"Venham mais trinta!..." - António Abreu na "Capital"

Era um sábado. Há trinta anos exactamente. Saíra da nossa casa
clandestina de Valongo no dia anterior. Dormira em casa de um camarada
e, no dia seguinte, tivera uma reunião com um organismo de professores
que se destacaria, dias mais tarde, na arrancada para um sindicato de
professores no Norte. Entre cada trajecto procedera aos “cortes”
necessários e no início da reunião começáramos, é claro, pelo “minuto
conspirativo”- cada um reconstituía o trajecto feito até ali, com as
anotações que lhe tinham suscitado interesse. O ambiente era de uma
tensão cheia de expectativas. Que tinham pernas para andar. Apesar das
prisões, ainda estava na memória a grande manifestação contra a
carestia de vida e presentes as lutas mais recentes em algumas
empresas, acções da oposição democrática e dos movimentos estudantil e
cooperativo.

Ao fim do dia regressaria de autocarro até à
paragem da entrada da vila, seguiria por um caminho, à esquerda, e iria
procurar, num buraco do muro que o definia, um pequeno pedaço de vidro
verde. A minha companheira de então, a Fátima, que nesse dia ficara em
casa, transmitia-me assim que o caminho estava livre, que não houvera
novidade. Se o não encontrasse, voltaria atrás, procuraria onde ficar,
de maneira a poder retomar contactos com segurança.

Era uma casa
alugada há pouco, que começáramos a mobilar, com preocupações de que o
que se visse de fora não revelasse a modéstia de uma casa do Partido. A
velha cama, encontrada desmontada numa marcenaria de Campanhã, reluzia
agora, à força do “bioxene” (vieu chêne), coberta por uma colcha
branca, de maneira a poder, estrategicamente, enxergar-se de uma
janela, através de uns cortinados sem luxos mas bonitos . Era cenário
porque à noite o colchão ia para o chão... Como cenário era uma carcaça
de fogão com forno. A cozinha abria para a rua e, de facto,
cozinhávamos num fogão eléctrico de duas placas colocado numa mesa por
detrás da porta...

As compras eram feitas em diversas lojas
para que não pudessem avaliar o nosso nível de vida. Como raramente
comprávamos carne – e quando o fazíamos era pouca – dizíamos que nos
abastecíamos no Porto...

A porta da rua abria-se e em cima de um
pequeno móvel estava a jarra, que o camarada que me apanhara no Porto,
para me passar ao Zé Bernardino, me tinha oferecido.

Não pude
deixar de dizer ao Zé que, apesar das lentes de contacto e do bigode
farfalhudo o tirara logo pela pinta!... E só o conhecera uns anos
antes, quando, saído da cadeia, retomou o contacto com algumas cadeiras
no Técnico em 69, e aí me recrutou para o Partido. O Zé depressa voltou
à clandestinidade.

Voltando à jarra: era pequena mas bonita e
supostamente com gosto a condizer com o de um consultor literário (eu),
que escondia nessa ficção a actividade clandestina, também protegida
com um novo bilhete de identidade, cuidadosamente falsificado, em que
estava com um ar respeitável captado num fotógrafo da Rua Aníbal Cunha,
sem a guedelha, a pêra e o bigode com que me paramentara nos anos
anteriores. O bilhete já fora o certificado de garantia para o contrato
de aluguer da casa com um cidadão do Porto que, no andar por cima de
nós, montara casa para uma sobrinha...

Já não sei o que jantámos
nesse dia. Talvez o pitéu que o Zé recomendara, compatível com os
nossos orçamentos. Coza-se arroz branco, encha-se a travessa, barre-se
com maionese feita com um ovo, distribuam-se em cima pedaços de atum de
conserva, estilhaçados, e decore-se com rabanetes semi-descascados.
Sim, porque os olhos também comem. Depois foi a loiça, a Rádio Portugal
Livre, o queimar algumas notas e o cifrar outras, o refazermos os
passos dados nesses dias, conferindo as regras, a preparação de
contactos e de propostas de trabalho em encontros com dois engenheiros
nos dias seguintes.

Para trás ficava um período em que a PIDE
me marcava regularmente. E o convite do Partido por que tanto esperei,
feito numa casa na R. Maria Pia. Para trás ficavam ainda as aulas
nocturnas que dava no Colégio Moderno e nas quais o Veiga me substituiu
com vantagem para a Dra. Maria Barroso. E foi em casa dele, nos
arredores de Lisboa, que me “despedi” dos meus pais (todos sabíamos ao
que íamos mas não o traduzíamos em palavras). As semanas seguintes,
passei-as na casa do Manuel Alpedrinha, na Parede, aguardando a minha
companheira. Foram longas e interessantes as conversas com ele. Depois
foi a saída para o Porto, de automóvel, com o Maia Rebelo. E aí
ficámos, na casa de uma prima minha, onde dissemos que íamos “saltar”
para o estrangeiro. Tivemos ambos contactos com os organismos do
Partido a que ficaríamos ligados e iniciámos os passos para montar a
futura - e efémera - casa.

Depois desse dia 19, foram mais os
contactos de rua. Ficámos, entretanto, preocupados, no dia 21. O Zé não
comparecera a um encontro com a Fátima, em Baguim. E ela dera uma volta
pelo campo para fazer tempo para a hora do recurso. Notara uma
movimentação estranha na zona, de carros e de pessoas, que a levaram a
não voltar à estrada e a ficar, à distância, a ver se o Zé apareceria.
Passada a hora do recurso, não apareceu e ela abandonou o local através
do arvoredo. Acontecera que naquele momento, não muito longe, a PIDE
apanhara o José Carlos Almeida, o último funcionário do Partido a ser
preso antes do 25 de Abril. O Zé também se tinha apercebido do
movimento e decidira também não comparecer ao encontro.

Na noite
de 24, como de costume não nos deitámos tarde. Ao pequeno almoço,
ouvimos no rádio os comunicados, as marchas, os avisos...O Zé afinal
aparecia... a bater-nos à porta, contra todas as regras! Contou-nos o
que se passava e levou-me para fazermos contactos. As coisas ainda não
eram garantidas e o Partido revelava-se gradualmente. A estrutura
clandestina teria que se ir mantendo parcialmente. Por isso, a Fátima
ficou três dias, sozinha, a acompanhar os acontecimentos pela rádio e a
pintar febrilmente panos com as palavras de ordem do momento: “Regresso
de Álvaro Cunhal!”, “Fim da guerra colonial!”...Depois
reencontrámo-nos. As emoções, em turbilhão, eram indiscritíveis.

No 1º de Maio, com a Av. dos Aliados cheia, um burguês, certamente de
origem rural, bem vestido, a meu lado, com uma mão no colete e outra
acompanhando o gesto largo do braço, sentenciava, com uma cigarrilha no
canto da boca: “Vê? Isto é tudo pessoal de Gaia!”. Mas já eram os
trabalhadores que marcavam o ritmo.

Depois foram dias que não se
distinguiram das noites. Actos colectivos feitos de desempenhos
individuais realizados ombro a ombro. A catadupa de sentimentos, de
acontecimentos, a impossibilidade de guardar na memória tantos
episódios. A primeira filha que nasce em 75, certeiramente no 7 de
Novembro, mas numa conjuntura política de grande tensão e cuidados.

Quando,
nos trinta anos desta revolução inacabada, olho para os cartazes
“oficiais” e neles lhe chamam “evolução”, dou comigo a perguntar aos
seus autores se foi evolução o período 1383/1385, se foi evolução o 5
de Outubro ou se não estará nesse semântico trocadilho subjacente um
desejo irreprimível de rescrever a História e acabar por passar a
revolução de Abril a um prolongamento da “evolução na continuidade” de
Marcelo Caetano...

Quando há dias, em reunião de Câmara tivemos
a difícil e viva discussão sobre a atribuição de topónimos a Costa
Gomes e António de Spínola, todas as emoções regressaram. Alguém disse
então, uma vez mais, que o 25 de Abril não é propriedade só de uns.

O 25 de Abril não é, de facto, propriedade de ninguém em particular.
Mas muito menos tem que ser albergue de creditação das asneiras dos que
com algumas atitudes continuam a revelar incomodidade, desconforto e a
ver a História pelo retrovisor dos seus egos mal afagados. Asneiras
ciclicamente reeditadas quando se aproxima a festa que o povo continua
a fazer desta data, impregnando-a das suas lutas de hoje e das
aspirações não realizadas.

Pode-se gostar mais ou menos. Grave é rescrever, violando o rigor histórico.

Como alguns que perderam o crédito quando, com informação e formação
histórica para não se atolarem num sectarismo ignorante, disseram que o
25 de Abril não decorreu de décadas de resistência que deram outra
consequência ao acto libertador, particularmente nos últimos anos que o
antecederem. Ou os que, desconhecedores das regras conspirativas da
compartimentação de informação, entenderam dizer que o PCP não teve a
ver com ele porque nesse dia falaram com alguns militantes que não
estavam a par(!!). Sem se terem dado ao trabalho de aos mesmos terem
perguntado quantas “credenciais” tinham passado nos meses anteriores
para camaradas que foram para a tropa, que optaram por não fugir à
guerra que tinha também que ser combatida aqui e no seu próprio seio.

No
dia 25 festejarei em Olhão, mas também terei um pensamento solidário
com todos os que, aqui em Lisboa, vão descer a Avenida que é a da
Liberdade.

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