Regionalização
Intervenção de Luís Sá
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
O debate e a votação que aqui vai decorrer corresponde a uma
situação complexa. Ocorre com atraso e na sequência da publicação de uma lei de
revisão constitucional que veio criar um quadro complicado de instituição das regiões,
depois de o Primeiro Ministro ter declarado que em Dezembro deste ano elegeríamos todos
os órgãos de poder local, incluindo as regiões administrativas.
O que criticamos deste quadro é a subalternização dos
municípios. Em vez de um referendo orgânico, em que a última palavra caberia aos
municípios e em que haveria toda a flexibilidade para as diferentes alterações, teremos
um quadro de um duplo referendo, em que o voto de uma parte do território mais populosa
pode esmagar a vontade de regiões em que a votação favorável até possa ser de 80% ou
90%. Com efeito, não se trata de substituir o voto das assembleias municipais por um
referendo regional. Trata-se antes de um duplo referendo, cuja pergunta nacional já está
a ser adulterada pela direita, a qual procura também criar novas dificuldades com a
imposição de 50% de participação do eleitorado e na imposição do voto dos
emigrantes. E no caso da questão dos 50% o Governo apressou-se a desautorizar deputados
do PS e a facilitar a trapalhada que a direita pretende. E depois das constantes
cedências à direita, o PS vai agora também procurar nestes partidos os aliados para
aprovar o regime do referendo.
Ao mesmo tempo, entretanto, estamos conscientes que cumprimos hoje
aqui uma etapa no caminho da retoma de uma importante tradição histórica. Com efeito,
ao longo da História da Administração Pública existiram divisões regionais com base
nas quais foi definida a área de actuação territorial da Administração Pública. E
desde a Revolução Liberal houve estruturas intermédias eleitas entre o município e a
Administração Central. A excepção ocorreu, em geral, nos períodos de ditadura e
centralismo autoritário. No regime fascista, aliás, os próprios presidentes de câmaras
eram nomeados pelo Governo central. Seria essa, na opinião do regime de então, a única
forma de garantir a unidade nacional, de assegurar a competência dos presidentes, de
impedir conflitos. Foi contra argumentos e mentalidades deste tipo que se fez o 25 de
Abril. O que está agora em causa é também, fundamentalmente, dotar de legitimidade
democrática eleitoral e de racionalidade poderes que já existem, já estão instalados
na periferia, mas não respondem pelos seus actos perante as populações.
Nos últimos tempos, ouvindo falar o PSD e o PP e alguns
auto-intitulados líderes de opinião parece que os defensores da regionalização seriam
uns irresponsáveis e quase uns criminosos. A verdade é que apenas estão a defender que
a Constituição se cumpra e trata-se de uma disposição constitucional contra a qual
muitos dos que contestam a regionalização não se manifestaram no momento próprio. E
sobretudo estão a defender um projecto com raízes históricas profundas, ao contrário
do que se afirma, e uma das aspirações constantes das autarquias depois do 25 de Abril.
Aspiração que foi aprofundada ao suportar tanto centralismo, burocracia e ingerências e
ao deparar com assimetrias e necessidades de desenvolvimento a que os municípios não
podem ocorrer, nem por si nem associados.
A verdade é que há muitas e sólidas razões para defender as
regiões. Destaco agora algumas, que são fundamentais.
Primeira: a regionalização é um factor de democratização. Com
efeito, a todos os níveis de poder, da freguesia aos órgãos de soberania, existem
órgãos democraticamente eleitos. Ora, a nível regional também existem órgãos de
poder, com destaque para as Comissões de Coordenação Regional e muitas dezenas de
outros serviços periféricos dos ministérios, só que os titulares dos cargos que os
dirigem não são legitimados através do voto popular. Esta «Administração periférica
do Estado» tem vindo a tornar-se cada vez mais importante, sem que a sua actividade seja
controlada pelas populações e sem que o «poder regional» responda através do voto
periódico perante os eleitores. Nós acreditamos nas virtude da escolha e fiscalização
democrática das populações e dos seus representantes. Quem quiser que fique com a sua
preferência pelo autoritarismo centralista.
Segunda: a regionalização é um instrumento que favorece a
democracia participativa. É conhecido o facto de a aproximação dos serviços públicos
em relação às populações e a legitimação do poder através do voto popular
constituírem um estímulo à participação, individual e organizada, sobretudo se nesse
sentido se verificar a necessária vontade política. As possibilidades de participação
são infinitamente maiores do que quando se verifica a nomeação para os cargos públicos
por parte do Governo Central.
Terceira: a regionalização pode favorecer o desenvolvimento e uma
distribuição mais equilibrada dos recursos. Com efeito, a regionalização pode não ser
uma condição necessária nem suficiente do desenvolvimento. Mas é inquestionável que a
existência de um sistema democrático representativo ao nível regional pode estimular os
serviços públicos e os agentes económicos, contribuindo para a sua dinamização. O
próprio facto de o poder regional ter que responder pelos seus actos em eleições
competitivas pode dinamizar o investimento público. Além disso, tendo o desenvolvimento
uma dimensão não apenas económica, mas também social, cultural e ambiental, o poder
regional democrático e as suas actividades podem ser um factor benéfico e uma
contribuição importante para o assegurar. Há perigos, certamente, mas é através da
emissão de normas legais e da tutela que devem ser prevenidos e não centralizando tudo.
Ou será que estes não existem, e em muitos casos não se concretizaram, com os poderes
concentrados no centro? Dá, aliás, que pensar o facto de nas Comunidades Europeias serem
os países mais atrasados os que não têm regiões, apesar da grande diversidade da
natureza destas de país para país e mesmo dentro do mesmo país, como é o caso de
Itália ou Dinamarca e está previsto que seja o caso português.
Quarta: a regionalização é condição de uma reforma
administrativa democrática, que dê coerência à administração periférica do Estado e
permita descentralizar e desburocratizar. Temos, aliás, o problema de existirem neste
momento dezenas de divisões regionais diferentes, sem critério, com dificuldades de
recolha de dados e problemas de coordenação administrativa. Houve a tendência para
harmonizar as áreas de alguns ministérios pelas cinco CCR’s, mas muito ficou por
concretizar. Citemos o ex-Ministro Valente de Oliveira em obra escrita depois de deixar o
Governo e publicada já este ano: «Temos em Portugal mais de oitenta mapas diferentes que
tornam as compatibilizações de dados muito difícil e a administração de todos os dias
infernal. Um habitante da Beira Douro tem de ir tratar de assuntos agrícolas a Mirandela,
requerer um passaporte em Viseu, ser submetido a uma operação cirúrgica em Vila Real e
resolver um assunto da Caixa de Previdência a Lamego... Mas se, por acaso, estiver em
causa qualquer pendência com os serviços do Ambiente, lá terá ele de ir ao Porto...»
Afirma-se, é certo, que não temos problemas de nacionalidades para
resolver no quadro de um Estado unitário ou identidades culturais muito marcadas. Mas
este facto não significa que não existam outras questões a que temos que fazer face e
apenas se repercute na natureza própria das regiões do continente, que serão autarquias
e parte do poder local e não regiões políticas ou Estados federados...
O PSD tem dado nesta matéria mais uma demonstração da sua total
falta de seriedade política ao dizer o contrário do que disse e escreveu muitas vezes
nos últimos anos. O PSD inscreveu no programa eleitoral ao longo dos anos a
regionalização. Votou favoravelmente a Lei Quadro das Regiões em 1991. Inscreveu este
objectivo no seu programa de Governo. Em 1993 um jornal diário falava de uma conferência
do seu actual líder em que este fez uma defesa acérrima da regionalização ao mesmo
tempo que atacava a «classe política». Em 1996, já como líder, voltou a defender a
regionalização em entrevista ao Povo Livre e em intervenções como deputado municipal
na Assembleia Municipal de Lisboa e na Assembleia Metropolitana. Aqui invocava a sua
experiência pessoal como eleito autárquico para concluir que as regiões eram
indispensáveis... E que não se diga que o problema está no mapa. Se o PSD tivesse
apresentado o seu, as assembleias municipais teriam dado a sua opinião e logo se tiraria
conclusões. A verdade é que o líder do PSD não tem convicções firmes, navega à
vista e funciona com o objectivo de tentar obter algum espaço no partido e na direita. E
o PSD inventa um pretexto novo em cada momento que passa, sempre com o objectivo de criar
mais e mais dificuldades e de manipular os resultados no sentido do não.
Ao mesmo tempo, recorre a toda a série de calúnias em relação à
regionalização. O PCP recusa energicamente que se pretenda justificar esta pirueta
através de mentiras e calúnias.
Em primeiro lugar, não há por detrás das conclusões da Comissão
de Poder Local qualquer «negociata política» nem calculismos eleitorais; apenas esteve
presente uma posição de princípio traduzida no respeito pelas posições manifestadas
pelos municípios, através das assembleias municipais, fossem quais fossem as maiorias
políticas.
Não se tratou de negociatas à «socapa». Os trabalhos da
Comissão de Poder Local assentaram num debate público, cuja duração foi prorrogada, e
em especial a uma consulta feita aos municípios, muitos deles de maioria do PSD,
consultados em debate público e cujos resultados estão editados em livro pela própria
Assembleia da República.
Referem-se agora dificuldades com as delimitações regionais neste
ou naquele caso. A verdade é que os pareceres das assembleias municipais foram tidos em
conta de acordo com critérios claros. Para o PCP, designadamente, foi determinante a
existência ou não de manifestação de vontade de integração noutra região; essa
manifestação de vontade ser da assembleia municipal; se a vontade manifestada noutra
região em concreto é numa das regiões previstas no mapa aprovado pela Comissão de
Poder Local; se é respeitado o princípio da contiguidade territorial. Se neste momento
há situações que não estão resolvidas tal deve-se ao facto de o PSD e o PP tudo terem
feito para impedir que as assembleias municipais se pronunciassem. Cabe-lhes por inteiro a
responsabilidade perante as populações das situações pendentes e que tudo faremos para
que venham a ser resolvidas mais tarde.
Em segundo lugar, a regionalização não vai criar qualquer nova
burocracia. A verdade é que já existe um amplo e poderoso aparelho regional. Imiscui-se
constantemente no funcionamento dos municípios. Tem um papel essencial na gestão de
centenas de milhões de contos de verbas do Orçamento de Estado e dos os fundos
comunitários. É essa a burocracia que o PSD controlou e em nome da qual diz agora que
não quer mais burocracia nem alargar a "classe política". As Comissões de
Coordenação Regional são um caso significativo. A estrutura de cada uma das cinco
CCR’s compreende 4 Direcções Regionais e mais de duas dezenas de Divisões para
alem de um conjunto de outros serviços que concentram mais de sete dezenas de
competências especificas de natureza e âmbito estritamente regionais. Entre elas, e
a titulo meramente exemplificativo, encontram-se competências no domínio da elaboração
dos planos de ordenamento regionais, gestão dos programas nacionais de reabilitação
urbana e reconversão de áreas clandestinas, intervenção na administração das
regiões hidrográficas, participação na elaboração do Plano Desenvolvimento Regional,
elaboração de planos e programas de instalação de equipamentos colectivos,
elaboração de programas de investimentos para protecção e valorização dos recursos
naturais, gestão das áreas protegidas de interesse regional, elaboração de estudos com
vista à promoção do desenvolvimento económico e social local... A despesa global
prevista em Orçamento de Estado para 1996 para o conjunto das 5 CCR’s é de 43
milhões de contos. As CCR’s têm ainda uma intervenção significativa em todo o
processo de gestão dos fundos comunitários. São directamente responsáveis pelos 300
milhões de contos atribuídos aos Programas Operacionais correspondentes às cinco
"regiões". Se atendermos que a par destes, a aplicação das verbas de outros
Programas comunitários como os destinados ao "Ambiente e Renovação urbanas",
à" Promoção da política de desenvolvimento regional "e ao" Turismo e
Património cultural" (dotados com mais de 350 milhões de contos) são determinados
pelas CCR’s, é fácil de perceber a influencia e peso político que estas estruturas
acabam por assumir indevidamente nas políticas de desenvolvimento local e regional.
Para o PCP a regionalização não é uma nova burocracia, mas sim a
possibilidade de democratizar a administração periférica e combater a burocracia já
existente dando ao povo a liberdade de escolher os titulares de cargos públicos que
actualmente são nomeados e o direito de participar nos assuntos públicos onde hoje
impera o secretismo.
Em terceiro lugar o PSD e o PP mente ao falar na despesa que
representaria instituir as regiões. Esconde que os 53 membros das Juntas regionais
serão remunerados, mas o mesmo não acontecerá com os membros das assembleias regionais,
que só receberão senhas de presença, ao contrário do que já foi afirmado. Esconde que
os serviços e os edifícios onde funcionarão as regiões vão ser transferidos das
Comissões de Coordenação Regional e de outros serviços periféricos dos ministérios
para a dependência das instituições regionais. Cargos como Presidentes das Comissões
de Coordenação Regional, entre outros, vão ser extintos, os dezoito governadores civis
vão ser substituídos por nove governadores regionais e as verbas geridas por serviços
sem legitimidade democrática vão ser geridas, esperemos que melhor e de forma mais
transparente e participada, por órgãos eleitos.
O PP e o PSD dizem também que as regiões dividem o país. O PP
chega ao ponto de instrumentalizar de modo oportunista e inaceitável. Omitem que o país
está dividido em cinco comissões de coordenação regional, em duas regiões autónomas,
em dezoito distritos, em 305 municípios, muitos deles geridos pelos mais diferentes
partidos, e que existem ainda dezenas de outras divisões «regionais».
O facto de alguns pretenderem criar uma histeria em torno da
possibilidade de o PCP obter a maioria de alguma região só demonstram o seu espírito
antidemocrático e os estreitos limites do pluralismo e liberdade que apregoam. A verdade
é que o PCP detém por escolha das populações a maioria em 49 municípios no quadro da
CDU (um terço da área do país), detém a maioria na Área Metropolitana de Lisboa,
participa na gestão do município de Lisboa, no quadro da Coligação «Com Lisboa»,
gere centenas de freguesias e detém importantes pelouros em muitos outros municípios,
com reconhecidas vantagens para as populações e o reiterado apoio popular.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
Este debate ocorre num momento em que entrou em vigor a lei de
revisão constitucional, de que resulta um processo longo e difícil de instituição das
regiões, na sequência das reivindicações da direita. É um processo em que as
aspirações de uma região podem ser praticamente unânimes mas inviabilizadas pelo voto
de conjunto, ou vítimas do folhetim do triunfo da exigência dos 50% de participação de
eleitores no referendo (que na prática, pode ser apenas uma alta abstenção técnica,
isto é, os mortos e os que mudaram de residência e não foram eliminados nos cadernos
eleitorais).
Cumpre-se aqui uma etapa importante do processo de regionalização.
Mas ficam muitos problemas ainda em aberto, com destaque para o regime do referendo. O PCP
terá uma palavra a dizer em todos e cada um das etapas futuras, porque não renuncia a
nenhum dos direitos de participação democrática.
O PCP intervém nesta matéria com as suas próprias posições,
reconhecidamente distintas das posições do PS, que acordou com o PSD e o PP criar
grandes dificuldades ao processo de regionalização na última revisão constitucional. E
veremos se não se desinteressará uma vez mais desta questão após as eleições
autárquicas. Por nós, temos convicções firmes que não ondulam ao sabor de
calendários ou de marés. Por isso, prosseguiremos a luta até que o Poder Local tenha em
Portugal aquilo a que tem direito.
Disse