instrumento de planeamento de cuidados a nível central, regional ou local e as unidades de prestação de cuidados ficaram entregues a si próprias, sem critérios para gerir, sem recolha e tratamento de informação, sem articulações para respeitar, metas para cumprir ou contas para prestar.

Com a revisão Constitucional de 1989 a Lei de Bases da Saúde 1990 e o Estatuto do SNS de 1993 e a introdução dos contractos individuais de trabalho na Administração Pública, a privatização do SNS adquiriu suporte legal. A Lei de Bases afirma que “a gestão das unidades de saúde deve obedecer, na medida do possível, a regras de gestão empresarial” e que “pode ser autorizada a entrega de hospitais e centros de saúde a outras entidades”; o Estatuto do SNS afirma que “o Ministério da Saúde pode autorizar a entrega da gestão de instituições e serviços de saúde integrados no SNS, ou parte funcionalmente autónoma, a entidades públicas ou privadas”.

A política e método de financiamento público do SNS foram conduzidos de forma a penalizar a produtividade e a qualidade em favor do desperdício e desgoverno, ou com o critério economicista a sobrepor-se à boa prática e à deontologia. A ofensiva contra os direitos e as condições de trabalho dos profissionais, de que o contrato individual é o principal instrumento, constitui uma linha estratégica fundamental da ofensiva de liquidação do SNS. A generalização das formas de assalariamento, com a progressiva liquidação da prática individual liberal privada de cuidados de saúde, e a concentração do negócio da saúde nas mãos dos grandes grupos financeiros em desfavor de interesses privados de menor dimensão é outra característica do desenvolvimento do capitalismo na saúde.

Nos últimos 12 anos assistimos à entrega da gestão de hospitais e de partes funcionalmente autónomas a entidades privadas na forma de Contratos de Gestão ou da constituição de Sociedades Anónimas que se traduziram em perdas de eficiência global do sistema e aumento nas restrições no acesso à prestação de cuidados. As designadas Parcerias Público/Privadas para a construção de hospitais, o modelo Entidade Pública Empresarial (EPE) e o modelo de gestão proposto para os Centros de Saúde são outras formas da mesma estratégia privatizadora. Ao mesmo tempo que ganha posições e cria dificuldades ao desenvolvimento do serviço público de saúde, o capital alarga e aprofunda a sua implantação na área da prestação de cuidados de saúde com a constituição de novas unidades viradas para nichos do mercado de saúde mais lucrativos, a generalização dos sistemas de seguros e a redistribuição do bolo do negócio do medicamento e dos meios complementares de diagnóstico.

III -Um Serviço Nacional de Saúde de Qualidade e para Todos

 

A prestação de cuidados de saúde deve ser planeada e programada tendo por objectivo a satisfação das reais necessidades da população baseadas em critérios clínicos, epidemiológicos, de boa prática e respeito pelas normas deontológicas numa abordagem interdisciplinar e pluriprofissional. O financiamento dos serviços deve estar de acordo com a sua missão e obedecer a critérios objectivos definidos por uma Lei de Financiamento. Cabe ao Estado dotar-se das medidas de política Fiscal, Orçamental e de Gestão que assegurem ao SNS os recursos necessários ao cumprimento dos seus objectivos.

A formação e o recrutamento de recursos humanos em saúde devem ser, nas condições actuais, consideradas uma emergência nacional. Dotar todos os utentes de um médico de Medicina Geral e Familiar e assegurar a sua oportuna e eficiente assistência por um profissional de saúde competente em caso de doença aguda ou agudização de doença crónica deverá ser, actualmente, a primeira prioridade em saúde. Os serviços de saúde do SNS devem planear e desenvolver a sua acção em estreita articulação com a comunidade que servem e entre si.

Aos profissionais de saúde devem ser asseguradas as condições de trabalho, de formação, de vínculo contratual, de carreira e remuneração que assegurem a sua máxima disponibilidade e qualificação e a estabilidade do serviço de saúde onde se encontram, no quadro do respeito pelas normas deontológicas que presidem à sua intervenção.

A gestão dos serviços do SNS deve ser pública, os gestores dos serviços de saúde devem ser seleccionados por concurso, as suas condições de trabalho e remuneração devem ser compatíveis com a responsabilidade assumida e podem ser exonerados pela tutela sempre que não se verifique o cumprimento dos critérios colocados a concurso. Os processos administrativos característicos da gestão pública devem ser adaptados às necessidades de funcionamento dos serviços de saúde tendo por objectivos a qualidade, a celeridade e a eficiência com base em normas claras, exequíveis e verificáveis.

A Lei de Bases da Saúde e o Estatuto do SNS devem ser revistos. Os processos de contratação de pessoal devem ser agilizados para corresponder às necessidades da população a servir e o contracto individual deve ser numa primeira fase limitado por critérios que restrinjam a sua adopção e posteriormente eliminado. As taxas moderadoras devem ser abolidas.

A política do medicamento deve ser compatível com a importância estratégica e de soberania de que se reveste, assentar em rigorosos critérios científicos e corresponder imperativamente pelo custo e disponibilidade à satisfação das reais necessidades dos doentes.

As actuais estruturas do SNS continuam oferecer as condições para, no quadro de uma política claramente orientada para a sua defesa e desenvolvimento como serviço de gestão pública, cumprirem a missão que lhe é constitucionalmente atribuída. A degradação da capacidade de resposta pode exigir no momento actual que, no quadro de uma rigorosa separação entre o que é público e o que é privado, sejam, de forma localizada e calendarizada, adoptadas medidas de contratualização com entidades privadas em situações onde a urgência e o interesse público o justifiquem. A avaliação do desempenho dos serviços de saúde deve obedecer a critérios de qualidade e eficiência global no quadro da missão que lhe for atribuída.

Os profissionais de saúde e os utentes devem ter intervenção no planeamento e no acompanhamento e avaliação do desempenho dos serviços de saúde. A unidade e a luta dos profissionais de saúde, dos trabalhadores e do povo são decisivas para o êxito da resistência à ofensiva privatizadora e para a necessária viragem política que assegure as condições para o desenvolvimento do SNS.

A acção do Partido na denúncia, esclarecimento e proposta é condição decisiva da unidade dos trabalhadores e do povo e do êxito da sua luta por um Serviço Nacional de Saúde para Todos, que concretize o Direito à Saúde.

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