Vinte anos depois... - Ilda Figueiredo

Ao longo dos anos, temos dado particular atenção às políticas
comunitárias e à sua aplicação em Portugal, intervindo sempre na defesa
do interesse nacional e na promoção de políticas de coesão económica e
social, de progresso e de paz.

Por diversas vezes insistimos na tão necessária profunda reflexão sobre
as vantagens e inconvenientes para Portugal da adesão às Comunidades
Europeias, tendo em conta quer as políticas comunitárias de
aprofundamento da integração quer a forma como os sucessivos governos
foram negociando os dossiers.

Ora, no momento em que se completam vinte anos dessa adesão, é possível
afirmar que houve muita promessa que não foi cumprida. Muitas ilusões
que já ficaram pelo caminho.

Sabemos que estes vinte anos podem sempre ser apreciados de diferentes
modos. Há quem olhe apenas para o balanço das comparticipações
financeiras, em que é verdade que Portugal recebeu mais do que pagou
directamente, o que contribuiu para a construção de auto-estradas,
pontes e estádios de futebol.

Mas há outros balanços. Por exemplo, o balanço da realidade produtiva e
da balança de transacções correntes, onde se reflecte a aplicação das
políticas do mercado interno e da união económica e monetária. E, aí, é
inquestionável que temos menos indústria, menos pesca, menos
agricultores e uma muito maior dependência de importações de produtos
alimentares, maquinarias, materiais pesados e outros, levando-nos,
assim, cerca de um terço dos apoios comunitários que recebemos e
contribuindo para a estagnação/ /recessão económica, o agravamento do
desemprego e das desigualdades sociais e regionais.

Há também razões para esta situação. Começaram logo com o Tratado de
Adesão, onde não se defenderam as especificidades da nossa economia,
não se acautelaram os enormes atrasos que Portugal tinha herdado do
longo período fascista, designadamente na educação e formação
profissional, nem se teve em conta a nova realidade democrática que as
transformações revolucionárias do 25 de Abril de 1974 tinham produzido
na estrutura económica e nas conquistas sociais e laborais. Pelo
contrário. As elites portuguesas do bloco central de interesses, que
procuravam recuperar privilégios perdidos com a revolução portuguesa,
viram na adesão a possibilidade de travar ganhos populares e impedir a
concretização da democracia participativa que a nossa Constituição da
República consagra.

Ao longo dos anos, foram-se desperdiçando fundos comunitários por falta
de uma verdadeira estratégia de desenvolvimento que envolvesse todos os
sectores não monopolistas da economia. Foram-se trocando derrogações,
períodos de não aplicação de regras comunitárias por envelopes
financeiros favoráveis apenas para alguns grupos económico-financeiros
como na indústria, na Política Agrícola Comum ou na Política Comum de
Pescas.

Sucessivos governos aceitaram, passivamente, o desmantelamento de
pautas externas em sectores industriais sensíveis da têxtil, cerâmica e
calçado ou a redução de quotas de produção, como nas pescas ou na
produção de leite. Foram também fomentando a destruição da frota
pesqueira ou o desligamento das ajudas à produção agrícola, abrindo
caminho à progressiva destruição destes sectores.

Com as liberalizações, impulsionadas pela chamada Estratégia de Lisboa
e pelas negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio, a
concorrência atingiu níveis elevados e incomportáveis para a maioria
dos nossos sectores produtivos.

Assim, neste 20.º aniversário da adesão à União Europeia, Portugal vive
uma das maiores crises económico-sociais da nossa história democrática,
para o que muito contribuiu a forma desastrosa e subserviente como os
sucessivos governos negociaram e aplicaram as políticas comunitárias e
como, a seu pretexto, puseram em causa direitos sociais e laborais.

Agora, 20 anos após a adesão, muita gente reconhece que a integração
europeia não está a servir os interesses do nosso povo e do nosso país.

Esta situação é particularmente crítica desde o euro e a aplicação do
Pacto de Estabilidade, a que se juntaram os efeitos convergentes das
liberalizações previstas na Estratégia de Lisboa.

Estamos, há mais de quatro anos, a divergir da média comunitária e
projecções da União Europeia, do Banco de Portugal e do próprio
Governo, deixam antever que a situação vai continuar até 2007/2008.
Isto significa que níveis cada vez mais profundos de integração
europeia têm tido repercussões cada vez mais negativas na nossa
economia.

De facto, hoje, parece claro que não foi Portugal que entrou na CEE,
mas sim a CEE e os seus potentados económico-financeiros que entraram
em Portugal, apropriando-se das nossas riquezas e utilizando a
mão-de-obra barata.

Em vez do bem-estar do povo e de uma economia para o interesse
nacional, temos uma economia cada vez mais subalterna e acessória das
economias dos países desenvolvidos da União Europeia.

Assinalamos 20 anos de adesão de Portugal às Comunidades Europeias num
momento também particularmente crítico da União Europeia, ano e meio
depois do maior alargamento de sempre e meio ano após a recusa do
projecto da dita constituição europeia pelos povos da França e da
Holanda que, assim, demonstraram a sua oposição ao aprofundamento de
uma União Europeia neoliberal, militarista e federalista, cada vez
menos solidária, com 20 milhões de desempregados e mais de 70 milhões
de pessoas a viver em situação de pobreza, com crescentes desigualdades
sociais e regionais.

Mas nem isso serviu de lição, como se pôde constatar no último Conselho
Europeu sob a Presidência Britânica, quando aprovaram um quadro
financeiro para os próximos sete anos que representa uma redução de 16%
relativamente à Agenda 2000, apesar de, agora, termos uma União
Europeia a 25 e estarmos em vésperas de um novo alargamento para 27
Estados-membros.

O que não deixa de ser um alerta para novas crises, sobretudo quando se
sabe que isto acontece quando os países mais ricos como a Alemanha,
Suécia, Áustria e Holanda conseguiram reduções significativas das suas
contribuições líquidas, o que, obviamente, terá encargos adicionais
para os restantes países, que irão, proporcionalmente, pagar mais. Este
duplo ganho – de países que são já os maiores beneficiários do
alargamento pelo crescimento do seu comércio – como apontam diversos
estudos, que sempre consideraram Portugal como o país mais prejudicado,
demonstra que solidariedade e coesão económica e social são expressões
cada vez mais vazias de conteúdo.

Os países mais poderosos conseguiram impor a sua vontade, anunciada na
célebre «carta dos seis», que queria reduzir o orçamento comunitário a
um por cento do RNB comunitário. É que o valor final das negociações –
1,045% do RNB – refere-se a autorizações de pagamentos. Em pagamentos
efectivos mal deve chegar a 1% do RNB, mesmo sabendo-se que, a partir
de 2007, teremos 27 Estados-membros e que há outros países candidatos à
adesão.

Mas além dos baixos valores globais previstos, que não permitem sonhar
com verdadeiras políticas comunitárias orientadas para o
desenvolvimento e aproximação dos níveis de vida nos 25 países da União
Europeia, importa também ter em conta a sua repartição.

Ora, o novo quadro financeiro pretende responder aos objectivos
inscritos na dita “constituição europeia”, apesar desta ter sido
rejeitada pelos povos da França e da Holanda. Fá-lo ao dar particular
importância à competitividade e ao espaço de liberdade, justiça e
segurança, incluindo a luta contra o terrorismo, segurança interna,
cooperação policial, controlo das fronteiras e da imigração, que são as
rubricas que mais aumentam relativamente ao orçamento de 2006.

Isto significa que tenderão a canalizar vultuosos meios financeiros
para as prioridades dos países economicamente mais desenvolvidos e dos
seus grupos económico-financeiros, servindo, simultaneamente, a
militarização da União Europeia, a chamada segurança interna e o
controlo da imigração, as políticas de concorrência e os objectivos
centrais da dita constituição europeia.

Deste modo, pretendem assegurar o financiamento de infra-estruturas
promotoras de processos de liberalização e concentração capitalista ao
nível da União Europeia, as iniciativas dos grandes grupos
económico/financeiros e dos ditos «centros de excelência» existentes
nos países economicamente mais desenvolvidos, subordinando as políticas
comunitárias, nomeadamente os fundos estruturais, à sacrossanta
«competitividade». Tudo isto sempre à custa das necessidades sociais e
ecológicas, de coesão e de ajuda ao desenvolvimento, acentuando
desigualdades sociais e disparidades regionais.

É certo que ainda é possível alterar este quadro nas negociações que
vão decorrer com o Parlamento Europeu. Fica o desafio, embora saibamos
que a tendência será para prevalecer o tradicional bloco central de
interesses que tem sustentado a integração europeia.

Pela nossa parte, insistimos numa profunda reformulação destas
perspectivas financeiras para que seja possível a coesão económica e
social, o combate ao desemprego, às desigualdades, à exclusão social.

Insistimos na necessidade de Portugal manter, no mínimo, os níveis de
financiamento actuais, embora apoiando algumas decisões positivas que
há muito defendíamos, como o aumento do co-financiamento comunitário, o
alargamento do período de execução dos projectos, a inclusão do IVA na
possibilidade de financiamento.

De igual forma, continuaremos a opor-nos a que, através de uma profunda
campanha de propaganda, tentem ressuscitar o projecto da dita
constituição europeia, ou tentem levar à prática alguns dos seus
objectivos centrais, através da aprovação de directivas como a
famigerada Bolkestein sobre a criação do mercado interno dos serviços,
visando a privatização de serviços públicos, ou ponham em causa
direitos dos trabalhadores com as novas propostas sobre a organização
do tempo de trabalho.

Não precisamos de nenhuma constituição europeia nem destas propostas de directivas.

Consideramos que é necessária, é possível e é urgente uma alternativa
que assegure o desenvolvimento económico e social de Portugal,
respeitando a Constituição da República Portuguesa, no quadro de uma
União Europeia verdadeiramente solidária, que aposte no progresso
social, na cooperação de estados soberanos e iguais em direitos, na
promoção da diversidade cultural e da paz.