Projecto de Lei

O Sistema de Informações da República Portuguesa e o regime do segredo de Estado

 

Regula o modo de exercício dos poderes de fiscalização da Assembleia da República sobre o Sistema de Informações da República Portuguesa e o regime do segredo de Estado

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Preâmbulo

A forma como o Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República reagiu à existência de suspeitas de que dois Magistrados do Ministério Público encarregados da investigação de um processo politicamente melindroso terão sido investigados ilegalmente pelo SIS veio colocar de novo na ordem do dia a questão da fiscalização democrática do funcionamento do SIRP. Perante tais suspeitas, o Conselho de Fiscalização limitou-se a ouvir os responsáveis máximos pelos Serviços, e deu o assunto por encerrado. É de toda a evidência que, se perante quaisquer suspeitas sobre o funcionamento dos Serviços, o Conselho de Fiscalização se limitar a ouvir os seus responsáveis máximos, nenhuma fiscalização digna desse nome é exercida. Esta evidência impõe-se em relação a todo e qualquer processo, e neste caso, nenhuma suspeita foi dissipada.

A questão que assim mais uma vez se coloca é a do modelo de fiscalização do SIRP por parte da Assembleia da República, que se relacionada directamente com uma outra questão, que é a do acesso da Assembleia da República a matérias classificadas como segredo de Estado.

O presente Projecto de Lei propõe-se regular essas duas questões, que assumem uma transcendente importância democrática.

A primeira questão tem sido objecto de grande e justificada controvérsia ao longo dos anos. O regime de fiscalização parlamentar do Sistema de Informações da República Portuguesa não é feito directamente através da Assembleia da República, como seria adequado, mas através da interposição de um Conselho de Fiscalização do SIRP, integrado por três personalidades que são indicadas por acordo entre os dois partidos com maior representação parlamentar.

A experiência do regime de fiscalização instituído não tem sido edificante e tornou-se mesmo um factor de desprestígio do próprio regime democrático. Ao longo de muitos anos, o Conselho de Fiscalização foi marcado pela sucessiva demissão dos seus membros, pela instabilidade da sua composição e funcionamento, pela falta de acordo dos dois partidos quanto à sua composição, que conduziram a vários anos de inexistência de fiscalização do Sistema. Mas mesmo em momentos de existência formal, o Conselho limitava-se a apresentar à Assembleia da República um relatório meramente formal onde referia tão só a sua convicção de que no ano em referência não teria detectado qualquer violação da lei ou da Constituição por parte dos Serviços de Informações.

De momento, a composição do Conselho de Fiscalização está estabilizada, e há razões para crer, tendo em conta o perfil das personalidades que o integram, que exista uma maior preocupação com a qualidade dos relatórios a apresentar à Assembleia da República. Mas, como os recentes acontecimentos demonstraram, isso não altera o essencial. E o essencial é que por via da existência de um Conselho de Fiscalização com as características do actual, a Assembleia da República abdica de exercer directamente uma função de primordial importância democrática, que é a fiscalização dos Serviços de Informações da República.

A Assembleia da República, enquanto órgão de soberania, não se restringe aos dois maiores partidos. Os deputados dos dois maiores partidos não têm uma legitimidade superior à dos restantes. Nem o Parlamento se reduz à maioria parlamentar, nem a oposição se reduz ao grupo parlamentar mais numeroso da oposição. Não há fiscalização parlamentar democrática de coisa nenhuma quando uma parte do Parlamento é pura e simplesmente excluída do exercício dessa fiscalização.

Importa por isso repensar de novo o modo de fiscalização parlamentar dos Serviços de Informações.

A proposta que o PCP apresenta, através do presente Projecto de Lei, faz assentar a fiscalização parlamentar do SIRP na existência, junto do Presidente da Assembleia da República, de uma instância por si presidida, e que integra os Presidentes dos Grupos Parlamentares, bem como os Presidentes das Comissões Parlamentares de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, de Defesa Nacional e de Negócios Estrangeiros. Trata-se de uma instância parlamentar situada ao mais alto nível de responsabilidade, tendo em conta o tipo de funções que lhe são confiadas.

Esta instância teria ao seu cargo, no essencial, as funções que estão hoje cometidas ao Conselho de Fiscalização do SIRP e à Comissão de Fiscalização do Segredo de Estado, a qual, apesar de ter sido criada na Lei n.º 6/94, de 7 de Abril (ou seja, há quinze anos), nunca deu qualquer sinal da sua existência.

Assim, esta instância a funcionar junto do Presidente da Assembleia da República, exerceria funções de fiscalização do SIRP, nos termos adiante explicitados, e asseguraria também as condições de acesso, por parte do Parlamento, a matérias classificadas como segredo de Estado.

O artigo 156.º da Constituição determina que os Deputados têm o direito de requerer e obter do Governo ou dos órgãos de qualquer entidade pública os elementos, informações e publicações oficiais que considerem úteis para o exercício do seu mandato (alínea e)), bem como de fazer perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública e obter resposta em prazo razoável, salvo o disposto na lei em matéria de segredo de Estado (alínea d)).

Ora a Lei do Segredo de Estado (Lei n.º 6/94, de 7 de Abril) não regula em que termos a Assembleia da República pode ter acesso a matérias abrangidas pelo segredo de Estado.

Se é perfeitamente justificável que o acesso dos Deputados a documentos e informações classificados como segredo de Estado seja restringido, tendo em conta os interesses de segurança interna e externa do estado que a lei visa proteger, já não se afigura curial que essa restrição não seja, também ela, restrita e devidamente fundamentada, apenas em função dos interesses protegidos. Esta ressalva é tanto mais necessária porquanto, como se sabe, toda a actividade do Sistema de Informações da República Portuguesa se encontra coberta ope legis pelo regime do segredo de Estado.

Assim, é de admitir que, perante um requerimento apresentado por um ou mais Deputados, de acesso a informações na posse do SIRP, as informações solicitadas possam ser fornecidas sem que daí decorra perigo para a segurança interna ou externa do Estado. Se assim for entendido, tratar-se-á tão só de acautelar as medidas de salvaguarda do grau de confidencialidade que o Governo e o Secretário-geral do SIRP considerem adequado.

Mas é de admitir também que o segredo de Estado seja invocado para recusar o acesso às informações solicitadas. Nesse caso, para além de se exigir um acto expresso de recusa devidamente fundamentado, também é de admitir que a Assembleia da República enquanto órgão de soberania competente para fiscalizar a actividade do Governo e da Administração - e já não apenas um Deputado individualmente considerado - possa considerar que a fundamentação aduzida não é suficiente e pretenda solicitar esclarecimentos adicionais.

Neste último caso, a instância adequada para fazer valer essa pretensão deve ser a Instância de Controlo do SIRP cuja criação o PCP propõe. O Presidente da Assembleia da República, ouvida a Instância, e mediante solicitação de algum dos seus membros, poderia solicitar ao Governo esclarecimentos adicionais acerca dos motivos da recusa de acesso a determinados documentos ou informações classificadas. Esses esclarecimentos deveriam ser prestados por escrito ao Presidente da Assembleia da República, ou presencialmente junto da Comissão, por um membro do Governo ou pelo Secretário-geral do SIRP, conforme indicação dada pelo Primeiro-Ministro.

Note-se que não se propõe que haja uma derrogação do regime do Segredo de Estado. Esse seria sempre salvaguardado. Do que se trata é de encontrar um mecanismo efectivo, mediante o qual a Assembleia da República, enquanto órgão plural, possa fiscalizar a boa aplicação do regime do Segredo de Estado, designadamente por parte do Sistema de Informações da República Portuguesa.

Se a Lei n.º 6/94, de 7 de Abril, determina no seu artigo 1.º que o regime do segredo de Estado obedece aos princípios da excepcionalidade, subsidiariedade, necessidade, proporcionalidade, tempestividade, igualdade, justiça e imparcialidade, bem como ao dever de fundamentação, importa encontrar uma forma de fiscalizar minimamente o respeito por esses princípios. O que, na verdade, não está a acontecer. Sendo que, para bem da democracia, é indispensável que aconteça.

Acresce que, embora o problema do acesso da Assembleia da República a matérias classificadas como segredo de Estado tenha sido reconhecido pelos dois maiores partidos, que apresentaram inclusivamente iniciativas legislativas com o objectivo de alterar o actual regime legal, não é menos verdade que não houve da parte do PS e do PSD qualquer vontade de fazer avançar o respectivo processo legislativo. É muito significativo que os projectos de lei n.º 102/X do PSD e n.º 473/X do PS tenham sido aprovados na generalidade há cerca de um ano e não tenha havido qualquer iniciativa dos proponentes no sentido de promover a respectiva discussão na especialidade.

Essa é mais uma razão justificativa da apresentação do presente projecto de lei por parte do PCP.

Nestes termos, O Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º

Objecto

A presente lei regula o modo de exercício dos poderes de fiscalização da Assembleia da República sobre o Sistema de Informações da República Portuguesa e o regime do segredo de Estado.

Artigo 2.º

(Instância de Controlo do SIRP)

1. Para os efeitos previstos na presente lei é criada junto do Presidente da Assembleia da República a Instância de Controlo Parlamentar do Sistema de Informações da República Portuguesa e do regime do segredo de Estado, adiante designada por Instância de Controlo.

2. A Instância de Controlo é presidida pelo Presidente da Assembleia da República e integra ainda:

  • a) Os Presidentes dos Grupos Parlamentares;
  • b) O Presidente da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias;
  • c) O Presidente da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional;
  • d) O Presidente da Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros.

3. A presidência da Instância de Controlo com as funções que lhe são inerentes pode ser delegada no Vice-Presidente da Assembleia da República pertencente ao partido maioritário.

Artigo 3.º

Atribuições e competências

1. A Instância de Controlo tem por atribuições assegurar o acompanhamento e a fiscalização parlamentar da actividade do Secretário-Geral do SIRP e dos serviços de informações, bem como da aplicação do regime do segredo de Estado, velando pelo cumprimento da Constituição e da lei, particularmente no que se refere à fiscalização parlamentar dos actos do Governo e da Administração e à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.

2. Compete em especial à Instância de Controlo no âmbito da fiscalização do SIRP:

  • a) Apreciar os relatórios de actividades de cada um dos serviços de informações;
  • b) Receber do Secretário-Geral do SIRP, com regularidade bimensal, lista integral dos processos em curso, podendo solicitar e obter, no prazo que determinar, os elementos que considere necessários ao cabal exercício dos seus poderes de fiscalização;
  • c) Tomar conhecimento dos despachos emitidos ao abrigo do artigo 5.º da Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa;
  • d) Conhecer, junto do Primeiro-Ministro, os critérios de orientação governamental dirigidos à pesquisa de informações e obter do Conselho Superior de Informações os esclarecimentos que entender sobre questões de funcionamento do SIRP;
  • e) Efectuar visitas de inspecção, com ou sem aviso prévio, ao Secretário-Geral e aos serviços de informações, destinadas a observar e a colher elementos sobre o seu modo de funcionamento e actividades;
  • f) Solicitar elementos constantes dos centros de dados que entenda necessários ao exercício das suas competências ou ao conhecimento de eventuais irregularidades ou violações da lei;
  • g) Propor a realização de procedimentos inspectivos, de inquérito ou sancionatórios em razão de ocorrências cuja gravidade o justifique;
  • h) Proceder à audição de qualquer entidade que considere necessário para o cumprimento das suas atribuições;
  • i) Exercer as competências previstas nos artigos 5.º a 7.º da presente lei em matéria de fiscalização da aplicação do regime do segredo de Estado.
  • j) Conhecer e apreciar as propostas de orçamento do SIRP, e acompanhar e fiscalizar a respectiva execução, recebendo e podendo solicitar os elementos necessários ao cabal desempenho desses poderes.

3. O regime do segredo de Estado não é oponível à Instância de Controlo, não lhe podendo ser recusado por nenhuma entidade o acesso às informações ou documentos que solicite, competindo-lhe acordar com as entidades detentoras das informações solicitadas as medidas adequadas para a salvaguarda da sua confidencialidade.

4. As atribuições e competências da Instância de Controlo são aplicáveis às actividades de produção de informações das Forças Armadas.

Artigo 4.º

Funcionamento

1. A Instância de Controlo reúne ordinariamente uma vez por mês e extraordinariamente sempre que convocada pelo Presidente da Assembleia da República por sua iniciativa ou a solicitação de qualquer dos seus membros.

2. O Gabinete do Presidente da Assembleia da República garante o apoio técnico, logístico e administrativo indispensável ao funcionamento da Instância de Controlo

Artigo 5.º

Acesso a documentos e informações sob segredo de Estado

1. A recusa de acesso a documentos e informações solicitadas por Deputados com fundamento em segredo de Estado tem de ser expressa e acompanhada de informação a enviar ao Presidente da Assembleia da República e aos Deputados requerentes sobre os seguintes elementos:

  • a) Indicação da entidade que procedeu ao acto de classificação;
  • b) Duração e prazo de caducidade do acto de classificação;
  • c) Fundamentação invocada para a classificação com indicação dos interesses a proteger e dos motivos ou circunstâncias que a justificaram.

2. Em caso de recusa de acesso a documentos e informações solicitadas por Deputados com fundamento em segredo de Estado, o Presidente da Assembleia da República deve dar conhecimento da recusa e respectiva fundamentação à Instância de Controlo, que pode pronunciar-se sobre a matéria a pedido de algum dos seus membros.

3. Se a Instância de Controlo considerar a recusa injustificada, solicita que a informação ou documento em causa lhe seja entregue directamente e procede ao seu encaminhamento para o Deputado requerente, informando-o previamente dos termos em que tais informações podem, ou não, ser publicitadas.

4. A Instância de Controlo pode determinar que os documentos ou informações entregues nos termos do presente artigo não sejam publicados no Diário da Assembleia da República ou em qualquer outra forma de publicitação de acesso geral, e pode exigir dos destinatários a declaração, sob compromisso de honra, de que se comprometem a guardar a confidencialidade das informações nos termos em que tal lhes seja solicitado.

5. Os documentos e informações são fornecidos directa e pessoalmente aos requerentes pelo Presidente da Assembleia da República, mediante a prestação do compromisso referido no número anterior.

Artigo 6.º

Prestação de informações na posse do SIRP

1. Tratando-se de documentos e informações classificados como segredo de Estado nos termos da Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa a recusa de acesso a documentos e informações solicitadas por Deputados deve ser expressa e fundamentada em parecer do Secretário-geral do Sistema de Informações da República, com indicação dos interesses que essa recusa visa proteger, sendo correspondentemente aplicável o disposto nos números 2 a 5 do artigo anterior.

2. Se o Secretário-Geral do Sistema de Informações da República, em parecer fundamentado, entender que o acesso aos documentos ou informações em causa não põe em risco a segurança interna ou externa do Estado, o Primeiro-Ministro pode autorizar o seu fornecimento aos Deputados requerentes, podendo solicitar a aplicação das medidas de salvaguarda referidas no artigo anterior.

3. Nos casos previstos no número anterior, os documentos ou informações solicitados são enviados ao Presidente da Assembleia da República, que procede à sua entrega nos termos solicitados, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 5 do artigo anterior. 

Artigo 7.º

Apreciação da recusa de acesso a documentos ou informações

1. Na apreciação dos fundamentos da recusa de acesso a documentos ou informações nos termos da presente lei a Instância de Controlo pode solicitar ao Governo a prestação de esclarecimentos adicionais acerca dos fundamentos da recusa do acesso a documentos e informações classificados como segredo de Estado.

2. Os esclarecimentos solicitados são prestados por escrito ao Presidente da Assembleia da República ou, por determinação deste, presencialmente, em reunião da Instância de Controlo, pelo membro do Governo que o Primeiro-Ministro designar para o efeito.

3. O Primeiro-Ministro pode solicitar a audição de qualquer membro do Governo por si indicado pela Instância de Controlo para prestar esclarecimentos, por sua iniciativa, sobre a recusa de fornecimento de documentos e informações classificados como segredo de Estado.

4. Nos casos previstos no número anterior a Instância de Controlo não pode tomar qualquer decisão antes da realização da audição solicitada.

5. Se os esclarecimentos versarem sobre documentos ou informações na posse do Sistema de Informações da República Portuguesa, podem ser prestados pelo respectivo Secretário-geral, se o Primeiro-Ministro assim o determinar.

Artigo 8.º

Responsabilidade

Quem tenha acesso a documentos e informações classificados como segredo de Estado por aplicação da presente lei fica obrigado ao dever de sigilo, sendo responsável nos termos da lei pela sua violação.

Artigo 9.º

Norma revogatória

1. São revogados:

  • a) Os artigos 13.º e 14.º da Lei n.º 6/94, de 7 de Abril.
  • b) Os artigos 8.º a 13.º da Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa na redacção que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 4/2004, de 6 de Novembro.

2. São eliminadas todas as referências legais ao Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa e à  Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado.

Assembleia da República, em 4 de Março de 2009

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