Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Transfere competências dos governos civis e dos governadores civis para outras entidades da Administração Pública em matérias de reserva de competência legislativa da Assembleia da República

(proposta de lei n.º 14/XII/1.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr. Ministro,
Srs. Secretários de Estado,
Convergimos num ponto com o Governo, que é o da dispensabilidade dos governadores civis.
Aliás, temo-lo dito desde há muito. Quanto à dispensabilidade e tendo em conta a prática de alguns governadores civis, também temos de convergir quanto à indesejabilidade de certos procedimentos que, infelizmente, muitos governadores civis protagonizaram nos últimos anos.
Temos exemplos claros de clientelismo praticado à sombra dos governos civis, de promoção de clientelas partidárias, e temos actuações absolutamente extraordinárias, como a do Governador Civil de Braga, que era presidente de uma concelhia partidária de Vila Nova de Famalicão e usava os meios e o facto de ser Governador Civil para fazer campanha política enquanto futuro candidato à Câmara Municipal de Famalicão, que era algo absolutamente extraordinário.
Também nos lembramos que, há uns anos, na região de Lisboa, havia um governador civil que distribuía cheques pelas colectividades, com fundos do Governo Civil, de braço dado com um candidato a uma câmara municipal, dando até, às vezes, a honra de ser o candidato a entregar o cheque do Governo Civil às colectividades.
Lembramo-nos também que o Governo Civil de Lisboa, ainda há bem pouco tempo, tinha 5 milhões de euros para comprar blindados, no sentido de garantir, supostamente, a segurança da Cimeira da Nato, blindados esses que, depois, acabaram por não chegar. Mas ficámos a saber que o Governo Civil de Lisboa podia dispor assim de 5 milhões de euros, o que não é propriamente um modelo de transparência relativamente aos recursos públicos.
Também vimos, muitas vezes, governadores civis que pensavam que tinham o direito de autorizar ou até de proibir manifestações.
Assistimos a muitas actuações arbitrárias que, de facto, não foram abonatórias relativamente à desejabilidade ou à pertinência deste cargo, as quais só eram possíveis porque havia um ministro da Administração Interna que as sustentava e não demitia governadores civis que tinham actuações absolutamente arbitrárias.
O que se discute hoje, com a proposta de lei que o Governo apresenta, não é propriamente a decisão de extinguir os governos civis, porque o Governo já anunciou e já tomou essa decisão. O que estamos a discutir, na verdade, é curto, é um diploma instrumental que tem a ver com a redistribuição de competências que estavam atribuídas aos governos civis, em diplomas que são de reserva absoluta de competência da Assembleia da República, quando valia a pena fazer uma discussão mais alargada sobre a própria extinção dos governos civis e as soluções que vão ser dadas a outras questões que são mais complexas do que estas.
O que o Governo faz é rearrumar as competências dos governos civis. Nalguns casos, onde se lê «governador civil» leia-se «presidente da câmara municipal», noutros casos leia-se «representante da República para as regiões autónomas», noutros casos leia-se «tribunal da comarca».
Até aí tudo bem. Quanto a isso não há problema e pensamos que, desse ponto de vista, esta proposta de lei é «limpa», isto é, não traz problemas significativos.
O que importa discutir é se a Constituição prevê a extinção do cargo de governador civil como consequência da criação das regiões administrativas. Ora, este Governo é manifestamente contra a criação das regiões administrativas, que é uma imposição constitucional, pelo que valeria a pena discutir esta matéria.
Se era para dar cabal cumprimento à Constituição, a extinção do cargo de governador civil devia ser uma consequência da criação das regiões administrativas. Ora, o Governo ignorou completamente essa disposição constitucional.
Mas há mais: importa saber exactamente qual será o estatuto profissional que vão ter os 316 funcionários dos governos civis, no quadro da extinção.
Essa é uma questão fundamental.
O Sr. Ministro disse algo de que não discordamos: a possibilidade de integração destes trabalhadores em funções administrativas junto das forças de segurança. É uma solução. Mas queremos saber qual vai ser o estatuto concreto desses funcionários, porque importa salvaguardar os seus direitos adquiridos, importa garantir que a extinção dos governos civis não venha a ser uma forma de preterir os direitos desses trabalhadores e de diminuir o seu estatuto profissional. Era bom que o Governo desse garantias sólidas relativamente a esta matéria e até agora não deu.
Não basta dizer o que é que esses trabalhadores vão fazer, importa saber em que condições e com que estatuto é que o vão fazer.
O mesmo se diga relativamente à afectação do património.
O Sr. Ministro diz que vai haver uma poupança de rendas nas instalações dos governos civis que sejam arrendadas. Muito bem! Mas creio que nem todas as instalações dos governos civis são arrendadas — e o Sr. Ministro confirmará isso — e algumas delas têm um elevadíssimo valor patrimonial. Portanto, importa saber o que é que o Governo quer fazer, se quer alienar essas instalações, se as quer reafectar e, se assim é, com que serviços e para que finalidade. Fizemos há uns tempos uma pergunta ao Governo sobre esta matéria, à qual o Governo ainda não respondeu.
Não conhecemos na íntegra os diplomas que, não sendo da competência reservada da Assembleia da República, o Governo pretende aprovar sobre esta matéria, o que faz com que este debate seja muito curto.
Este debate, no fundo, é sobre uma questão instrumental quando a questão substantiva está fora da proposta de lei que o Governo nos apresenta. Valia a pena que a Assembleia da República fizesse um debate sério sobre essas questões, designadamente sobre o património e, fundamentalmente, sobre qual o futuro concreto e o estatuto que vão ter os actuais funcionários dos governos civis.
Era importante que o Governo desse uma resposta cabal a esta Assembleia.

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