1 - No final de 2022, o Governo PS anunciou - e colocou em discussão pública - o chamado Plano Ferroviário Nacional-PFN. Um documento que compila um conjunto de investimentos e projectos até 2050, muitos dos quais com décadas, mas que se apresenta ao País com as mesmas opções, insuficiências e erros que têm conduzido a gritantes atrasos, e até retrocessos, no transporte ferroviário nacional.
Para o PCP, a ausência de qualquer abordagem crítica sobre a não concretização de planos e investimentos anteriormente previstos diminui a credibilidade desta proposta do Governo PS. No PFN não é feita qualquer apreciação crítica sobre o facto de o programa Ferrovia 2020 (lançado em 2016), com data anunciada de conclusão marcada para 2021, ter apenas 15% dos investimentos concluídos (e o restante com atrasos de 4 anos); a certa altura da proposta de PFN lê-se «...é o primeiro troço a ser construído em 25 anos...»). Mas porquê? Um dos elementos centrais da proposta de PFN é a nova Linha de Alta Velocidade entre Lisboa e o Porto, que está consensualizada há mais de 30 anos. Já foi anunciada inúmeras vezes. Não se concretizou. Porquê? A Terceira Travessia sobre o Tejo - TTT entre Chelas e o Barreiro consta de todos os instrumentos de planeamento estratégico da AML. A proposta de PFN chama-lhe «a peça mais importante em falta na rede ferroviária nacional». Desde 2010 que a Escola Afonso Domingues está fechada para permitir a construção do canal de acesso à TTT. Nada foi feito. Porquê?
De facto, é mais fácil fazer planos que construir linhas férreas, é mais barato fazer promessas que comprar comboios, é mais simples substituir planos não concretizados por novos planos, do que fazer o balanço sério à concretização do planeado.
2 - Mas o definhamento do transporte ferroviário nacional não radica fundamentalmente na vertigem propagandista de sucessivos governos. O processo de liberalização da ferrovia (com os sucessivos “pacotes ferroviários”) imposto a partir da União Europeia e concretizado em Portugal nos últimos 20 anos; a diminuição do investimento público, em função das imposições do Euro (défice); a separação da infra-estrutura da operação com a criação da REFER e posterior integração na Infraestruturas de Portugal – IP em conjunto com a rede rodoviária foram e são as razões de tanto atraso, tanto adiamento, tanta promessa por cumprir. E o PFN não questiona nenhuma destas realidades da responsabilidade da política de direita de sucessivos governos do PS, do PSD e CDS.
Mas ao PFN faltam-lhe mais coisas. Faltam-lhe comboios, sobre os quais nada planifica, e sem os quais nada funciona. Faltam-lhe ferroviários: pois rigorosamente nada é dito sobre os trabalhadores, sobre a necessidade da sua formação e valorização. Falta-lhe uma visão que integre e articule o transporte ferroviário com a restante rede de transportes e infra-estruturas estratégicas como o Novo Aeroporto de Lisboa. É um plano que também não aborda as questões do preço do serviço, decisivo para estimar a procura e dimensionar a oferta.
O PFN, sendo uma reflexão sobre o desenvolvimento da infra-estrutura ferroviária e dos serviços que a devem utilizar, não incorpora as medidas necessárias para que ele possa algum dia sair do papel. É um plano sem prioridades, calendário, nem garantias e quantificação do financiamento necessário à execução do mesmo.
3 - Por razões económicas, sociais, ambientais e de equilíbrio e coesão territorial o País precisa de uma ruptura na política de transportes. Precisa de resistir e combater as imposições da UE cujo objectivo é financiar a construção da infra-estrutura para que a exploração seja feita pelas multinacionais em seu proveito.
Nas próximas décadas, tendo como horizonte o ano de 2050 (data assumida pelo PFN), o País deve mobilizar os recursos necessários – por via do Orçamento do Estado, Fundos Comunitários e outras possibilidades – de modo a garantir a plena concretização e aproveitamento do investimento na ferrovia.
O PCP, consciente da importância para o País desta opção estratégica para o seu desenvolvimento, aponta para a necessidade de desenvolver uma política assente em 5 eixos:
• Reconstruir o sector ferroviário nacional. É necessário reverter o processo de fragmentação e liberalização do Sector Ferroviário Nacional, reconstruir uma CP única, pública e nacional, que assuma a exploração comercial de toda a rede, que novamente integre a REFER, as mercadorias e os terminais rodoferroviários, que reconstrua capacidade pública de construção e manutenção da infraestrutura e reforce o quadro técnico e operacional das empresas ferroviárias.
• Concretizar um Plano Nacional para o Material Circulante, que parta da avaliação do material existente, do seu tempo de vida expectável, das necessidades actuais de aumento de oferta e do calendário de novas necessidades decorrentes de investimentos e outras medidas, e que planifique os investimentos na frota para as próximas décadas, garantindo, na fase de construção, alavancar o investimento para uma maior incorporação nacional, e na fase de exploração, a redução de custos.
• Valorizar os ferroviários. É necessário repovoar o sistema com ferroviários. Acabar com as estações desertas e semi-abandonadas, suprir as necessidades operacionais na manutenção, preparar o movimento para o crescimento da operação, reconstruir uma engenharia ferroviária para a intervenção directa, re-internalizar todas as actividades, dos bares nos comboios à manutenção da infraestrutura. É imprescindível valorizar as carreiras e profissões, repor direitos, aumentar os salários, apostar na formação e valorização dos ferroviários. A proposta que adiantamos aponta à incorporação directa de mais 4000 trabalhadores neste sector.
• Reforçar a intermodalidade na bilhética e na organização da rede. Para uma redução significativa da dependência do transporte individual, é necessária uma rede ferroviária apoiada numa rede mais ligeira que garanta a necessária capilaridade ao sistema. É necessário avançar rumo à progressiva gratuitidade do sistema.
Quanto às infra-estruturas:
É urgente calendarizar, garantir os fundos necessários e sobretudo concretizar um conjunto de investimentos na rede e nos serviços que estão no essencial consensualizados, designadamente:
• Concretização das intervenções de Modernização e Electrificação da Rede Ferroviária Nacional, na Linha do Algarve, na Linha do Oeste, na Linha da Beira Alta, na Linha do Douro, na Linha do Leste, na Linha do Alentejo de Casa Branca a Beja e a Ourique, com variante ao Aeroporto de Beja, na Linha de Cintura a quadruplicação de Roma-Areeiro a Braço de Prata, na Linha de Cascais e na Linha do Minho a quadruplicação de Contumil a Ermesinde;
• Avançar com a construção da Terceira Travessia sobre o Tejo entre Chelas e Barreiro em modo rodo-ferroviário com as respectivas conexões à Linha de Cintura, Estação Oriente e Poceirão;
• Construção faseada da nova linha para alta velocidade Lisboa–Porto da estação Oriente até à estação de Campanhã, com alargamento progressivo dos serviços de intercidades e de alta velocidade a novos pólos urbanos com redução do tempo de viagem;
• Conclusão da ligação Évora-Elvas, assegurando o seu pleno aproveitamento para transporte de passageiros e de mercadorias nesta região com a construção de terminais rodo-ferroviários de mercadorias em Vendas Novas, Évora e Alandroal;
• Reversão do processo de transferência dos terminais rodoferroviários de mercadorias, designadamente de Leixões e da Guarda, da IP para a Administração do Porto de Leixões, que este mesmo Governo implementou;
• Intervenção com carácter de urgência em infra-estruturas diversas – nas estações e no reforço da sua guarnição, nos apeadeiros, na retoma do processo de supressão de passagens de nível, etc – introduzindo melhoramentos que há muito são reclamados pelos utentes, trabalhadores e populações;
• Alargar a oferta no curto prazo, designadamente: proceder a iniciativas conducentes à retoma urgente dos comboios nocturnos a Madrid e Hendaya; aumentar a oferta na Linha do Sul e recuperando a ligação a Alcácer do Sal; assegurar um serviço regular que permita deslocações pendulares entre Guarda-Belmonte-Covilhã-Fundão na Linha da Beira Baixa; providenciar condições para o operação com bitensão no serviço Porto-Vigo;
• Avançar com o alargamento da rede do Metro de Lisboa (Campolide, Amoreiras, Campo de Ourique, Alcântara, Ajuda, Belém, Sapadores/Graça, Alta de Lisboa e Loures), do Metro do Porto (Trofa, Valbom, Campo Alegre, Devesas, São Mamede de Infesta, Maia) e do MST (do Monte da Caparica à Trafaria até à Costa da Caparica e de Corroios ao Seixal, Barreiro, Moita, Montijo e Alcochete);
Planear e projectar o desenvolvimento no médio prazo da rede e dos serviços, nomeadamente:
• Possíveis ligações em Alta Velocidade - AV de Aveiro a Viseu e Mealhada, potenciando a aproximação à Guarda e a Salamanca, do Porto a Braga e Valença articulada com a ligação a Vigo, e de Évora e Beja a Faro e Vila Real de Santo António com vista à continuidade a Huelva e Sevilha;
• Construção de ligações directas de Braga a Guimarães e a Barcelos;
• Reposição das ligações ferroviárias a Vila Real e Bragança, incluindo a possibilidade de uma nova Linha;
• Ligação da Linha do Algarve ao Aeroporto de Faro (e Universidade do Algarve);
• Ligação da TTT ao Novo Aeroporto de Lisboa e continuidade do troço de AV TTT-Poceirão (plataforma logística) até Évora, completando a ligação à fronteira do Caia na perspectiva da continuidade a Badajoz e Madrid;
• Ligação da Linha do Oeste à Linha de Cintura por Loures;
• Estudo e investimento na reabertura de troços e linhas encerradas ao longo dos anos, visando o aproveitamento e interligação com a restante malha ferroviária de que são exemplo: a ligação Figueira da Foz – Pampilhosa; a reposição dos carris e electrificação do Ramal da Lousã; a requalificação, modernização e electrificação da Linha do Vale do Vouga.
4 -Tudo isto envolve um investimento, ao longo deste período, que se estima em cerca de 30 mil milhões de euros em material circulante, infra-estruturas e pessoal, do qual dois terços corresponde a infra-estruturas – e que deve assumir um peso crescente em percentagem do PIB, de modo a que, em 10 anos atinja 0,5%/ano.
Uma opção que deve contribuir para a dinamização da actividade económica do País, do aparelho produtivo e da indústria nacional, contribuindo para a criação e fixação de emprego qualificado, a coesão territorial, a diminuição de importações, a redução da dependência do transporte individual, a modernização e desenvolvimento do País.
5 - Para o PCP, o ano de 2023 não pode representar mais adiamentos e anúncios como os que têm sido feitos ao longo dos anos. Nas próximas semanas, coincidentes com a discussão pública do PFN, o PCP dará continuidade à sua intervenção em torno da ferrovia envolvendo populações, ferroviários, técnicos e especialistas. Para o PCP, o investimento na ferrovia ao longo desta primeira metade do século XXI pode ser, se integrado numa estratégia de desenvolvimento do País, um elemento determinante para a sua modernização e progresso.