Queridos camaradas Carlos Costa, Jaime Serra e Joaquim Gomes, estamos hoje aqui a comemorar o 50º aniversário de um dos mais relevantes episódios da história da resistência antifascista: a fuga de Peniche, ocorrida em 3 de Janeiro de 1960.
Fazemo-lo com a consciência de que relembrar essa data e esse acontecimento é um imperativo para todos os que, nos dias de hoje, são continuadores da luta, dos ideais e dos objectivos essenciais dos protagonistas dessa fuga memorável.
Fazemo-lo igualmente com a clara noção de que relembrar a resistência antifascista enquanto momento maior da história da luta do nosso Partido e do nosso povo é uma necessidade cada vez mais imperiosa.
E tanto mais assim é quanto assistimos, hoje, a uma poderosa operação de branqueamento do fascismo, através da qual os historiadores do sistema negam a existência do regime fascista em Portugal – e essa negação, desenvolvida das mais diversas formas e servindo os mais diversos objectivos é amplamente difundida pela comunicação social dominante e ensinada nas escolas, como se de uma verdade incontestável se tratasse.
Negando a existência do fascismo, esses branqueadores negam, simultaneamente, a corajosa resistência ao fascismo levada a cabo, durante quase meio século, por milhares e milhares de homens, mulheres e jovens, conscientes das consequências desse acto de resistência, sabendo que sofreriam na pele a violência e a brutalidade fascistas: as perseguições; a PIDE; as torturas; os tribunais fascistas; as condenações arbitrárias a longas penas de prisão: Tarrafal, Angra do Heroísmo, Aljube, Caxias, Prisão da PIDE no Porto, Peniche.
Ora, hoje estamos aqui assinalando uma data e um acontecimento que constituíram uma importante vitória da resistência antifascista, num local cuja história é bem a demonstração da falsidade espalhada por esses branqueadores do fascismo – por isso, um local e uma data que são os mais apropriados para daqui saudarmos, não apenas os heróicos protagonistas da memorável fuga de 3 de Janeiro de 1960, mas todos esses resistentes: todos os que passaram por todas as prisões fascistas; todos os que não hesitaram em arriscar as suas vidas pela liberdade e pela democracia; todos os que, com a sua firme resistência, lançaram à terra muitas das sementes que viriam a florir na liberdade conquistada no dia 25 de Abril de 1974.
O Forte de Peniche – sem dúvida um dos mais sinistros cárceres do fascismo – foi um espelho do regime fascista que durante quase meio século explorou, oprimiu e reprimiu Portugal e os portugueses.
Por aqui passou a imensa maioria dos presos condenados a longas penas de prisão – que eram, também na sua imensa maioria, militantes comunistas.
E referir este facto não significa que estejamos a reivindicar louros e condecorações para os militantes comunistas e para o seu Partido: fazemo-lo tão somente para sublinhar que nesse tempo difícil da opressão e da repressão fascistas, nesse tempo em que lutar pela liberdade e pela democracia tinha como consequência inevitável a prisão, a tortura, muitas vezes a morte, os militantes do PCP souberam assumir dignamente a sua condição de comunistas, integrando sempre, durante 48 anos, a primeira fila da luta e da resistência, isto é: souberam sempre ocupar o lugar que era o deles – da mesma forma que, após o Dia da Liberdade, deram o seu contributo determinante para os grandes avanços revolucionários e para a construção da democracia de Abril e que, nos últimos 33 anos, têm estado na vanguarda da luta contra a política da contra-revolução, por uma ruptura com a política de direita e pela implementação de uma política de esquerda ao serviço dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País.
Por tudo isso, é necessário lembrar, hoje, aqui, que neste Forte de Peniche, nesses anos terríveis do fascismo, milhares de militantes comunistas e outros democratas sofreram as consequências de um regime prisional desumano e brutal.
Aqui, esses camaradas resistiram, prosseguindo a luta nas difíceis condições impostas, sabendo que em tais condições só uma elevada resistência moral e uma profunda entrega à luta revolucionária, com o pulsar das suas vidas ao compasso da vida e da luta do seu Partido e do seu povo, lhes permitiria manter a sua dignidade.
Aqui, iludindo a severa vigilância dos carcereiros, eles comunicavam entre si, organizavam-se partidariamente, elegiam democraticamente os organismos responsáveis da organização prisional, organizavam a luta contra a prepotência dos carcereiros e a violência da reclusão.
Aqui mantinham o contacto com o Partido no exterior e aqui estudavam, enriquecendo-se cultural e politicamente – e muitos foram os que, aqui, aprenderam a escrever e a ler.
Aqui organizavam as suas «comunas», onde centralizavam todos os géneros enviados pelas famílias e pelos amigos – que, depois, eram distribuídos solidariamente por todos os presos.
Aqui desenvolviam entre si relações de sã camaradagem, fraternidade e lealdade.
Aqui, nas terríveis condições de uma prisão fascista, preparavam-se, como homens e como revolucionários, para as lutas futuras.
Aqui – e sempre fazendo do cárcere fascista um espaço de luta e de preparação para a luta – organizavam as fugas que lhes permitiriam reocupar os seus postos nas fileiras da luta que o seu Partido desenvolvia contra o fascismo, pela liberdade, pela justiça social, pela paz, pelo socialismo, pelo comunismo.
Daqui fugiram, conquistando a liberdade. Sempre para regressar ao posto de combate na organização partidária clandestina. Sempre para dar mais força ao Partido. Sempre para dar mais força à luta.
Daqui de Peniche, tinham fugido, em 3 de Novembro de 1950, os camaradas Jaime Serra e Francisco Miguel e quatro anos depois, em 17 de Dezembro de 1954, o camarada António Dias Lourenço.
A fuga de Peniche de 3 de Janeiro de 1960 – para além de ter sido uma das mais espectaculares evasões de toda a história do fascismo – assumiu, pelas características de que se revestiu e pelas consequências que viria a ter na vida do Partido e na vida política nacional, uma importância e um significado marcantes.
Ela foi, em primeiro lugar, uma grande vitória do Partido – uma vitória conseguida pela superior organização prisional partidária em estreita articulação com a organização do Partido no exterior – que recuperou para a luta um elevado número de destacados quadros e dirigentes comunistas: Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes, Jaime Serra, Carlos Costa, Francisco Miguel, Pedro Soares, Rogério de Carvalho, Guilherme Carvalho, José Carlos e Francisco Martins Rodrigues.
Mas foi muito mais do que isso. Foi como que abrir uma fenda na muralha do regime fascista.
No «Militante» de Maio de 1961 é publicado o documento da Comissão Política aprovado em Maio de 1960 que relata os principais factores de tal êxito. O primeiro foi a cuidadosa e demorada preparação e organização que considera que só a solução conjunta e todas as dificuldades incluindo as parcelares tornava viável a tentativa. O segundo factor foi a coordenação da actividade no interior e no exterior. O terceiro factor foi a concentração de preocupações, recursos e quadros medindo os riscos sérios que era necessário correr. O quarto foi a preparação no interior, na base da centralização da responsabilidade num organismo restrito harmonizado com a prática do trabalho colectivo e de discussão democrática. O quinto factor foi a coragem, a serenidade e a disciplina, tanto por parte dos camaradas do interior como do exterior. A forma como dominaram o guarda no interior sem o molestar, e o não envolvimento nas responsabilidades da fuga de outros presos que nela não participaram, são exemplos do grau de preparação. O sexto factor do êxito foram os sentimentos antifascistas do povo português por via ou da colaboração ou do silêncio solidário de muitos.
Nesse documento não só se dá conta das condições para o êxito mas, de forma autocrítica, também das deficiências e faltas que ocorreram procurando extrair lições e ensinamentos.
Na sequência da fuga, e em consequência dela, ocorreu uma sucessão de acontecimentos que viriam a revelar-se determinantes no reforço do PCP e, consequentemente, na dinamização da luta que tinha como objectivo primeiro o derrubamento do fascismo.
A primeira grande consequência da fuga foi visível no notável reforço do Partido que dela resultou – reforço orgânico, ideológico e interventivo, ou seja, reforço construído na complementaridade destas três vertentes, em que a organização e a ideologia constituem os alimentos essenciais para a correcção e a justeza da acção, da dinâmica e do conteúdo da intervenção do Partido junto da classe operária e das massas trabalhadoras.
Decisivo, nesse sentido, viria a ser o grande debate ideológico que, logo a seguir à fuga, se desenvolveu em todo o Partido e que culminou na reunião do Comité Central de Março de 1961 – que elegeu para Secretário-Geral do Partido o camarada Álvaro Cunhal – e na qual se procedeu a uma profunda análise ao trabalho de direcção do CC nos anos anteriores e se submeteu a uma severa crítica o desvio de direita que se verificara na actuação do Partido no período de 1956/1959.
A nova dinâmica e o novo conteúdo da acção do Partido reflectir-se-iam num conjunto de situações como o início do funcionamento da Rádio Portugal Livre, em Março de 1962, uma nova arma da luta antifascista que permitia fazer chegar mais longe e a um maior número de portugueses as opiniões e as orientações do PCP e das restantes forças democráticas – ao mesmo tempo que, à palavra de ordem do Partido, se desenvolvia e ganhava nova dimensão a luta contra a guerra colonial, e tinham lugar as grandes lutas de estudantes de Coimbra, Lisboa e Porto, em cuja preparação, direcção e desenvolvimento os estudantes comunistas – lado a lado com estudantes de outras opções políticas e ideológicas – desempenharam um papel decisivo e determinante.
O 1º de Maio de 1962 foi outra das consequências visíveis da fuga e, portanto, da correcção do desvio de direita e do reforço concreto do Partido: sob a direcção do PCP, centenas de milhares de trabalhadores, de norte a sul do País, fizeram do Dia do Trabalhador a mais poderosa jornada de luta, até então, do movimento operário português – no decorrer da qual, mais de 100 mil trabalhadores ocuparam as ruas de Lisboa durante longas horas, enfrentando a brutalidade e a violência das forças repressivas; e na sequência da qual mais de 150 mil assalariados rurais do Sul, na continuidade de uma luta de décadas, conquistaram as oito horas de trabalho.
Sobre esse 1º de Maio e sobre essa conquista histórica, escreveu o camarada Álvaro Cunhal esta síntese admirável: «A conquista das 8 horas de trabalho pelo proletariado rural é uma vitória histórica. E porque as lutas que a ela conduziram se desenvolveram em volta da grande jornada política do 1º de Maio, o dia 1 de Maio de 1962 será sempre lembrado como um marco fundamental na história da luta do proletariado português pela sua libertação do jugo do capital. Foi uma grande conquista de carácter económico e uma vitória política. O Partido Comunista, que dirigiu desde o início a luta, pode orgulhar-se desta vitória histórica dos assalariados rurais como uma vitória sua».
E é importante registar que desde então, significativamente, o Dia do Trabalhador passou a ser o dia nacional da resistência antifascista, ocupando assim o lugar até aí ocupado pelo 5 de Outubro, dia da revolução republicana burguesa.
Foi ainda na sequência da fuga de Peniche e do intenso e amplo debate ideológico levado a cabo no colectivo partidário que o PCP construiu o seu VI Congresso, que traçou orientações visando o desenvolvimento da luta popular e o reforço da unidade da classe operária, das massas trabalhadoras e de todas as forças antifascistas – orientações que estiveram na origem da vaga de lutas subsequentes, que abalaram os últimos anos do fascismo e prepararam o seu derrubamento; esse histórico VI Congresso no qual foi discutido e aprovado o Programa para a Revolução Democrática e Nacional, que definia o caminho para o derrubamento do fascismo e os objectivos da revolução portuguesa; esse histórico VI Congresso Rumo à Vitória que chegaria poucos anos depois.
É tudo isso que aqui comemoramos, hoje, relembrando a audaciosa fuga protagonizada por esse conjunto de camaradas. Fuga que abalou a imagem de um regime aparentemente inamovível nos seus métodos repressivos e securitários.
Uma fuga que, pela forma como foi concretizada e pelas consequências que teve, nos confirma, nesse tempo longínquo, como nos dias de hoje, a importância decisiva da luta, sejam quais forem as circunstâncias, as dificuldades e os obstáculos existentes – e que a luta não apenas vale a pena como é indispensável; e que, como várias vezes temos sublinhado, se é verdade que quem luta, nem sempre ganha, mais verdade é que quem não luta perde sempre.
E que nos confirma, igualmente, que nesse tempo longínquo, como nos dias de hoje, o reforço orgânico, ideológico e interventivo do Partido é o caminho certo para a afirmação do nosso PCP no cumprimento do seu papel histórico enquanto Partido da classe operária e de todos os trabalhadores.
E que nos confirma, igualmente, a justeza e a correcção da luta que hoje travamos, num tempo diferente, num mundo em mudança e com novas realidades mas onde não se alteraram as causas e objectivos da liberdade e da libertação do ser humano do jugo da injustiça e da exploração, do porvir do socialismo!