De repente, e aliás com um alto patrocínio que, a nosso ver, é discutível e seria dispensável, lá regressou o tema da chamada "reforma do sistema político" que parece estar hoje transformada numa espécie de palavra-passe, embora suspeitemos que, entre os deslumbrados por ela, haverá desde os que sabem muitíssimo bem ao que andam até aos que, para além da repetição acrítica da fórmula mágica, nem fazem grande ideia do que ela poderá conter.Nesta matéria, a hipocrisia e a superficialidade são tão patentes e tão perigosas que não vale a pena usarmos punhos de renda.E assim, com a ressalva de que há sempre aperfeiçoamentos e mudanças no sistema político que podem e devem ser responsavelmente debatidas, ponderadas e eventualmente adoptadas, queremos começar por dizer que nos parece muito estranho que, entre os tenores da "reforma do sistema político", apareçam curiosamente muitos dos que mais têm contribuído para desacreditar e desprestigiar a política e a vida política, seja pela demagogia, pelo incumprimento de promessas, pela política-espectáculo e pelo clientelismo, seja pelo fomento da erosão de valores e da desagregação de referências, pela irradiação de generalizações tão abusivas quanto letais e por um frenesim político-mediático tributário da espuma dos dias e em que quase tudo se esquece e quase nada se aprende.Depois não só não achamos graça nenhuma como sobretudo nos parece um caminho bem pouco proveitoso para a necessária resposta a problemas reais - e alguns deles muito inquietantes - que se derive de uma reflexão prioritária sobre a natureza e carácter das políticas e sobre as suas consequências para uma predominante responsabilização do "sistema político". Também registamos a forma como grande parte dos "media" faz coro pela "reforma do sistema político", dá conselhos e lança advertências aos partidos nesta matéria, num estranho esquecimento de que os órgãos de informação são hoje uma componente decisiva do sistema político "real", têm uma influência no curso da vida política e na formação da opinião dos cidadãos certamente superior à dos partidos, a tal ponto que um dia destes alguém vai aparecer a reclamar a "reforma do sistema mediático", o que não deixará de causar grande escândalo e inflamadas indignações.Quanto ao "pacote" anunciado para a milagrosa e redentora "reforma do sistema político", basta citar duas matérias para se perceber que o celofane pode parecer atraente ou inocente mas já alguns conteúdos são bem perversos.Desde logo, o propósito - convergente entre PSD e PS - de alterar a lei eleitoral para a Assembleia da República e de reduzir o número de deputados ( medida que tem sempre efeitos mais negativos sobre a representação dos partidos mais pequenos), designadamente com a criação de círculos uninominais.De facto, a criação deste tipo de círculos pressionaria no sentido de uma ainda maior concentração de votos no PSD e no PS, entalaria os eleitores entre duas "bipolarizações" - uma, por cima, sustentada na falácia da eleição para Primeiro-Ministro e outra, por baixo, ao nível do círculo de residência do eleitor-, e que, contrariamente ao propagandeado, só poderão criar uma maior distância entre eleitos e eleitores uma vez que, em cada círculo uninominal, até poderá haver uma maioria de eleitores que não tenha votado no candidato vencedor, nele não se reconheça e dele não queira ficar próximo.E como a França agora é muito falada e, a propósito das suas últimas eleições, também se fala muito de "fracasso do sistema político", relembre-se que o sistema eleitoral francês se baseia precisamente em círculos uninominais, o que deveria bastar para arrefecer alguns entusiasmos e fazer cessar algumas ligeirezas de análise. Abra-se aqui um parentêsis para salientar que os comunistas já salientaram com toda a clareza a necessidade de, no novo quadro político marcado pelo regresso da direita ao governo, se reforçar a cooperação e a convergência entre os partidos de oposição.Mas não adianta imaginar que será uma pequena coisa ou que causará diminutos prejuízos a essa perspectiva a consumação do anunciado entendimento entre PSD e PS nesta matéria de alteração da lei eleitoral para a AR que é - sublinhe-se - um terreno vital da nossa democracia representativa. Por fim, queremos ainda falar dessa nova coqueluche do discurso político que é o "financiamento exclusivamente público dos partidos" e que traz consigo a novidade de vermos conhecidos defensores do "privado" e inimigos do "público" a tornar, neste caso, o "privado" detestável e o "público" magnífico.Não queremos ofender ninguém, mas ver tanta gente, de partidos a órgãos de informação, de comentadores a dirigentes partidários, passando pelo inevitável Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, a defender aquela solução só pode querer dizer que ou não conhecem o valor das palavras ou, pura e simplesmente, passaram-se! Com efeito, estando já proibido o financiamento dos partidos por empresas e existindo já severas limitações e regras para os donativos de particulares, vir defender o "financiamento exclusivamente público" dos partidos é querer transformar os partidos em Ministérios ou repartições de Estado, torná-los absolutamente dependentes das desiguais dotações do Orçamento de Estado que lhes coubessem e impedi-los de angariar, nos termos e com os limites da lei em vigor, as receitas próprias necessárias ao soberano desenvolvimento da sua actividade. Acessoriamente falta saber que prestigio é que, no actual clima de opinião pública, esta proposta traria aos partidos e como é que se coaduna com a proclamada política de "contenção da despesa pública" . É certo que o Ministro Marques Mendes disse numa televisão que, neste caso, se trataria de "peanuts" (amendoins). Pois é, diga Marques Mendes quanto é que o PSD e o PS gastaram nas últimas legislativas e logo o país ficará a saber de quantos cargueiros com amendoins se trata.