Intervenção de João Ramos na Assembleia de República

"Um país organizado, moderno e soberano tem de garantir a alimentação dos seus cidadãos"

Sr.ª Presidente, Srs. deputados,

Discutir desperdício alimentar e gestão eficiente dos alimentos, remete-nos em primeira mão para uma abordagem às formas de produção e aos setores produtivos.

A verdade é que hoje em dia, em Portugal e na Europa, ao mesmo tempo que muitos têm dificuldade em fazer uma alimentação adequada ou sequer alimentar-se, muita produção fica nas explorações por recolher.

E a primeira abordagem que tem de ser feita é como funciona - com que orientação, com que objetivos – a produção em Portugal. Será que o país e os agricultores estão a produzir alimentos em função das necessidades do país? Que estratégia existe orientada nesse sentido?

Depressa chegamos a uma conclusão: não existe uma estratégia! Ou pior, a estratégia de não ter estratégia para permitir, que sejam os ditos mercados, que é como quem diz, os interesses económicos, a orientar a produção. Os exemplos que confirmam isto que dizemos são vários. Desde o maior investimento público de sempre no setor agroalimentar – o projeto de Alqueva – em que foi a opção de empresários espanhóis a querem produzir azeite que orientou para instalação em Alqueva da massa de olival que lá existe. Outro exemplo da falta deliberada de estratégia é o objetivo do Governo de assumir o equilíbrio da balança agroalimentar, mas apenas em valor. Isto é, ao Governo só preocupa que aquilo que o país exporta seja em valor suficiente para cobrir os custos daquilo que importa. Para o Governo e para que este objetivo seja atingido, basta que o país se especialidade na produção de dois ou três produtos, que o resto se comprará ao exterior. O único problema é que esta estratégia põe em causa em larga escala a soberania do país. A verdade é que para quem tanto se verga a Bruxelas sem ousar levantar um dedo, conceitos como soberania alimentar deve dizer muito pouco.

É muito claro que para o Governo, o atual e anteriores, a função da agricultura não é, em primeira mão, a satisfação das necessidades alimentares do país. A agricultura é apenas mais um setor económico.

Estas opções e estas políticas não são as que o país precisa. O país, apesar de um grau de autossuficiência agroalimentar que rondará os 70% e apesar de ser autossuficiente em meia dezena de produtos, é altamente deficitário em alguns produtos estratégicos. O país importa cerca de 50% da carne de bovino, 35% da carne de suíno (da qual já se produziu 90%), 55% da batata, 30% das frutas, 93% do feijão seco, 90% do grão-de-bico, 88% dos cereais e entre estes 96% do trigo. O exemplo do trigo é flagrante nesta relação de dependência do exterior. O país só produz 4 % do trigo que consome e o principal fornecedor de trigo era, em 2013, a Ucrânia. Isto dá-nos a dimensão da fragilidade deste modelo.

Outra opção que é necessário implementar tem a ver com a sustentabilidade dos recursos. A terra para produção agrícola é limitada e a Superfície Agrícola Utilizável tem vindo a reduzir, pelo que uma adequada utilização do solo é não só necessária, como fundamental para assegurar o futuro do país. Modelos de produção assentes em exploração intensiva e superintensiva que procuram lucro rápido e elevado e com alta capacidade de esgotamento do solo, ou o assunto da introdução da produção florestal em terrenos de cultivo e de regadio (que se tem vindo a falar e a potenciar, nomeadamente com a lei da eucaliptização) são bons contributos para o esgotamento do solo e para redução da área agricultável. Neste contexto, a agricultura familiar, a pequena e média agricultura é a que utiliza de forma mais equilibrada os recurso, quer através de uma vasta diversificação cultural e de rendimentos, quer também porque produz localmente o que é consumido localmente e quase sempre produtos de melhor qualidade. Isto para além do seu potencial fixador de populações.

Mas à produção e ao aproveitamento alimentar está ligada outra matéria: a distribuição. A distribuição dá um contributo grande para promover a agricultura de cariz industrial, uma vez que ao aniquilar a pequena e média produção, através do esmagamento de preços, deixa, apenas espaço para a produção industrial. E a grande distribuição representa 70% desta atividade no nosso país. O Governo foi obrigado a assumir a existência deste problema da predação da produção por parte da distribuição, pela evidência que ele apresentava, mas não o resolveu. O Governo continua com a PARCA na boca e a grande distribuição com as mãos livres para pagar e impor o que quiser e quando quiser.

Para além de que a grande distribuição é a face visível da normalização dos produtos, em que o calibre e o brilho valem mais que a qualidade ou a origem do produto. Este processo de normalização tem sido responsável por deixar fora dos circuitos comerciais e dos circuitos de consumo, quantidades significativas de alimentos.

Assim medidas de venda direta de produção, permitem ao consumidor o acesso a produtos, mais frescos, tendencialmente de melhor qualidade e dos quais sabe a origem. Estas medidas não serão a solução para todos os problemas de escoamento da pequena e média agricultura, mas dariam o seu contributo.
O Grupo Parlamentar do PCP acompanha as preocupações e as propostas do Partido Ecologista “Os Verdes”.

Um país organizado, moderno e soberano tem de garantir a alimentação dos seus cidadãos, procurando atingir a autossuficiência tanto quanto for possível. Medidas de aproveitamento de todos os recursos, que implicam a rejeição de imposições que limitem a possibilidade de consumo, fazendo prevalecer o aspeto ao conteúdo, têm de ser combatidas.

A soberania, nas suas diversas vertentes, não dispensa a soberania alimentar e ela é incompatível com uma visão exclusivamente economicista da agricultura que deixe de fora a sua importância para a satisfação das necessidades alimentares do país; incompatível com uma definição da política agrícola e logo de produção de alimentos, definida a partir do exterior e por princípios de mercado que deixam de fora as preocupações atrás expostas; e incompatível com a não existência de uma política agrícola nacional, com uma abordagem estratégica e que deverá ser orientadora das definições e decisões em matéria de produção agroalimentar.

É isto que falta ao país. E é também isto, parte integrante daquilo a que o PCP chama uma política patriótica e de esquerda, e que estaremos disponíveis para pôr em prática, assim seja essa a vontade dos portugueses.

Disse.

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