O SNS é a pedra angular da garantia do direito à saúde

A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 64.º, estabelece que "Todos têm direito à protecção da saúde". Esta disposição responde de forma clara e inequívoca à pergunta central deste debate: a saúde é um direito ou um negócio? Para o PCP, para a Constituição, para diversas forças sociais e políticas, para muitos democratas, para a maioria dos profissionais de saúde e, acima de tudo, para os utentes, a saúde é um direito essencial à dignidade humana e a uma sociedade justa e solidária, não uma mercadoria.

Para tal, é essencial a existência de um Serviço Nacional de Saúde robusto, tal como existe em Portugal há cinco décadas. O SNS é a pedra angular da garantia do direito à saúde. Sem ele, este direito não se concretizará. É urgente valorizá-lo, recuperá-lo e travar a sua degradação. Quanto mais o SNS recua, maior é o sucesso do negócio privado.

Vivemos num momento particularmente difícil para o SNS. O governo anterior do PS iniciou um caminho de degradação do SNS e de privatização da saúde, que o atual governo acelera. Está em curso uma operação de grande escala, subordinada à estratégia lucrativa dos grupos económicos que transformam a doença em negócio. 

Para salvar e recuperar o SNS é necessário e fundamental valorizar os profissionais, aumentar a capacidade de resposta dos serviços, organizar melhor o seu funcionamento e com isso responder melhor às populações. Mas também são necessárias e urgentes medidas excepcionais, como o PCP apresentou em Abril passado.

Uma emergência para enfrentar a falta de atracção do SNS para muitos profissionais, em particular os mais qualificados.

A estratégia em curso ao longo dos últimos anos está a dar resultados. Anos sucessivos de, quase sempre, desvalorização do salário real, bloqueio ou limitação na progressão na carreira ou até ausência dela e, em simultâneo, de aumento da carga de trabalho e degradação das condições em que o mesmo é feito.

Ora é com este caminho que é preciso romper e abrir outro rumo, o rumo da valorização das carreiras profissionais, do aumento da remuneração base, em particular com a opção de dedicação exclusiva que garanta, entre outros direitos, um acréscimo de 50% nessa remuneração.

O rumo necessário, as respostas necessárias não passam pelo aumento da carga de trabalho, com ainda mais horas extra, com suplementos para aceitar mais utentes na lista ou incentivos temporários para um determinado período, não é assim que se atraem mais profissionais de saúde, mas é assim que se afastam ainda mais profissionais e dessa forma se favorece o negócio do sector privado.

O SNS tem problemas de organização, e há muito que assim é. Caminhos errados na falta de autonomia das instituições, impossibilidade real de resolver coisas correntes ou essenciais, sempre dependentes de autorizações da tutela ou do Ministério das Finanças, que tardam sempre e em muitos casos não chegam a vir. Caminhos errados que se refletem na ausência de gestão democrática e na escolha transparente das direcções.

É urgente a autonomia das instituições de saúde e das suas administrações, responsabilizando-as pelos resultados a obter, assim como caminhar para que os primeiros dirigentes das instituições do SNS passem a ser escolhidos por concurso, sendo os restantes eleitos pelos seus pares, como até já aconteceu no passado. Há de facto problemas de organização, mas os problemas do SNS estão para lá disso.

Há falta de recursos humanos que empurra as administrações para a contratação de prestadores de serviços a preços muito superiores e com uma evidente diminuição da qualidade dos cuidados prestados.

Há subfinanciamento crónico que leva a atrasos de pagamento aos fornecedores e daí ao aumento dos custos.

Há falta de investimento, que leva à degradação das condições de atendimento, de trabalho e de equipamentos.

A evidência do errado caminho seguido é o facto de os últimos 10 anos terem sido os únicos desde há 60 anos em que não se aumentou a capacidade dos hospitais públicos em camas hospitalares.

Diminuíram-se 4000 camas com o processo de concentração dos centros hospitalares e agora está à vista a falta que elas fazem para internar doentes, ou para a retaguarda de cirurgias e tratamentos. E é um escândalo que hospitais públicos que reduziram o número de camas estejam agora a contratar camas ao privado.

Para resolver os problemas é preciso garantir os recursos necessários e uma melhor organização, desde que se tenha em conta a realidade e o objectivo do SNS.

Uma boa articulação entre cuidados primários e cuidados hospitalares é essencial para uma melhor gestão de recursos e para uma resposta mais atempada e adequada aos utentes. Mas neste momento em concreto, as Unidades Locais de Saúde, sem resolver os problemas da falta de profissionais, da escassez de investimento ou do subfinanciamento, na prática põem os hospitais a comandar os centros de saúde, concentram ainda mais os serviços, afastando-os das populações.

Os cuidados de Saúde primários são o elemento central da resposta a dar, desde logo pelo acesso a médico de família. É possível, assegurar médico de família a todos os utentes. Para o Governo, a solução para este problema passa pela cedência de 800 mil utentes, ao privado. Isto não é solução, isto é negócio. 

A solução está nas medidas de incentivo à integração ou regresso ao Serviço Nacional de Saúde, com melhores condições para os profissionais de saúde. É assim que vamos responder até ao final de 2025 aos mais de 1 milhão e 600 mil utentes sem médico de família.

A saúde não se compadece com intermitência. É preciso garantir mais proximidade dos serviços, e pôr fim aos encerramentos permanentes ou intermitentes de serviços.

A questão não é saber o que está fechado e a que dias, a solução é manter abertos atendimentos prolongados e permanentes nos centros de saúde, acessíveis em todo o território.

O PCP não afasta que de forma temporária e superlativa, os utentes que não possam esperar mais, possam recorrer a prestadores privados. Mas isso é diferente dos objectivos do Governo, que o que pretende é reenviar para reavaliação nos cuidados primários de saúde todos os utentes em lista de espera para cirurgias consideradas de prioridade normal, o que quer dizer que estas pessoas, pelo menos durante uns meses, não constarão da lista de espera dos hospitais, sem que isso signifique que tenham sido operadas.

É possível criar as condições para que o SNS, com mais meios, responda às listas de espera para cirurgias e às consultas que se acumulam. Mas o Governo olha para esta situação não como uma possibilidade de reforçar o SNS, mas sim como mais uma oportunidade de ouro para quem faz da doença um negócio, com a transferência de recursos e a eliminação administrativa de milhares de utentes de listas de espera, na sequência do Governo anterior. Entre Junho de 2023 e Março de 2024 desapareceram 300 mil utentes dos cuidados primários de saúde e aí estão em preparação mais 130 mil nos próximos meses. 

Também na Saúde, o País tem seguido um rumo contrário à Constituição que faz com que hoje o pagamento directo dos cuidados de saúde recaia sobre as famílias em cerca de 30%, o que equivale a quase 8 mil milhões de euros por ano. Entre 2013 e 2022, em estabelecimentos privados de saúde e medicamentos, as famílias aumentaram os seus gastos em mais de 170%. Para poucos, isso não é um problema; mas para a maioria é um enorme sacrifício, endividamento ou empenho das poupanças de anos e, em demasiados casos, é simplesmente inacessível.

O negócio prosperou, mas para a maioria das pessoas, o acesso à saúde piorou. O SNS não pode ser uma central de compras para o sector privado. Onde assim foi e é, os resultados estão à vista.

Diminuição da qualidade, aumento dos custos para o Estado, desvalorização da prevenção em saúde, incapacidade para fiscalizar os serviços contratados, selecção adversa de doentes, entre muitos outros problemas.

Não é possível garantir o acesso à saúde da população se o SNS continuar a ser esmagado por restrições à despesa pública, ao mesmo tempo que se transfere uma parcela cada vez maior do orçamento público para o sector privado. Se o bolo não cresce e a fatia do privado é cada vez maior, o que resta para o SNS é evidentemente cada vez menos.

A direita propagandeia os seguros de saúde, dizendo que mais de 3 milhões de pessoas já os têm, escondendo que esse número não corresponde à realidade e sobretudo procurando ignorar que a sua participação nos custos de prestação de cuidados de saúde é de 4,3%, pouco mais do que insignificante.

O SNS não pode continuar a ser esmagado por restrições à despesa pública, ao mesmo tempo que se transfere uma parcela cada vez maior do orçamento para o sector privado. É essencial garantir mais força social para a defesa do SNS. Esta é uma batalha fundamental que necessita da convergência de todos os que defendem verdadeiramente o direito à saúde e o SNS como seu garante fundamental.

A defesa do SNS precisa da luta das populações, dos profissionais de saúde, de todos os trabalhadores, dos reformados e pensionistas. Da parte do PCP, estamos de corpo inteiro nessa luta e contamos com todos para este caminho indispensável para o nosso povo e para o regime democrático.