Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Audição «Valorizar a cultura e os seus trabalhadores»

Valorizar a cultura e os seus trabalhadores

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Começo por vos agradecer terem aceite o nosso convite para em conjunto podermos analisar o momento que se vive no sector da cultura, mas também a análise que fazemos da situação e os caminhos que apontamos para que se possa ultrapassar a profunda crise que tem afectado o sector.

O País tem vivido, na área da cultura, resultado de uma política de décadas marcadamente de direita, um período de acentuada elitização, privatização e mercantilização, em que a cultura é concebida como apenas mais uma área da actividade económica, centrada em torno das chamadas indústrias culturais, que sucessivos Orçamentos do Estado alimentaram, ao substituir a presença livre e independente da criação, pelo reforço da monocultura dominante, numa sistemática fragilização do tecido cultural.

Salvo pontuais e muito limitados avanços ou reposições de direitos que decorreram por proposta do PCP e da luta dos trabalhadores e agentes culturais em defesa da cultura – como foi o caso da baixa do IVA dos instrumentos musicais ou o regresso das bolsas de criação literária – mantêm-se as enormes dificuldades dos vários subsectores da cultura, onde de forma transversal estão confrontados com um dramático subfinanciamento.

A crise epidémica que afecta o nosso País desde Março de 2020 aprofundou uma crise estrutural que desde há muito o PCP, os artistas e a generalidade dos trabalhadores da cultura vinham denunciando.

Subfinanciamento, precariedade, baixos salários, ausência de horários de trabalho, reformas de miséria, elevadas taxas de desemprego e abandono da profissão são algumas das consequências da insistência na política de direita.

A grave situação que já se vivia antes da epidemia levou a que milhares de trabalhadores da cultura saíssem à rua no dia 6 de Abril de 2018, numa jornada que ficou marcada por uma significativa identificação e apoio político da proposta avançada pelo PCP de 1% do Orçamento do Estado para a Cultura e marcou uma nova fase de uma luta que, apesar de todas as dificuldades e nas mais diversas formas, se tem mantido até hoje.

A intervenção do PCP na defesa das Artes e da Cultura e dos seus trabalhadores tem sido coerente e constante, diferenciando-se daqueles que apenas querem cavalgar a crista da onda mediática. Intervindo no sentido da resolução dos problemas concretos e imediatos, o PCP não esquece os problemas de fundo. Sem se limitar à mera denúncia, o PCP tem uma intervenção e projecto de futuro para as Artes e a Cultura.

É facto que a epidemia tornou mais visível uma brutal situação de ausência de direitos, protecção social e estabilidade para milhares de trabalhadores do sector. No entanto, ela decorre da normalização da precariedade que há anos marca o trabalho nas Artes e na Cultura.

A desregulação e diferenciação dos horários de trabalho nesta área, os baixos salários e cachês, a fragilidade dos vínculos do trabalho técnico e artístico, o não reconhecimento para efeitos de remuneração de componentes de muito do trabalho - como o estudo, pesquisa, criação - não começaram em Março de 2020.

A tudo isto o Governo respondeu com medidas avulsas e desarticuladas, recheadas de burocracias e complicações. Muitas vezes, as mesmíssimas medidas foram anunciadas e reanunciadas, tardando a chegar ao terreno e a quem delas mais precisava. Ainda hoje há quem não tenha conseguido aceder ao apoio social extraordinário no valor de um IAS, apoio que terminou agora. Mesmo as medidas que decorriam do presente Orçamento do Estado, inscritas por intervenção do PCP, foram sendo arrastadas e não têm ainda a concretização plena que urge ser dada.

Tivessem sido aprovadas as propostas que o PCP há anos vem defendendo e a situação não teria alcançado as dimensões dramáticas que muitos milhares de artistas e trabalhadores da cultura conheceram: sem trabalho, sem protecção social, sem rendimentos. Tivessem sido aprovadas e concretizadas as medidas de emergência que propusemos e a situação teria sido menorizada.

Mas não desistimos da luta, na Assembleia da República e fora dela. Por isso, aqui estamos mais uma vez. Ouvindo e construindo soluções que respondam às dificuldades vividas nas Artes e na Cultura, sem falsas promessas ou ilusões, sem importar soluções que pouca ou nenhuma correspondência têm com a realidade do País.

Cabe aqui uma referência às medidas anunciadas no Conselho de Ministros de 22 de Abril de 2021, em que o Governo anunciou a aprovação de um conjunto de diplomas destinados ao sector cultural e artístico. No geral, são medidas em que não se descortina uma efectiva responsabilização do Estado e não se aprofunda qualquer perspectiva de Serviço Público de Cultura na medida do justo e do necessário. Mais uma vez, sobressai a desarticulação, o cariz pontual (ou seja, não estrutural) e o reforço da dependência de fundos europeus.

Nesta reunião foi ainda anunciado o decreto-lei que cria o chamado Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, composto por três partes: registo profissional, regime laboral e regime contributivo. O PCP vê com grande preocupação a proposta do Governo em consulta pública.

O Governo opta por consolidar o quadro legislativo resultante da Lei 4/2008, ferramenta de precariedade e exploração que comporta normas mais gravosas do que as do Código de Trabalho e que não são expurgadas. Apesar da proposta do Governo poder ainda vir a ser alterada, a verdade é que estruturalmente comporta uma visão em que a precariedade é mantida e normalizada, em que continua a ser mais vantajoso para quem contrata recorrer a recibos verdes, em que o equilíbrio da Segurança Social pode ser comprometido por via da constituição de um fundo autónomo sem garantias de auto-sustentabilidade.

Além disso, é um modelo que não resolve nenhum dos problemas fundamentais que estão colocados aos trabalhadores das artes e da cultura, que se prendem com a natureza e características do trabalho desempenhado, a tipologia dos contratos e dos vínculos a que estão sujeitos, os salários baixos e irregulares, a instabilidade da carreira contributiva e o acesso e montante das prestações sociais.

A valorização dos trabalhadores e do trabalho nas Artes e na Cultura exige o reconhecimento da existência de direitos, de contratos de trabalho, da criação de condições para que estes trabalhadores possam ser integrados no sistema de Segurança Social.

É preciso distinguir a sazonalidade e até pontualidade do trabalho pago da inexistência de trabalho, pois há componentes que extravasam os momentos de apresentação que, até agora, não têm sido consideradas, mas não podem ser esquecidas. O Governo aponta a um conceito de intermitência para não ter de resolver este problema, que antes obriga a uma intervenção decidida no sentido do aumento dos salários e da estabilização de vínculos, acabando com os falsos recibos verdes. É este último caminho que o PCP decidiu trilhar.

Só com a unidade e mobilização dos artistas e trabalhadores da cultura, com o seu envolvimento na defesa dos seus direitos, na defesa da dignidade do trabalho na cultura, será possível garantir a cultura enquanto factor decisivo de desenvolvimento e progresso, enquanto pilar da democracia devidamente valorizado.

Na política patriótica e de esquerda que o PCP propõe ao País, a cultura é entendida como uma componente essencial ao desenvolvimento humano, como elemento que convoca a reflexão, o pensamento, o conhecimento, a participação, a busca do belo, a realização e a libertação do Homem.

Coloca-a como componente que concorre como elemento indispensável à democracia política de forma livre, à democracia económica, porque só dessa forma se pode um país desenvolver.

Para o PCP, a cultura é imprescindível ao desenvolvimento, à liberdade, à democracia e à emancipação individual e colectiva. Urge, por isso, a concretização de um serviço público de cultura, em que o Estado tem uma responsabilidade determinante enquanto garante de liberdade de criação artística e da sua fruição, com igualdade de oportunidades e de acesso em todo o território nacional. É que a democracia cultural pressupõe responsabilidades fundamentais de um Estado democrático, mas só pode ser construída na combinação da acção do Estado com a participação e a criatividade individuais e colectivas.

A situação que se vive na cultura e noutras áreas exige do Governo medidas de dinamização da actividade, garantidas que sejam as medidas de protecção sanitária. Mais do que continuarem a intervir criando condicionalismos à vida das pessoas, importa fazer a vigilância epidemiológica, fazer o rastreio dos novos casos, testagem massiva e principalmente avançar mais rapidamente na vacinação de todos, pelo que continua a ser urgente garantir as vacinas necessárias diversificando a sua aquisição.

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