Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Regula o modo de exercício dos poderes de controlo e fiscalização da Assembleia da República sobre o Sistema de Informações da República Portuguesa e o segredo de Estado

(projecto de lei n.º 27/XII/1.ª)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
A situação que envolve hoje os serviços de informações da República portuguesa obriga-nos a colocar na ordem do dia o debate sobre o respectivo modelo de fiscalização.
Hoje, perante os factos que são conhecidos por via da comunicação social e que exigem manifestamente uma averiguação por parte da Assembleia da República acerca do que se terá passado, ou não, em torno dos serviços de informações da República, por forma a garantir a sua credibilidade perante o País, parece evidente que a Assembleia da República tem uma responsabilidade constitucional que não pode alienar mas, hoje, depara-se com obstáculos legais muito sérios ao seu exercício. Isto tem a ver quer com o modelo de fiscalização dos serviços de informações que foi adoptado quer com o regime legal do segredo de Estado,
aprovado em 1994, e que se afigura hoje manifestamente inadequado.
Relativamente ao segredo de Estado, é uma evidência que a Comissão de Fiscalização do Segredo de Estado, que foi criada na lei em 1994, nunca funcionou. Ao longo de mais de 17 anos, a Assembleia da República criou um órgão que deveria ser altamente responsável mas que efectivamente nunca existiu. O Conselho de Fiscalização do Serviço de Informações tem-se revelado, até à data, verdadeiramente ineficaz, ao ponto de estarmos hoje confrontados com uma situação que exige de facto um apuramento do que efectivamente se passou de anómalo com o serviço de informações e com a impossibilidade legal de a Assembleia da República investigar, devido à invocação do segredo de Estado e à falta de um mecanismo legal que permita ultrapassar esta mesma invocação.
Daí que o PCP proponha que o Conselho de Fiscalização e a Comissão para a Fiscalização do Segredo de Estado sejam substituídos por uma instância de fiscalização da própria Assembleia da República, situada ao mais alto nível de responsabilidade desta Assembleia.
Perante a invocação por parte do Governo — sublinho por parte do Governo, porque não abrangemos nesta iniciativa legislativa a classificação de matérias como segredo de Estado pelo Presidente da República — como segredo de Estado de uma matéria que a Assembleia da República entenda dever ser investigada, deve ser alvo de justificação por parte do Governo, a qual deve ser ponderada por uma instância ao mais alto nível, que envolva, segundo a nossa proposta, o Presidente da Assembleia da República, os líderes parlamentares e os Presidentes da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, de Negócios Estrangeiros e de Defesa Nacional.
Será a este nível que se deve ponderar a eventual quebra do segredo de Estado, com a adopção das medidas adequadas, para que em caso algum seja posta em causa a segurança do Estado.
Entendemos que esta forma de responsabilização da Assembleia ao mais alto nível pela aplicação do regime do segredo de Estado e pela fiscalização dos serviços de informações da República permitiriam que esta Assembleia pudesse cumprir cabalmente as suas funções constitucionais de fiscalização da actividade do Governo e da Administração Pública, possuindo mecanismos que a generalidade dos parlamentos democráticos detém relativamente aos respectivos governos e aos respectivos serviços de informações.
Permitia, por outro lado, restaurar a credibilidade dos serviços de informações da República, que está neste momento profundamente abalada, sem que a existência de um Conselho de Fiscalização, nos moldes em que actualmente existe, possa resolver esse problema.
Entendemos que deve haver um debate sério sobre esta matéria e que as propostas que apresentamos devem ser apreciadas — fazemos um apelo nesse sentido — por todas as forças políticas sem preconceitos, com sentido de responsabilidade e no espírito de procurar encontrar as melhores soluções para a democracia, para o Estado de direito e para o País.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Ouvimos com toda a atenção as objecções que foram feitas ao nosso projecto de lei por parte dos Srs. Deputados de vários grupos parlamentares e queria fazer algumas considerações acerca dessas objecções.
Em primeiro lugar, o Sr. Deputado Telmo Correia fala em preconceitos de princípio, dizendo que o CDS não tem preconceitos de princípio contra a existência de segredo de Estado e contra a existência de serviço de informações.
Sr. Deputado, se nós tivéssemos preconceitos de princípio não tínhamos apresentado um projecto de lei sobre o segredo de Estado em 1993, quando o actual regime foi aprovado. Quando o actual regime foi aprovado também havia um projecto de lei do PCP sobre o segredo de Estado e também não tínhamos apresentado, em 2004, um projecto de lei-quadro dos serviços de informações.
Portanto, nós preconceitos de princípios não temos, pensamos é que os serviços de informações têm de ser democraticamente fiscalizados! Essa é que é outra questão, porque quem tem preconceitos de princípios são os senhores quando dizem que o PCP não pode ter acesso à fiscalização dos serviços de informação, porque é comunista!…
Esse é que é o problema! Os senhores pensam que deve haver serviços de informações e nós também, só que nós pensamos que as forças democráticas representadas no Parlamento têm de ter possibilidade de, de alguma forma, exercer os seus poderes parlamentares de fiscalização e os senhores pensam que só os partidos do Governo é que têm acesso à fiscalização dos serviços de informações.
Portanto, quanto a preconceitos estamos conversados!
A Sr.ª Deputada Teresa Leal Coelho questionava o momento e dizia: «Bom, este não é o momento», e a expressão é minha, «porque há muita poeira no ar sobre os serviços de
informações».
Sendo assim, tenho de perguntar, então, qual é o momento, porque, por uma busca rápida que fiz no motor de pesquisa da Assembleia da República, verifiquei que esta é a nona vez que o PCP traz ao Plenário da Assembleia da República a discussão sobre o problema da fiscalização dos serviços de informações.
Fê-lo pela primeira vez, em Junho de 1993, depois em Outubro de 1994, depois em Outubro de 1995, em Novembro de 1998, em Outubro de 1999, em Junho de 2004, em Maio de 2007 e em Março de 2009.
E das duas uma: ou a questão não é oportuna, porque se fala muito no serviço de informações e não se pode legislar «a quente», ou então a questão não é oportuna porque não se passa nada, ninguém fala disso e, portanto, qual é a necessidade de alterar seja o que for?…
Ou seja, somos «presos por ter cão» e «presos por não ter»!…
Mas os senhores dizem: «Bom, agora não vale a pena estarmos a legislar sobre esta matéria». Então, o que é que se passa? Passa-se que andam listas de compras a «passear» pela comunicação social, dizendo que aquilo é a listagem das comunicações telefónicas de um jornalista que foram detectadas e vigiadas pelo SIEDE… Andam emails a «passear» pelo ar, a falar de metais preciosos, a falar de empresários russos, tudo alegadamente feito no âmbito do SIEDE…
E na opinião pública a reacção que existe quanto a isto é a seguinte: quem se preocupa com as coisas está preocupado; os serviços de informações são motivo de preocupação para as pessoas que se preocupam com a saúde do Estado de direito democrático, mas para quem não se preocupa são motivo de chacota!
E o que a opinião pública não compreende — e muito justamente — é como é que a Assembleia da República pode ficar impávida e serena perante uma situação destas!
Pode ser invocado o segredo de Estado e a Assembleia da República diz: «Paciência! Está invocado o segredo de Estado, não podemos fazer nada, porque não vale a pena alterarmos um mecanismo legal que permita à Assembleia da República ter acesso a matérias em segredo de Estado»…
Isso é o que os senhores aqui vêm dizer!
Disse o Sr. Deputado Ricardo Rodrigues que discorda da junção dos regimes de fiscalização do segredo de Estado e dos serviços de informações, mas o problema, Sr. Deputado, é que a lei é que junta esses dois regimes ao considerar que toda a informação na posse dos serviços de informações é por definição legal segredo de Estado.
Ora, se a Assembleia da República não tem um mecanismo de fiscalizar a aplicação do segredo de Estado, não tem forma nenhuma de fiscalizar eficazmente os serviços de informações!
E, depois, é preciso lembrar que os senhores e o PSD criaram, em 1994, uma comissão de fiscalização do segredo de Estado que «se procura»…! Dizia-se no far west «procura-se morto ou vivo»… Bom, neste caso «procura-se» alguém que saiba, alguém que esclareça onde é que está essa comissão!…
Isto é saudável para o regime democrático? Não é! E não é aceitável que seja criada uma comissão e que 17 anos depois não se saiba o que é feito dela.
Sr. Presidente, para concluir, há um argumento que foi usado por vários Srs. Deputados e que tem a ver com o problema da legitimidade democrática. Dizem-nos que o conselho de fiscalização tem toda a legitimidade democrática, porque ele é eleito por maioria, porque é eleito por uma maioria qualificada.
Eu diria a este respeito que evidentemente não se contesta que a democracia funcione segundo a regra da maioria, mas não é menos verdade que o que caracteriza fundamentalmente a democracia e a distingue de regimes autoritários não é o facto de decidir por maioria, mas é o facto de respeitar as minorias, e de reconhecer que os Deputados que aqui estão têm todos, e cada um, a mesma legitimidade democrática, e que um Deputado do PSD, do PS ou do CDS não tem mais legitimidade popular do que um Deputado do PCP, do BE ou de Os Verdes para exercer todos, mas todos, os poderes de fiscalização democrática que a Constituição lhe confere!!
Portanto, não é aceitável do ponto de vista democrático, que se diga que «estes senhores, porque não pensam como nós, porque não têm relativamente a nós a mesma concepção dos serviços secretos, ficam impedidos de fiscalizar a idoneidade democrática dos serviços de informações da República.» Isto é que não é aceitável! Isto é que não é minimamente democrático!
Quanto aos Srs. Deputados que dizem que o mecanismo ou a instância que propomos tem muita gente, chamo a atenção para os parlamentos que têm, precisamente, comissões parlamentares especializadas para a fiscalização dos serviços de informações.
Os Srs. Deputados consideram que isso é menos democrático?!
E, Sr. Deputado Telmo Correia, são muito mais Deputados do que aqueles que propomos, não têm o mesmo nível de responsabilidade na orgânica do Parlamento, em comparação com o que propomos, e têm comissões parlamentares. E não é por isso que é posta em causa a segurança dos respectivos Estados!
O que sucede é que PS e PSD querem continuar a fazer dos serviços de informações uma «coutada» destes dois partidos que alternam na governação do País, algumas vezes com a ajuda do CDS. Isto é que não é aceitável, não credibiliza a democracia nem credibiliza os serviços de informações!

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