Este debate de urgência é mais um não assunto de que o Chega se serve para ter mais umas horas de tempo de antena nas televisões e desviar a Assembleia da República dos assuntos que realmente preocupam os portugueses e que são aqueles com que esta Assembleia se deveria preocupar.
Em todo o caso, e já que este debate foi agendado, importa dizer duas coisas:
Primeira, que não acompanhamos os termos em que o Presidente da República suscitou a questão das reparações históricas. Não faz sentido que se levante um problema como o das reparações de forma tão ligeira e superficial e ainda faz menos sentido uma anunciada intenção de liderança de um processo que nem sequer está colocado pelos governos das ex-colónias portuguesas.
Segunda, que no seguimento das declarações do Presidente da República temos assistido a manifestações de chauvinismo que, iludindo a verdade histórica, visam dar crédito e reabilitar a mitologia colonial, branquear o fascismo, reescrever a História e apagar e desvalorizar o que a Revolução de Abril representou de libertação dos povos das ex-colónias e do povo português.
A História de Portugal, nomeadamente o período iniciado com as navegações marítimas do século XV, tem diferentes dimensões que é preciso considerar.
Houve um avanço em vários domínios. Foi o primeiro passo no desenvolvimento de um novo sistema social – o capitalismo - em rutura com o sistema de servidão feudal dominante na Europa. Alargou o conhecimento científico e técnico contra o obscurantismo e visões limitadas do conhecimento do mundo. Permitiu descobrir realidades existentes, mas desconhecidas no plano mundial. Promoveu o intercâmbio e a fusão de conhecimentos e culturas.
Mas se esta evolução representou um contributo positivo e um avanço para a humanidade, há uma outra face marcada pela violência e com dramas imensos para outros povos que não pode ficar na sombra.
A ação do regime fascista para sustentar a sua natureza iníqua procurou puxar por uns elementos da História e omitir outros. A par da valorização de acontecimentos e processos que se inserem na marcha de progresso da civilização humana, não se pode contemporizar com o branqueamento do colonialismo, da escravatura e do fascismo.
Cada momento histórico da longa marcha dos povos é marcado por contradições profundas, por grandezas e misérias, por momentos de glória e de tragédia, por factos que condenamos e por factos de que nos orgulhamos.
Não nos orgulhamos da escravatura e do colonialismo, mas orgulhamo-nos dos avanços civilizacionais, técnicos e científicos ligados às navegações marítimas. Não nos orgulhamos da dominação de outros povos para benefício das classes dominantes, mas orgulhamo-nos da língua portuguesa ser hoje a mais falada no hemisfério sul. Não nos orgulhamos do fascismo, mas orgulhamos-mos dos que ousaram enfrentá-lo sacrificando a sua liberdade e a sua vida. Não nos orgulhamos dos massacres de Batepá e Wiriamu, mas orgulhamo-nos dos militares de Abril que souberam interpretar as aspirações do povo português e pôr fim às guerras coloniais que sacrificaram milhares de vidas.
A luta contra o fascismo e o colonialismo uniu os povos de Portugal e das antigas colónias. A Revolução de Abril e o estabelecimento de relações de amizade e cooperação entre o Portugal democrático e os países libertados da dominação colonial, corresponderam à reparação histórica que se impunha.
A reparação histórica que se impõe prosseguir é a da cooperação no apoio ao desenvolvimento, sem paternalismos, num quadro de relações de igualdade, de reciprocidade de vantagens, de respeito pelas soberanias, tirando partido da nossa herança multicultural comum.
O fascismo e o colonialismo uniram-nos no sofrimento e na luta. A Revolução de Abril e a descolonização uniram-nos na construção de uma comunidade de países e povos irmãos.
Disse.