Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral, Tribuna Pública «Reforçar o SNS, garantir saúde para todos»

«Se queremos preservar o Serviço Nacional de Saúde precisamos de lutar por ele»

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O Serviço Nacional de Saúde, uma das principais conquistas da Revolução de Abril, é o principal instrumento para concretizar um direito essencial a qualquer ser humano – o direito a ter acesso a cuidados de saúde adequados, o direito a ter uma vida saudável.

É verdade que o SNS atravessa tempos difíceis, sofre de limitações graves, fruto de décadas de políticas que o fragilizaram, mas que ninguém se deixe enganar pela propaganda dos que o querem destruir; quem continua a prestar o fundamental dos cuidados de saúde à população é o Serviço Nacional de Saúde. São os seus centros de saúde e hospitais, são os seus profissionais de saúde que todos os dias dão resposta à grande maioria das necessidades de saúde dos portugueses e o fazem independentemente da condição económica e social de cada um. 

É que no SNS não há clientes nem objectivos de lucro a atingir, mas sim utentes e populações que têm de ser atendidos seja qual for a patologia, o seu custo ou a sua complexidade. É que, ao contrário do que acontece com os hospitais dos grupos económicos, em que gerem para facturar o mais possível só com o tratamento das doenças, no SNS trabalha-se não só para tratar as doenças, mas para as prevenir, para promover a saúde dos indivíduos, das famílias e da comunidade em geral. Para os grupos económicos privados o que dá lucro é a doença; para o SNS o que é importante é que cada um viva o mais possível saudável e com qualidade de vida.

Mas não há como esconder que há problemas sérios no Serviço Nacional de Saúde. Eles não acontecem por acaso. São o resultado de muitos anos de desinvestimento, subfinanciamento e sobretudo de degradação da situação dos profissionais de saúde ao mesmo tempo que existiu uma forte aposta dos grupos privados da saúde nos últimos anos na sua capacidade e instalações.

Os vários governos e também o actual sabiam e não podiam deixar de saber, que ao desvalorizarem as carreiras, ao desrespeitarem os profissionais, ao desorganizarem os serviços estavam a contribuir para os empurrar para fora do SNS e a tornar os serviços públicos menos atractivos para os jovens profissionais que se vão anualmente formando.

De outra forma como poderiam os grupos económicos privados ter conseguido desviar do SNS para as suas unidades tantos profissionais de saúde, se estes não se encontrassem num cenário de desvalorização das remunerações, de desrespeito pelos seus direitos, de elevadas cargas de trabalho e sem perspectiva de uma real progressão na carreira e valorização do seu estatuto profissional.

O Governo assistiu passivamente ao aumento do número de utentes sem médico de família de 700 mil para cerca de um milhão e 300 mil em menos de três anos sem que tivesse tomado qualquer medida para travar esta situação. Só no concelho de Sintra haverá 120 mil pessoas sem médico de família, situação cuja gravidade se repete noutros locais, em particular na Área Metropolitana de Lisboa.

Assistiu à carência acentuada de outras especialidades médicas como anestesistas ou obstetras. Assistiu à crescente entrega de serviços de urgência a profissionais contratados à tarefa, através de empresas de colocação de mão de obra, ganhando à hora muito mais do que os profissionais do quadro dos hospitais. 

Alguns dos que afirmaram não compreender o voto contra do PCP na proposta de Orçamento apresentada pelo Governo em Outubro de 2021 podem agora constatar com a realidade concreta como tínhamos razão. A exigência de medidas urgentes - designadamente na valorização dos profissionais de saúde -, para defender o SNS, foi uma das três questões incontornáveis que colocámos ao Governo nessa altura – sem qualquer resposta positiva.

O Governo assistiu a tudo e não tomou as medidas necessárias para começar a inverter esta grave situação. E a conclusão a tirar só pode ser uma: o Governo sabia que o resultado da sua inércia seria desastroso e quis que assim fosse. Sabia que o resultado seria o enfraquecimento do SNS e um campo aberto para o sector privado e quis que assim fosse.

Os anúncios de medidas feitos pelo Governo na área da saúde, em grande parte de concretização ainda bastante indefinida, mostram que continua a atirar ao lado no que diz respeito às medidas que se exigem e impõem. Mais ainda, o que já se conhece do Estatuto do SNS aprovado pelo Governo constitui um evidente recuo em relação à nova Lei de Bases de Saúde aprovada em 2019, incluindo opções legislativas que estão longe de ser a solução para os problemas da saúde.

O problema da falta de médicos de família não se resolve com a contratação de médicos indiferenciados, desvalorizando a especialidade de medicina geral e familiar, mas sim com a valorização desta carreira nos centros de saúde, tal como a dos enfermeiros e outros profissionais.

O problema do acesso aos cuidados primários de saúde não se resolve substituindo as consultas presenciais por consultas telefónicas, mas garantindo a presença de médicos e enfermeiros de família; nem é suficiente criar mais aplicações informáticas para o atendimento administrativo, é mesmo essencial contratar mais trabalhadores nesta área para atender as populações.

O problema das urgências hospitalares não se resolve com mais contratação de tarefeiros, nem impedindo as pessoas, que não têm mais nenhuma alternativa quando estão doentes, mesmo que com pouca gravidade, de lá irem. E também não se pode resolver com o encerramento de mais serviços de urgência, sejam obstétricas, pediátricas ou gerais, afastando ainda mais as populações das respostas a que têm direito. Resolve-se garantindo as condições para atrair e reter mais especialistas nos hospitais públicos e assegurando às populações uma resposta efectiva para os casos de doença aguda, mas não grave, nos cuidados primários de saúde.

O problema geral da falta de médicos não se resolve com uma proposta como a da chamada “dedicação plena”, com contornos ainda pouco conhecidos, mas em que já se percebe que o eventual acréscimo de remuneração é à custa de mais horário de trabalho e da sobrecarga das funções destes profissionais.

Ao não tomar medidas eficazes o Governo está deliberadamente a permitir a degradação do SNS e a favorecer os grupos privados da saúde. É que estes grupos não só garantem boa parte do seu financiamento com transferências do Serviço Nacional de Saúde (cerca de 40% da despesa corrente), como prosperam tanto mais quanto maiores forem as dificuldades do SNS. E o que o Governo se prepara para fazer é entregar mais uma fatia do SNS ao privado, apresentando essa opção como uma falsa inevitabilidade.

Mas não há nenhuma inevitabilidade neste caminho. É possível reforçar o SNS e assim fortalecer o direito à saúde da população. 

Se o Governo quiser reforçar o SNS, o que tem a fazer é pôr fim ao seu subfinanciamento, bem patente no défice previsto de mais de mil e cem milhões de euros este ano de 2022. 

Se quer de facto valorizar o SNS, o que tem a fazer é melhorar as remunerações dos seus profissionais, garantir uma efectiva progressão na carreira e aplicar medidas urgentes como a proposta do PCP de dedicação exclusiva, com um aumento de 50% da remuneração base, a bonificação do tempo de serviço para uma mais rápida da progressão na carreira e outros apoios.

Se quer de facto melhorar os cuidados primários de saúde tem em primeiro lugar de garantir que toda a população tem acesso a médico e enfermeiro de família. Tem de pôr fim à enorme diferenciação entre os utentes (e também os profissionais) que estão em Unidades de Saúde Familiares e aqueles que estão nas unidades restantes. Na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados que funciona aqui ao lado 90% dos quase 19 mil utentes não tem médico de família o que é inaceitável. 

Se o Governo quer defender o Serviço Nacional de Saúde, tem de garantir - tal como propõem o Conselho Nacional de Saúde e a Comissão para a reforma da Saúde Pública nomeada pelo próprio Governo -, uma verdadeira reforma da área da saúde pública, cuja importância a epidemia de COVID-19 veio sublinhar, garantindo-lhe efectivamente mais meios e profissionais para as funções estratégicas que desempenha. Melhor teria sido que o Governo PS tivesse concretizado as medidas que desde 2015 o PCP tem vindo sistematicamente a propor, muitas delas aprovadas em deliberações da Assembleia da República ou incluídas no Orçamento do Estado, e que consecutivamente não foram aplicadas.

Se o Governo quer de facto valorizar o SNS, não pode continuar a adiar investimentos nas instalações das unidades de saúde e nos equipamentos clínicos necessários, evitando aliás mais despesa com aquisição de serviços aos privados.

O caso deste concelho de Sintra é aliás uma situação singular. É que está em construção uma nova unidade hospitalar, que aliás no fundamental não é financiada pelo Ministério da Saúde, mas que já se sabe não irá dar resposta às principais necessidades. O que está em construção, uma unidade com valências insuficientes e apenas com 60 camas de internamento, é totalmente desajustado para a população do segundo concelho mais populoso do País. O que se perspectiva, claro, é que se continue a comprar serviços aos hospitais privados que aqui existem, em vez de investir esses recursos nos hospitais públicos.

Uma coisa é certa. Se queremos preservar o Serviço Nacional de Saúde precisamos de lutar por ele. Se é certo que cada vez mais se confirma o alinhamento do Governo PS, com o forte apoio da direita, com os interesses dos grupos privados de saúde, é a luta dos profissionais de saúde e das populações que pode travar esse objectivo e reverter a situação de degradação actual.

Por todo o País se verificam iniciativas de utentes, das populações exigindo o que é seu direito. Serem atendidos e acompanhados nos centros de saúde e hospitais do SNS. Também os profissionais e as suas organizações representativas têm vindo a acentuar a sua luta pelos direitos destes trabalhadores que é em si mesmo uma luta pela garantia de melhores cuidados de saúde para a população.

O Governo tem de ouvir este clamor. Tem de arrepiar caminho e apostar no reforço do SNS e na garantia de saúde para todos. Não é só uma necessidade humana incontornável, é uma necessidade de desenvolvimento do nosso País de toda a sociedade.

As populações e os profissionais de saúde podem contar com o PCP. Podem contar com a nossa determinação na defesa desta conquista de Abril – o Serviço Nacional de Saúde –, que é património do nosso povo que não pode ser hipotecado aos interesses de um punhado de privilegiados. O direito à saúde que a Constituição consagra tem que vencer, mas só vai vencer, só vai ser garantido com a nossa intervenção e luta. É para isso que aqui estamos. É essa a nossa determinação!