Intervenção de

Sobre a aplicação da Lei da IVG - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Declaração política denunciando os obstáculos à aplicação da lei que despenalizou até às 10 semanas a interrupção voluntária da gravidez, nomeadamente as insuficiências do Serviço Nacional de Saúde e o número de objectores de consciência, e criticando a actuação da Região Autónoma da Madeira



Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Quando a Assembleia da República aprovou, ao fim de décadas de injustiça legal, a lei que despenalizou até às dez semanas a interrupção voluntária da gravidez, já sabíamos que muitas batalhas haveria ainda a travar para que o recurso a unidades de saúde para interromper a gravidez em segurança estivesse ao alcance de todas as mulheres.

Isso mesmo ficou desde logo claro com o conteúdo da mensagem do Presidente da República, espécie de guião para a regulamentação, a que os sectores que não se conformaram ainda com a despenalização do aborto se agarraram como náufrago a tábua de salvação.

Sabíamos também que o combate a este grave problema de saúde pública que é o aborto clandestino enfrentaria, como a generalidade das necessidades de saúde dos portugueses, as insuficiências de um Serviço Nacional de Saúde cada vez mais depauperado por políticas economicistas e privatizadoras.

Sabíamos ainda que alterada a lei, havia ainda que criar as condições para que as mulheres, já não podendo ser perseguidas criminalmente, se libertassem também de uma censura social igualmente pesada e injusta que em muitas situações, contextos e regiões continua a existir, até fomentada pelas campanhas de culpabilização dos opositores da alteração da lei.

Sabíamos que, tal como procuraram fazer na campanha eleitoral, os detractores da nova lei procurariam diabolizar os gastos do Serviço Nacional de Saúde com a sua aplicação, sempre escondendo que o Estado deixará de arcar com os enormes encargos das consequências do aborto clandestino.

Tudo começou com a tentativa, encabeçada aliás por alguns responsáveis clínicos por sinal objectores de consciência nesta matéria, com a tentativa de influenciar negativamente a regulamentação da lei. Era a afirmação peremptória de incapacidade dos serviços de receberem mulheres fora das suas áreas de influência, procurando negar um aspecto fundamental para muitas mulheres, que é o de poderem recorrer ao aborto em hospital fora da sua área de residência.

Ao mesmo tempo punha-se em causa a confidencialidade dos dados dizendo que teria de haver um registo, procurando assim intimidar as mulheres receosas de conhecimento público da sua opção. Como se a confidencialidade equivalesse a ausência de registo ou anonimato perante os serviços e não, como em qualquer situação de saúde, ao dever de sigilo de todos os profissionais que lidam com o caso.

Felizmente estas e outras tentativas não tiveram sucesso e a regulamentação da lei e demais orientações produzidas pela Direcção Geral de Saúde, pautaram-se pelo equilíbrio e pelo respeito da lei, sendo adequadas, sem prejuízo de futuros acertos que venham a revelar-se úteis, à sua aplicação.

A aplicação prática e a preparação dos serviços esbarrou e continua a esbarrar com incompreensões do novo quadro legal, quando não criação de obstáculos. A prestação de informações erradas e o encaminhamento indevido para outros serviços, como aconteceu em pelo menos um caso do hospital de Setúbal que oportunamente denunciámos bem demonstram a incompreensão que continua a existir em muitas unidades, face à nova realidade.

Foi depois também o estranhamente elevado número de objectores de consciência ao nível da classe médica, a contrastar por exemplo com os 35 enfermeiros que comunicaram à respectiva ordem que se encontravam nessa situação. Sobre este aspecto e sempre respeitando o direito à objecção de consciência eu a lei aliás garante, importa fazer três comentários.

O primeiro para dizer que, ao contrário do que foi insistentemente veiculado há uns dias atrás, a lei estabelece claramente que a objecção de consciência vale para todo o lado e não apenas para os serviços públicos. Diz explicitamente a lei:
“ Uma vez invocada a objecção de consciência, a mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o objector preste serviço.”

Em segundo lugar importa dizer que é indispensável uma rigorosa fiscalização desta matéria, bem como uma exemplar punição dos que hipocritamente objectarem no serviço público para depois aceitarem no privado. Aos que como nós sempre defenderam a despenalização do aborto, designadamente pelo acesso aos serviços públicos, repugna profundamente tal frieza negocista.

E finalmente, perante a declaração de uma espécie de objecção de consciência de algumas unidades privadas de saúde, como se a objecção de consciência não fosse uma opção estritamente pessoal e individual, e por isso não aplicável a uma empresa, julgamos ser exigível que esse factor seja ponderado na celebração de acordos com o SNS. Não se trata de obrigar essas unidades a fazê-lo. Mas já parece mais discutível que o Estado celebre uma convenção na área da cirurgia obstectrica com uma entidade que se recusa a fazer uma parte dos actos dessa especialidade.

Temos agora a questão da Região Autónoma da Madeira. Sobre isso é preciso dizer em primeiro lugar que se trata de um problema político e não de um problema jurídico. O que se passa é que o Governo Regional da Madeira quer obstaculizar ao máximo a aplicação da nova lei na Região, que é o mesmo que dizer que quer continuar a manter as mulheres madeirenses sujeitas a indignas condições se decidirem recorrer ao aborto, excepto claro as que tiverem recursos para o fazer no continente ou no estrangeiro.

A primeira e inacreditável argumentação era no sentido de não aplicar a lei tendo em conta a pendência de pedidos de fiscalização sucessiva de constitucionalidade no Tribunal Constitucional. De tão estapafúrdia a tese acabou por cair pela base, desmentida até por constitucionalistas que estão contra a actual lei.

Gorado este argumento eis que surge a questão do financiamento. O Governo Regional fez publicar uma portaria em que afirma não assumir os encargos do recurso à interrupção da gravidez nos serviços de saúde regionais encaminhando as mulheres para a linha saúde 24. Já hoje um jornal diário relata a reposta, aliás incompreensível deste serviço ao dizer que não atende mulheres da Madeira e isto depois de no início do mês a Direcção Geral de Saúde ter sugerido às mulheres que quisessem obter informação sobre a aplicação da nova lei, que consultassem a linha saúde 24.

Há coisas que têm de ficar bem claras.

A lei é nacional, aplica-se sem excepção a todo o país e não está suspensa ou limitada na sua aplicação por qualquer fiscalização de constitucionalidade.

A lei aplica-se igualmente à Região Autónoma da Madeira e atribui às mulheres madeirenses, tal como a todas as outras mulheres portuguesas ou residentes em Portugal, a possibilidade de recorrerem a serviços de saúde públicos ou autorizados para interromper a gravidez. O Governo Regional pode não estar de acordo com uma lei da República mas tem de cumpri-la.

Finalmente a questão do financiamento. O Governo Regional invoca falta de meios o que é incompreensível perante uma questão que não terá certamente um peso significativo e que pode evidentemente ser negociada adiante. Note-se aliás que não se ouviu da Região Autónoma dos Açores qualquer impedimento à aplicação da lei por razões deste tipo.

Mas o Ministério da Saúde não pode continuar a hesitar nesta matéria. Tem de garantir que, tal como qualquer mulher de qualquer ponto do país, também qualquer mulher madeirense pode recorrer a uma unidade credenciada para interromper a gravidez.

E tem de criar as condições para que esse recurso esteja o mais rapidamente possível disponível na Madeira, dando assim plena aplicação à lei aprovada.

Certamente a batalha pela aplicação justa e plena da lei que despenalizou a interrupção Voluntária da Gravidez não ficará por aqui. Cá estaremos para continuar este combate pela dignidade das mulheres e pelo seu direito à saúde que tantos continuam ainda a querer negar.

Disse.

(...)

Sr. Presidente,

Quero começar por agradecer as perguntas que me foram formuladas.

Respondendo, em primeiro lugar, à Sr.ª Deputada Ana Catarino Mendonça, devo dizer que concordo com a generalidade do que disse, mas penso que há aqui uma responsabilidade do Ministério da Saúde, porque o Ministério tem de intervir, pelo menos, em três planos.

Primeiro: compete ao Ministério da Saúde clarificar que a linha Saúde 24, tal como recomendou a Direcção-Geral de Saúde, tem de responder também às mulheres das regiões autónomas para todos os efeitos, e especificamente para este da interrupção da gravidez.

Segundo: o Ministério da Saúde tem de clarificar, de uma vez por todas, que, tal como uma mulher que reside em Bragança, em Faro, em Évora, em Portalegre ou em qualquer sítio do País, as mulheres madeirenses também se podem dirigir à unidade de saúde que entenderem para procurar fazer a interrupção da gravidez. Até agora, houve hesitações do Governo nesta matéria.

Terceiro: há que clarificar a questão do financiamento, para retirarmos as mulheres deste impasse, em que também o Governo central tem responsabilidades.

Diz bem a Sr.ª Deputada da correcção da regulamentação. Aliás, a regulamentação aplica-se aos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos e não apenas aos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, o que inclui, evidentemente, os estabelecimentos dos serviços regionais de saúde das regiões autónomas, que não podem ficar de fora desta regulamentação.

Sr. Deputado Guilherme Silva, percebo que V. Ex.ª queria ver aqui discutida a questão do financiamento das regiões autónomas - da Região Autónoma da Madeira - e não a da saúde das mulheres.

Já aqui trouxemos muitas vezes a questão do financiamento das regiões autónomas e até votámos contra a proposta de lei de finanças regionais a que o Sr. Deputado se referiu, mas nós não confundimos a

saúde das mulheres e o direito de verem aplicada uma lei (que lhes diz profundamente respeito) também na Madeira com questões de financiamento, que, sendo importantes, não são neste momento para aqui chamadas.

O que está em causa, Sr. Deputado Guilherme Silva, é a saúde das mulheres na Madeira e a possibilidade de poderem ter acesso à interrupção da gravidez de forma segura e acompanhada clinicamente.

O que o Sr. Deputado depois fez, mais uma vez, foi o populismo de ligar a questão da natalidade à questão da interrupção da gravidez. Vou dar uma novidade ao Sr. Deputado: as mulheres que não conseguem ter acesso à interrupção da gravidez de forma segura não têm esses filhos, vão fazer abortos clandestinamente.

Ora, a opção que o Governo Regional da Madeira está a dar às mulheres madeirenses é a de continuarem a ter o aborto clandestino como realidade, em vez de terem, como todas as outras mulheres do País, o direito a recorrer à interrupção da gravidez de forma segura e enquadrada clinicamente.

Sr. Deputado Guilherme Silva, para V. Ex.ª a saúde das mulheres madeirenses tem de ter um preço; para nós a saúde de todas as mulheres, incluindo as mulheres madeirenses, não tem preço e deve ser sempre assegurada.

 

 

  • Saúde
  • Assembleia da República
  • Intervenções