Exposição de motivos
A utilização de autocaravanas em Portugal tem vindo a sujeitar-se a um quadro legal marcado por contradições e incoerências. O autocaravanismo representa uma atividade que é itinerante por natureza e que se caracteriza pela descoberta, a fruição e a divulgação dos valores ambientais, culturais e turísticos do nosso País. O seu enquadramento jurídico deve ser claro, justo e coerente – e deve assegurar uma utilização adequada às condições concretas do local e da época em que se realiza.
O uso de autocaravanas é frequentemente realizado para a prática de turismo por cidadãos nacionais e estrangeiros, e tal prática deve ser protegida, com a garantia de locais próprios e com características adequadas para o estacionamento e possibilidade de aparcamento, onde tal se possa realizar em respeito pelo meio ambiente e pela segurança dos cidadãos, tal como acontece noutros países.
Ao contrário do quadro que se foi sedimentando, com normas desajustadas e irracionais, a solução que se impõe como necessidade incontornável é de simplificar os conceitos e as regras em vigor para esta atividade. Ao longo dos anos, sucessivos diplomas legais foram consagrando conceitos como “permanência ou “pernoita”, diferenciando situações em função da presença ou não de utilizadores no interior da autocaravana (!) e, por sua vez, dessa presença consoante as horas do dia (!). O caso mais recente, e com mais impacto nesta realidade, foi a última alteração ao Código da Estrada.
Foi, com efeito, publicado no dia 9 de dezembro de 2020 o Decreto-Lei n.º 102-B/2020, que procede à alteração de diversos diplomas, incluindo o Código da Estrada. Entre as diversas alterações e aditamentos de artigos a este Código, encontra-se o aditamento do artigo 50.º-A com a epígrafe “Proibição de pernoita e aparcamento de autocaravanas”.
Este artigo introduziu no Código da Estrada os conceitos de “autocaravana ou similar”, “pernoita” e de “aparcamento”, definidos nas alíneas do número 2 do artigo 50.º-A, que não existiam até à publicação do Decreto-Lei n.º 102-B/2020 e que apenas são encontrados neste artigo. É de registar, entretanto, que o Decreto-Lei em questão não aponta qualquer justificação para a inscrição deste artigo no Código da Estrada.
A anterior versão do Código da Estrada já previa um conjunto de normas aplicáveis a todos os tipos de veículos quanto às possibilidades e locais de estacionamento, independentes da consideração de permanência de pessoas no seu interior durante a imobilização do mesmo, abrindo-se agora esta exceção única para as autocaravanas.
O aditamento do artigo 50.º-A ao Código da Estrada visa uma discriminação em matéria de estacionamento das autocaravanas em relação a todas as outras tipologias de veículos. Esse normativo, aplicado à letra, determina por exemplo que um condutor está impedido de realizar uma pausa na viagem, para repousar no período noturno dentro do veículo, se se tratar de uma autocaravana – ao passo que o mesmo repouso já é permitido se o veículo não for uma autocaravana. A ideia de discriminação negativa é inevitável quando se verifica não existirem outras normas legais que proíbam a pernoita no interior de veículos estacionados.
Com efeito, é o próprio conceito de “pernoita” que deve ser erradicado. Esta alteração ao Código da Estrada ignorou a dimensão da autocaravana enquanto meio de transporte e considerou apenas estes veículos como meio de alojamento que pode supostamente ser afeto a “atividades de campismo”. Diferenciando a prática de “estacionamento” ou “pernoita” em função da presença de pessoas a bordo, em função das horas do dia, ignorando até as opções em cada caso das autoridades locais quanto à utilização e gestão do espaço público, estas normas vieram trazer injustiças e desajustamentos evidentes.
O aparcamento é uma prática regulada, e quanto a esse conceito não se verificaram controvérsias dignas de nota. A utilização de autocaravanas com o uso de um espaço superior ao perímetro do veículo, por exemplo com a colocação de mesas e cadeiras no exterior, a abertura de janelas, uso de toldos e afins, está já devidamente prevista e regulamentada para que seja efetuada apenas nos locais autorizados.
Já o estacionamento – neste caso, o estacionamento de autocaravanas (ou mesmo a sua circulação pura e simples) – é também uma situação que se integra na esfera de competências das autoridades locais, sejam os municípios, sejam as entidades responsáveis pela gestão de áreas protegidas. Os instrumentos regulamentares disponíveis já hoje são reconhecidamente considerados como ferramentas de gestão e organização desse espaço público, quer quanto à possibilidade da utilização de autocaravanas em cada local, quer quanto aos horários e circunstâncias dessa utilização. A questão central é a adequação dessas regras concretas à realidade concreta a que se destinam. Isso implica que a solução passe por uma decisão das autoridades competentes, ao invés de uma espécie de proibição geral absurda.
Em vez de recorrer a conceitos (no mínimo) problemáticos como “permanência” ou “pernoita”, o que é necessário é simplificar, clarificar e consolidar o quadro normativo.
Os problemas associados à prática de campismo e de campismo, utilizando autocaravanas em locais não previstos para o efeito, não constituem matéria nova – e têm merecido por parte das organizações do movimento associativo nacional o seu reconhecimento e combate através de práticas pedagógicas de sensibilização para os danos ambientais e para as questões de segurança resultantes de tal prática.
O PCP compreende a necessidade de adoção de medidas que previnam e combatam as situações e comportamentos abusivos relacionados com o aparcamento e utilização de autocaravanas ou veículos similares em locais onde essa prática não é permitida, mas a forma como o Governo entendeu legislar nesta matéria é precipitada, desajustada e discriminatória. Quando o problema é a falta de fiscalização e o incumprimento da Lei, a solução não é certamente alterar a Lei de forma injusta. A Lei tem de ser justa e adequada, e deve ser aplicada consoante os regulamentos locais definidos pelas autoridades competentes.
No quadro do debate público gerado em torno desta matéria, na sequência da referida alteração ao Código da Estrada, foram apresentados diversos contributos e sugestões por parte de estruturas associativas com intervenção nas questões do autocaravanismo, no sentido de adequar e corrigir o quadro normativo.
Valorizando esses contributos e essa participação, o PCP manifesta total abertura para a reflexão e o trabalho conjunto nesta discussão, avançando desde já com uma proposta legislativa concreta – que preconiza a possibilidade de opção pelas autoridades locais quanto às soluções concretas a aplicar (por exemplo, limitação a 72 horas, diferenciação de tipologias de veículos nos termos da Lei, diferenciação de situações por horários ou meses do ano, etc., etc., etc.). Considerando que tais soluções concretas devem ser definidas em função das realidades concretas pelas autoridades competentes (desde logo os municípios), o PCP defende que a legislação mantenha esse enquadramento, ao invés de impor para todo o País regras mais específicas – que podem ser perfeitamente acertadas em determinados territórios, mas desajustadas noutros.
Com a presente iniciativa legislativa, o PCP propõe:
- A alteração ao Código da Estrada, no sentido de:
- Retirar o absurdo conceito de “pernoita”;
- Clarificar que o estacionamento não depende da presença ou não de ocupantes no veículo;
- A alteração ao regime de gestão e ordenamento da orla costeira, eliminando o conceito de “permanência” e da sua definição em função das horas do dia, deixando a regulamentação do estacionamento (incluindo locais e horários) às autoridades competentes.
Assim, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição da República Portuguesa e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei altera o regime legal do estacionamento e aparcamento de autocaravanas, eliminando os conceitos de “pernoita” e de “permanência” da legislação relevante.
Artigo 2.º
Alteração ao Código da Estrada
Os artigos 48.º e 50.º-A do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, na sua redação atual, passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 48.º
(…)
- (…).
- Considera-se estacionamento a imobilização de um veículo, com ou sem ocupantes, que não constitua paragem e que não seja motivada por circunstâncias próprias da circulação.
- (…).
- (…).
- (…).
- (…)
Artigo 50.º-A
Proibição de aparcamento de autocaravanas
- Sem prejuízo do disposto nos artigos 49.º e 50.º, é proibido o aparcamento de autocaravanas ou similares fora dos locais expressamente autorizados para o efeito.
- Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se:
- (…)
- (…)
- (Eliminado)
- Para os efeitos previstos nos números anteriores não é permitida a utilização e disposição de materiais no exterior do veículo e a utilização de outros acessórios do veículo que ocupem espaço superior ao das dimensões do veículo.
- (anterior n.º 3)»
Artigo 3.º
Alteração ao decreto-lei n.º 159/2012, de 24 de julho
O artigo 10.º do decreto-lei n.º 159/2012, de 24 de julho, na sua redação atual, que «regula a elaboração e a implementação dos planos de ordenamento da orla costeira e estabelece o regime sancionatório aplicável às infrações praticadas na orla costeira, no que respeita ao acesso, circulação e permanência indevidos em zonas interditas e respetiva sinalização», passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 10.º
(…)
- (…):
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…):
- (…);
- (…);
- (…);
- (…).
- (…).
- (…):
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…).
- (…).
- (…).
- (…):
- (…);
- Condicionamento ou interdição do estacionamento de autocaravanas ou similares nos parques e zonas de estacionamento;
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…).»
Artigo 4.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.