Programa de Requalificação Urbana ou Instrumento de Propaganda do Governo?
A Proposta de Lei apresentada pelo Governo de uma autorização legislativa com vista a criar um regime especial e excepcional às entidades gestoras do Programa Polis, a discutir na próxima Sexta-feira na Assembleia da República, torna mais nítido os objectivos que estão associados ao desenvolvimento deste programa.
O Programa Polis - um somatório de projectos, alguns dos quais, prontos a ser apresentados por vários municípios a candidaturas do III QCA - assume-se indisfarçavelmente como uma solução destinada a garantir uma clara centralização e controlo pelo Governo da definição, gestão e implementação de programas de requalificação urbana e valorização ambiental, realizado no âmbito do desenvolvimento do III QCA à conta de verbas e financiamentos destinados aos Programas Operacionais Regionais (mais de 43 milhões de contos) que deveriam ser geridos pelas autarquias e, desde o seu lançamento, concebido como instrumento de propaganda e afirmação governamental, a que não são alheios claros objectivos eleitorais e partidários baseados na escolha dos casos e na gestão dos respectivos calendários.
Não estão em causa estas e muitas outras intervenções julgadas "exemplares", de requalificação urbana e valorização ambiental. É aliás necessário recordar que têm sido as autarquias, nos últimos anos, as percursoras da resolução de problemas ambientais em tecido urbano.
O que se questiona, isto sim, é a opção por um modelo na base da constituição de sociedades controladas pelo Estado, em que as autarquias são remetidas para uma condição minoritária, o caracter e regime de excepção que lhe são atribuídos ao arrepio das leis gerais em nome de cumprimento de prazos que de todo não o justificam, a expropriação de competências aos municípios em clara demonstração de falta de respeito e confiança pela capacidade do Poder Local.
Em resumo, o que está em causa é a clara falta de justificação que leva - olhando para todas elas e para cada uma das operações, quer em termos de complexidade e urgência -, à consagração de um quadro excepcional tão centralizado e governamentalizado.
A proposta de Lei presente significa, na prática que, entre outras, passam para as sociedades gestoras das intervenções:
· A competência para a elaboração de planos estratégicos, de urbanização e de pormenor. Saliente-se que por força da Lei de Bases do Ordenamento do Território os instrumentos de gestão territorial que determinam a transformação do uso do solo são obrigatoriamente prerrogativas da Administração Pública.
Saliente-se ainda a este respeito a experiência resultante do enquadramento da EXPO 98, e da Sociedade que a geriu e lhe sucedeu, a Parque EXPO, em cuja zona de intervenção vêm sendo aprovados, por despacho, Planos de Pormenor onde é suspensa a aplicação do RGEU - Regulamento Geral das Edificações Urbanas, abrindo caminho à concretização de operações de especulação imobiliária.
· A competência para licenciar obras de urbanização e de construção. Saliente-se que esta competência será tanto mais importante quanto é verdade que em muitas das intervenções previstas é significativo o volume de promoção imobiliária. Para já conhecem-se os números de Viana do Castelo (400 fogos) e de Sintra/Cacém (mais de 800 fogos); refira-se ainda a este propósito que o exemplo da EXPO 98 é aqui largamente ultrapassado dado que aí, essas competências se mantinham e bem, nas autarquias envolvidas, limitando-se a Sociedade EXPO às construções essenciais à realização da exposição.
· A competência para declarar a utilidade pública da expropriação de terrenos e imóveis, com o acesso ao instrumento da posse administrativa.
· E, o direito a constituir servidões necessárias à reinstalação e funcionamento das actividades actualmente localizadas nas áreas de intervenção.
Estas são competências actualmente detidas pelas autarquias locais de âmbito municipal ou há muito reclamadas por estas, para garantir o eficaz desempenho das suas atribuições nas áreas do ordenamento do território e do urbanismo.
Estas são competências que nada aconselha a retirar a órgãos de poder democraticamente eleitos - e sujeitos ao respeito pelos princípios de igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e transparência - e a transferir para entidades sem qualquer legitimidade democrática. E esta questão é tão mais significativa quanto se está a falar na capacidade de contratualizar, sem concurso público, aquisições e obras em valor que à partida ascendem a 160 milhões de contos.
Acresce que, quer na resolução do Conselho de Ministros n.º 26/2000, de 15 de Maio, quer na actual Proposta de Lei nada indica que o regime de excepção pretendido se venha a limitar às dezoito áreas de intervenção já conhecidas. É que parecendo certo que o Programa se encontra encerrado em termos de financiamento, tudo aponta para que o quadro de excepção funcione para as "intervenções definidas e a definir", entre as quais podem vir a figurar "alguns casos já em condições de serem concretizados, tirando partido de agentes locais motivados e de projectos já elaborados" como se refere no relatório anexo à resolução 26/2000 do Conselho de Ministros.
Nada justifica a existência de um regime de excepção sobre o qual pretende o Governo vir a legislar. As intervenções previstas são do âmbito do III QCA, ou seja, com um horizonte temporal suficiente para que se possam desenvolver e realizar, no respeito pelas competências existentes, e procedendo à elaboração e aprovação dos planos, às declarações de utilidade pública e expropriações, ao licenciamento e à construção dos edifícios e dos espaços públicos.
E, se algo há que simplificar é certamente ao nível dos mecanismos pesados de resposta da Administração Central às propostas dos municípios; se algo há que mereça tratamento de excepção, então que se legisle no sentido da excepção funcionar no quadro das competências já detidas pelo Poder Local.
A ideia subjacente a este processo, que as autarquias não são garante bastante da defesa do interesse público sendo necessária a intervenção tutelar do governo merecem por parte do PCP uma inequívoca rejeição.