Síndroma dos Balcãs - Artigo de Rui Namorado Rosa*

25 de Janeiro de 2001

 

A progressiva consciencialização da natureza da intervenção da NATO nos Balcãs e das consequências graves e duradouras que dela resultaram têm abalado a opinião pública na Europa. Mas o que pode ser surpresa para o público em geral não pode de modo algum ser aceite como surpresa para os poderes políticos e militares que decidiram e conduziram as intervenções na Jugoslávia, em particular na Bósnia e no Kosovo.

Desde o início da era nuclear, por altura da Segunda Guerra Mundial, são bem conhecidos os riscos e as precauções em lidar com o urânio e outras substâncias radioactivas. Por isso a comunidade internacional considerou então necessário criar a Agência Internacional da Energia Atómica para salvaguardar a segurança dos trabalhadores e das populações e para coordenar o desenvolvimento de programas nucleares e das aplicações pacíficas da energia nuclear. A revelação da utilização de urânio empobrecido em munições aquando da Guerra do Golfo surgiu, pois, como chocante "inovação" militar. De facto o urânio (empobrecido ou natural, para esse efeito tanto faz) era reconhecidamente um elemento altamente tóxico (química e radiologicamente tóxico) quando inalado ou ingerido e, também, geneticamente perigoso. Manifestações dessa sua acção tóxica e genética vieram a revelar-se, progressiva a dramaticamente, tanto nos veteranos da Guerra do Golfo como sobretudo nas populações civis no Iraque. A utilização desse mesmo tipo de armas já testadas no Golfo, de novo e agora no teatro de Guerra nos Balcãs, quando já eram patentes os efeitos que estavam a manifestar-se em resultado dessa utilização no Golfo, não permite qualquer dúvida sobre a premeditação do efeito que se pretendia alcançar ou do preço que se pretendia fazer pagar às populações civis e tolerar às tropas no terreno. A utilização de urânio, alegadamente como material estrutural, em munições cinéticas penetrantes omite o facto de que ele é também e sobretudo um agente altamente tóxico. Se o efeito pretendido fosse, efectivamente, o elevado poder penetrante das munições, teriam sido usadas armas com outros materiais que desse ponto de vista são superiores, designadamente o tungsténio, munições com tungsténio de que os países da NATO também dispõem. A razão publicamente assumida pela NATO é pois uma falsa razão que pretende esconder o seu verdadeiro propósito. A conclusão que infelizmente se extrai é que as munições utilizadas nos Balcãs, como também no Golfo, são de facto armas de Guerra Química. Mais sinistras do que as até hoje utilizadas, pois que o urânio nessas munições penetrantes se vaporiza e dispersa como um aerosol, contaminando ar, solo e água, impossível de recuperar, mantendo a sua agressividade química e radiológica por tempo praticamente interminável. É então uma arma química de efeito retardado. A propaganda da Guerra Limpa com "armas cirúrgicas", que supostamente por tal seria uma Guerra "boa", não só é moralmente inaceitável porque todas as Guerras são sujas e más, como se revela e descobre ser uma monstruosa mistificação. Os levantamentos radiológicos feitos posteriormente no teatro da Guerra, exibindo baixos níveis de radiação externa, comprovam o pior cenário possível. Comprovam que após os impactos (com objectivos de munições penetrantes) o urânio foi efectivamente vaporizado e rapidamente dispersado no ambiente, como seria o propósito da sua utilização enquanto arma química de efeito retardado.

Crime contra a Humanidade

Tal tipo de arma é eticamente repugnante. Contaminado um território, após o que seria o fim da Guerra, a doença e a morte permanecem. É pois uma Guerra que condena gerações futuras. A sua utilização é um crime contra a Humanidade. Indignamo-nos justamente com os riscos e os danos sofridos pelos nossos soldados. Mas os riscos e os danos sofridos e a sofrer pelos povos dos Balcãs desprotegidos são ainda muito maiores, assumindo a dimensão de genocídio. Por outro lado, a utilização dessas armas não deixará de inspirar uma corrida a esse tipo de armamento, de fabrico relativamente acessível, contribuindo assim para ameaçar ainda mais a segurança internacional e a Paz entre os povos. Corrida que a iniciativa leviana ou criminosa da NATO veio "legitimar" aos olhos de outros potenciais agressores. As contradições entre altos responsáveis políticos e militares dos países da NATO, a sua "suposta" mas "inaceitável" ignorância dos impactos reais do uso do urânio nestas armas, preocupam profundamente a opinião pública que se considera manipulada e abusada. Perante a crescente evidência da fraude de que foi objecto a opinião pública dos países da União Europeia e da dimensão do crime cometido sobre populações civis inteiras, as responsabilidades desses altos responsáveis têm de ser investigadas e avaliadas, por entidades independentes e idóneas, até às suas raízes mais fundas. Os organismos competentes das Nações Unidas e da União Europeia devem pronunciar-se, designadamente a Agência Internacional de Energia Atómica, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, a Organização Mundial de Saúde e a EURATOM. Esta é uma matéria em que as sociedades científicas e as associações profissionais de trabalhadores científicos devem ser escutadas. A ética e a responsabilidade social dos cientistas deverão contribuir para esclarecer e aproximar o conhecimento e a intervenção dos seus concidadãos perante factos e circunstâncias com que estes são confrontados pela primeira vez.. O Partido Comunista Português, que se opôs à intervenção da NATO nos Balcãs, é contrário ao envio de mais soldados portugueses para aquele cenário de Guerra. Lamenta profundamente o sofrimento que a intervenção estrangeira adicionou aos problemas políticos dos Balcãs e sente-se solidário com o sofrimento dos seus povos. E defende o dever de a União Europeia contribuir activamente na reconstrução desses países e no alívio e na recuperação dos graves problemas de saúde pública herdados pelos seus povos. A realidade presente vem confirmar e realçar a nossa razão ao apelarmos, uma vez mais, à dissolução da NATO e ao tomarmos, de novo, uma posição inequívoca contra o projecto de militarização da União Europeia. É para nós claro que esse não é o caminho para alcançarmos o entendimento entre os povos e garantirmos a segurança e a soberania das nações europeias.

(*) Professor universitário e investigador da antiga Junta de Energia Nuclear. Intervenção feita em 16 de Janeiro último, em Estrasburgo, na Audição de Grandes Testemunhos sobre os Balcãs promovida pelo Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica do Parlamento Europeu.

  • Soberania, Política Externa e Defesa
  • Central
  • Artigos e Entrevistas