A medida integra um conjunto de propostas, inscritas no Plano de Emergência e Transformação da Saúde, que pretendem colocar fora da gestão pública quase 800 mil utentes dos cuidados primários de saúde, em contraste com a absoluta ausência de medidas para contratar e reter especialistas médicos em Medicina Geral e Familiar, bem como outros profissionais, no Serviço Nacional de Saúde.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2024, de 30 de setembro, é parca na explicitação das condições em que se operacionalizará esta opção, concretizando apenas que se efetivará através de requisição pelas unidades locais de saúde abrangidas – Amadora/Sintra e Lisboa Ocidental -, com um custo de 6 milhões de euros, referente apenas ao período do último trimestre de 2024. Tal significa que, se o contrato for prolongado, nos mesmos termos, para o ano de 2025 (como já se adivinha), o valor será pelo menos de 24 milhões de euros.
Por outro lado, enquanto o Comunicado do Conselho de Ministros de 19 de setembro refere que o contrato será efetuado “de acordo com os critérios das Unidades de Saúde Familiar modelo B”, não há qualquer referência a esse modelo na Resolução já referida.
Da mesma forma, não existe qualquer referência na Resolução ao estudo da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos (UTAP), do Ministério das Finanças, referido no Comunicado, sendo que o mesmo não está disponível na página daquela unidade. Pelo contrário, remete-se para a Portaria 207/2017, de 11 de julho, onde se estabelecem as “Tabelas de Preços das Instituições e Serviços Integrados no Serviço Nacional de Saúde” , não se vislumbrando que relação terão estes preços com o invocado custo reduzido que fundamenta a decisão no Comunicado do Conselho de Ministros de 19 de setembro.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2024, de 30 de setembro, remete igualmente para a Cláusula 30ª do Contrato de Parceria Público-Privada do Hospital de Cascais, referente a “Actividade fora do Serviço Público de Saúde” . Isto é, a dita Resolução enquadra esta prestação de serviços como uma mera atividade privada adicional. A mesma Cláusula, contudo, proíbe os médicos com vínculo à Entidade Gestora do Hospital de Cascais, de realizarem atividade privada no Hospital, salvo nas condições em que isso é permitido ao pessoal do Serviço Nacional de Saúde.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2024, de 30 de setembro, afirma igualmente que “… ficou demonstrado pela entidade gestora do Hospital de Cascais Dr. José de Almeida que este detém uma capacidade instalada suficiente e com disponibilidade para responder às necessidades em saúde de 75 000 utentes de forma eficaz, eficiente, sustentável e com qualidade, disponibilizando um número de médicos detentores da especialidade em medicina geral e familiar, passível de garantir os cuidados de saúde primários...” . Ora é particularmente intrigante que o Hospital de Cascais tenha capacidade instalada para acolher mais 75 mil utentes, numa área de cuidados que não é aquela a que se dedica, ou seja, a dos cuidados hospitalares.
Da Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2024, de 30 de setembro, não resulta claro que os cuidados médicos prestados o serão por especialistas em Medicina Geral e Familiar, nem sequer se o contrato passa pela atribuição de médico de família a cada utente, ou se visa apenas a disponibilidade de consultas de recurso indiferenciadas e sem qualquer seguimento continuado. Nesse sentido não parecem estar garantidas atividades essenciais como a saúde materna, a vigilância da gravidez, a saúde infantil, o acompanhamento de doenças crónicas ou os cuidados domiciliários.
As necessidades dos 75 mil utentes são apenas referenciadas à existência na Entidade Gestora da PPP de disponibilidade de médicos, sendo que a prestação de cuidados primários de saúde envolve outros profissionais, como enfermeiros, técnicos de saúde de várias especialidades, para além de administrativos e técnicos auxiliares de saúde.
Não há qualquer referência ao local de prestação dos cuidados, desconhecendo-se se será nas instalações no Hospital de Cascais, obliterando a proximidade que caracteriza os cuidados primários de saúde, nos próprios centros de saúde, ou noutras instalações. Não se vislumbra qualquer mecanismo de fiscalização da execução deste contrato, bem como da qualidade dos cuidados.
Apesar do muito que fica por esclarecer com esta Resolução do Conselho de Ministros n.º 131/2024, de 30 de setembro, o que é absolutamente claro é que o Governo quer entregar milhões de euros à Entidade Gestora da PPP de Cascais, sem qualquer coerência, preparação ou preocupação com a qualidade dos cuidados prestados. E sobretudo sem qualquer ação no sentido de tomar as medidas efetivamente necessárias para garantir cuidados primários de saúde às populações, isto é, a melhoria das condições de remuneração, carreira e de trabalho dos profissionais do SNS.
Assim, ao abrigo das disposições legais e regimentais, solicitamos ao Governo, através do Ministério da Saúde, os seguintes esclarecimentos:
1 - Qual a fundamentação legal e contratual, designadamente no âmbito do Código dos Contratos Públicos, para a efetivação desta prestação de serviços?
2 - Esta contratação, tendo em conta os seus valores, vai ser sujeita a visto prévio do Tribunal de Contas?
3 - Como se coordenará esta atividade com os restantes serviços do SNS, tendo em conta que esta população se reparte por duas unidades locais de saúde, para além de estar abrangida pelo Hospital de Cascais?
4 - A prestação de cuidados médicos vai ser assegurada em exclusivo por especialistas em Medicina Geral e Familiar?
5 - Está considerada a intervenção de enfermeiros e outros profissionais de saúde presentes nos cuidados primários? Em que termos?
6 - Vão ser assegurados os cuidados de saúde materna, vigilância da gravidez, saúde infantil, acompanhamento de doenças crónicas, cuidados domiciliários ou outros previstos na contratualização com as unidades públicas de cuidados primários de saúde?
7 - Cada utente será atribuído a um médico de família ou trata-se de consultas avulso?
8 - Quando vai estar disponível o relatório da UTAP referido pelo Comunicado do Conselho de Ministros?
9 - Como se compatibilizam os valores dos custos referidos nesse Comunicado com os valores previstos na Portaria 207/2017, de 11 de julho?
10 - Os médicos com vínculo ao Hospital de Cascais, seja de contrato de trabalho, de prestação de serviços ou outros estarão impedidos de exercer esta nova atividade, conforme estipula o contrato da PPP?
11 - Assim sendo, quem são os médicos que vão exercer estas novas funções e que constituem “ a capacidade instalada suficiente e com disponibilidade” referida na Resolução do Conselho de Ministros?
12 - Onde está previsto na Resolução o modelo USF B referido no Comunicado do Conselho de Ministros?
13 - E que instalações vão ser prestados os cuidados de saúde primários a estes utentes?
14 - Que parâmetros, mecanismos e entidades estão previstos para a fiscalização deste contrato pelo Estado?
15 - Confirma o Governo a sua intenção de prolongar este contrato pelo menos para o ano de 2025?