Exposição de motivos
A caraterização de um conjunto de práticas de partilha de dados ou de obras culturais e artísticas como “pirataria”, “pirataria informática” e a sua tipificação como crime à luz da lei portuguesa tem vindo a evidenciar diversas insuficiências e contradições. Na verdade, a fiscalização de atos de partilha de dados digitalmente é de extrema complexidade e levanta inúmeras preocupações sobre o direito à privacidade, não podendo ser desconsiderada a pressão que se vai sentindo para um poder e legislação “hipervigilantes” a pretexto do combate à “pirataria”.
Por outro lado, a circulação de obras e criações, a difusão do conhecimento, das artes e da cultura, é em si mesma um elemento potenciador da criatividade, da elevação da consciência humana, individual e coletiva. O acesso à Cultura, às Artes, além de previstos na Constituição da República Portuguesa como direitos dos cidadãos, são instrumentos poderosos para o desenvolvimento, para a dinamização cultural e também social e económica. O livre acesso e fruição culturais são, por isso mesmo, comandos constitucionais, cuja garantia é atribuída pelo texto constitucional diretamente ao Estado, nomeadamente, através do artigo 78º.
Tendo em conta que a partilha de dados informáticos ou de obras culturais, sem fins comerciais, constitui uma forte expressão da difusão cultural e que a circulação de obras artísticas e culturais constitui, em si mesma, uma mais-valia social e económica para toda a sociedade – da qual não se excluem artistas, autores e produtores – entende o Partido Comunista Português que incumbe ao Estado a regulação do regime de partilha de dados informáticos, salvaguardando o objetivo superior da livre circulação de conteúdos culturais e, simultaneamente, os interesses materiais e morais dos criadores e produtores.
A criminalização da partilha de dados e de obras, particularmente por via telemática, além de se demonstrar cada vez mais ineficaz, é contraditória com os objetivos centrais da política cultural. Posto isto, a política cultural não deve assentar na proteção dos direitos de propriedade, sacrificando a fruição, mas sim na orientação de crescente massificação do acesso e fruição culturais, salvaguardando os direitos de propriedade intelectual. O regime jurídico de partilha de dados e obras que o PCP propõe através do presente Projeto de Lei reestrutura toda a forma como o Estado e a regulamentação intervêm na defesa do direito de propriedade intelectual.
Na verdade, o PCP não propõe nenhuma supressão dos direitos de autor ou direitos conexos, antes abre a possibilidade de serem os autores a decidir se querem ou não proteger a sua obra de partilha não comercial. É abandonada, assim, a atual conceção legal que cristaliza em torno da proteção do direito de autor e que a essa intenção sacrifica os principais objetivos políticos que o Estado deve promover: a livre criação, fruição e acesso.
O presente Projeto de Lei estabelece a total legalidade das partilhas de dados informáticos, mesmo que comportem conteúdos protegidos por direitos de autor, na medida em que reconhece a vantagem social da partilha, não a contrapondo a uma suposta desvantagem por parte do autor. Na verdade, o autor/artista/produtor é beneficiado pela massificação do acesso ao seu trabalho, material e moralmente, na medida em que esse é o principal desejo da maior parte dos autores.
Todavia, o facto de não se considerar antagónica a partilha livre com os direitos dos autores/artistas/produtores, não significa que o PCP não considere a necessidade de remuneração de autores, artistas, criadores, produtores e outros titulares de direito de autor e direitos conexos, no contexto em que a perceção de valores como resultado dos direitos de autor continua a ser a forma como os grupos económicos do setor se negam a assumir a justa retribuição do trabalho dos artistas e autores.
Nessa medida, o PCP propõe a compensação dos titulares de direitos de autor e direitos conexos que não proíbam a partilha de dados informáticos contendo obras ou partes de obras protegidas, compensação esta que será efetuada a partir do Fundo para a Partilha de Dados Informáticos constituído com as verbas resultantes da cobrança aos fornecedores de serviços de acesso à internet de uma contribuição mensal correspondente a € 0,75 por contrato de fornecimento de serviços de acesso à internet.
A confusão entre partilha de dados – gratuita e sem fins comerciais – e “pirataria” tem beneficiado a linha política da censura, da hipervigilância, da punição, mesmo quando estas se demonstram prejudiciais à livre circulação de obras, representam elevados custos e se provam socialmente ineficazes. O Projeto de Lei do PCP vem propor que, finalmente, se separem os conceitos de “partilha” desinteressada de dados e os conceitos de “contrafação”, “pirataria”, na medida em que os últimos ficam associados exclusivamente a reproduções e cópias ou partilhas não autorizadas de dados e conteúdos protegidos por direito de autor quando efetuadas com fins comerciais. Ora, no que toca à partilha de dados informáticos, como hoje se conhece, não existe benefício para quem disponibiliza o ficheiro a não ser o de poder ser retribuído, obtendo outro ficheiro que antes não possuía. Se na “pirataria” existe uma extração e apropriação ilegítima de uma mais-valia material sobre uma obra de que o “pirata” não é detentor, o mesmo não se poderá dizer na mera partilha não comercial.
Todavia, há um benefício cultural para quem partilha e um benefício material de facto para os fornecedores de serviços de acesso à internet (FSI),ou seja, existe de facto a apropriação ilegítima de uma mais-valia sobre os conteúdos que circulam por via telemática, mas não por parte do utilizador. Este, para todos os efeitos, paga um serviço. Na verdade, o problema não reside em estarem disponíveis conteúdos gratuitamente, porque não estão: o utilizador paga o acesso a um conjunto de conteúdos mas essa verba fica inteiramente retida nos FSI, que se apropriam assim de uma mais-valia substantiva de obras sobre as quais não possuem direitos. É claro que não são os FSI os responsáveis pela colocação de conteúdos protegidos de autor em linha, mas são objetivamente os principais beneficiados financeira e economicamente.
Assim, tendo em conta os diversos aspetos e eventuais antagonismos de interesses, o presente Projeto de Lei visa precisamente ultrapassá-los, assumindo como principal objetivo a difusão e fruição culturais livres, sem esquecer a necessidade de salvaguardar os titulares de direitos de autor.
É importante referir que o sistema ora proposto é voluntário, pois nenhum autor/artista/produtor é obrigado a aceitar a livre partilha das suas obras, sendo que apenas é remunerado aquele titular de direitos que aceite essa partilha.
O debate que se tem desenvolvido na Assembleia da República e na sociedade em geral, nomeadamente sobre o presente projeto, e o debate sobre a cópia privada não são necessariamente sobrepostos.
A total liberdade de partilha de conteúdos elimina a necessidade de taxar o suporte físico em que o conteúdo reside ou venha a residir, na medida em que a taxa passa a incidir sobre o fluxo de dados e não sobre o seu alojamento. Acresce que a forma agora proposta pelo PCP tem uma utilidade mais perene do que as taxas relacionadas com a cópia privada, pois incide sobre um serviço e um bem muito menos sensível à alteração tecnológica e às evoluções. Assim, enquanto um suporte magnético ou digital rapidamente se torna desatualizado, a ligação à internet ou a meios telemáticos será uma realidade, independentemente da tecnologia. O PCP propõe que a partilha seja geradora de receita, paga por quem retira lucro pela sua existência, ao invés de penalizada, mas aplicando uma taxa sobre o ato e não sobre a tecnologia.
A presente proposta do PCP afirma-se como profundamente inovadora na abordagem às questões da partilha informática de conteúdos culturais e artísticos e é apresentada como um contributo - que entende o PCP, valioso – para ultrapassar um conjunto de insuficiências do atual regime legal de penalização e criminalização de atos que em nada justificam esse enquadramento legal, bem como assegurar uma justa distribuição dos benefícios gerados pela partilha de obras culturais e artísticas, sem esquecer o objetivo primordial consagrado na Constituição e com o qual o PCP se identifica plenamente: “Todos têm direito à fruição e criação cultural” e para tal, “incumbe ao Estado incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de ação cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio.
Nestes termos e ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei estabelece o regime jurídico da partilha de dados informáticos que contenham obras protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.
Artigo 2.º
Âmbito
- A presente lei aplica-se a todas as transações gratuitas e sem fins comerciais, diretos ou indiretos, realizadas por via telemática, de dados informáticos que contenham obras ou parte de obras protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos que tenham sido previamente publicadas, editadas comercialmente ou colocadas à disposição do público com o consentimento dos respetivos titulares e cuja partilha não tenha sido por estes expressamente proibida.
- Excluem-se do âmbito da presente lei os programas informáticos e as publicações periódicas.
Artigo 3.º
Definições
- Para os efeitos previstos na presente lei, entende-se por:
- Disponibilização de dados informáticos: a disponibilização por meios telemáticos de dados informáticos que contenham obras ou parte de obras protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos;
- Aquisição de dados informáticos: a aquisição, por via telemática, de dados informáticos que contenham obras ou parte de obras protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos;
- Partilha de dados informáticos: a disponibilização e aquisição de dados informáticos, definidas nos termos das alíneas anteriores;
- Plataforma de partilha: o meio telemático que permite a realização da partilha de dados informáticos.
- Para os efeitos previstos na presente lei, aplicam-se subsidiariamente os conceitos e definições estabelecidos no Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, com as necessárias adaptações.
Artigo 4.º
Partilha de dados informáticos
- É permitida a partilha gratuita e sem fins comerciais de dados informáticos que contenham obras ou parte de obras protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos cuja partilha não tenha sido expressamente proibida pelos respetivos titulares de direitos.
- A proibição prevista no número anterior pode ser realizada por um representante do titular do direito desde que possuidor de uma procuração para o efeito.
- Para os efeitos previstos no número 1 podem ser utilizadas plataformas de partilha, independentemente da localização do seu alojamento físico.
- A obtenção de obras através da partilha de dados informáticos não prejudica a necessidade de obtenção da autorização por parte dos titulares do direito de autor e dos direitos conexos para a sua comunicação, execução ou reprodução pública, aluguer ou qualquer forma de utilização ou exploração comercial.
Artigo 5.º
Autorização da partilha de dados informáticos
- A proibição prevista no artigo anterior é declarada expressamente, pelos titulares de direitos de autor e direitos conexos ou seus representantes, da seguinte forma:
- Para as obras anteriores à entrada em vigor da presente lei: por declaração do titular do direito de autor ou direito conexo, dirigida ao membro do Governo responsável pela área da Cultura;
- Para as obras posteriores à entrada em vigor da presente lei: por declaração do titular do direito de autor ou direito conexo dirigida ao membro do Governo responsável pela área da Cultura ou explicitada nos originais da obra.
- No caso de obras relativamente às quais exista mais do que um titular de direitos de autor e direitos conexos, a proibição de um deles impede a partilha da obra e determina o dever de indemnizar os restantes pelos benefícios cessantes.
- A listagem das obras cuja partilha por dados informáticos esteja proibida é disponibilizada de forma permanente, pública e atualizada pelo membro do Governo responsável pela área da Cultura.
- Os titulares de direitos de autor e direitos conexos que proíbam a partilha de dados informáticos de obras ou parte de obras que sejam objeto dos seus direitos ficam impedidos de receber a compensação prevista no artigo 6.º na proporção correspondente às obras cuja partilha esteja proibida.
Artigo 6.º
Compensação dos titulares de direitos de autor e direitos conexos
- Os titulares de direitos de autor e direitos conexos têm direito a auferir uma compensação correspondente, sem prejuízo de outras compensações a que tenham direito.
- A compensação dos titulares de direitos de autor e direitos conexos pela partilha de dados informáticos é da responsabilidade das entidades de gestão coletiva de direitos, nos termos a definir por cada entidade em regulamento próprio, presumindo-se a universalidade de representação nos termos estabelecidos no Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.
Artigo 7.º
Fundo para a Partilha de Dados Informáticos
- Para os efeitos previstos no artigo anterior é constituído um Fundo para a Partilha de Dados Informáticos.
- O Fundo é constituído pelas verbas resultantes da cobrança aos fornecedores de serviços de acesso à internet de uma contribuição mensal de € 0,75 por contrato de fornecimento de serviços de acesso à internet.
- O valor da contribuição referida no número anterior é atualizado, por Despacho do membro do Governo responsável pela área da Cultura, em julho de cada ano à taxa de inflação anual, verificada pelo Instituto Nacional de Estatística no mês anterior.
- A contribuição referida no número 2 não pode ser repercutida no preço do serviço prestado ao utilizador final, sendo assumida pelos fornecedores de serviço de acesso à internet.
- A manutenção e gestão do Fundo são da responsabilidade do membro do Governo que tutela a área da Cultura, nos termos previstos em regulamento próprio.
Artigo 8.º
Distribuição das verbas do Fundo para a Partilha de Dados Informáticos
- As verbas anuais do Fundo são distribuídas da seguinte forma:
- 70% para as entidades de gestão coletiva de direitos;
- 30% para o orçamento de investimento da Direção-Geral das Artes e do Instituto do Cinema e do Audiovisual, para atribuição no âmbito dos concursos de apoio às artes e à produção cinematográfica.
- A verba prevista na alínea a) do número anterior é distribuída da seguinte forma:
- 40% para as entidades de gestão coletiva de direitos de autores;
- 30% para as entidades de gestão coletiva de direitos de intérpretes;
- 30% para as entidades de gestão coletiva de direitos de produtores e editores.
Artigo 9º
Divulgação da distribuição da compensação por parte das entidades de gestão coletiva de direitos
- As entidades de gestão coletiva de direitos que recebam qualquer verba por parte do Fundo para a Compensação, nos termos do número anterior, divulgam anualmente junto da Inspeção Geral das Atividades Culturais, ou membro do Governo que tutela a Cultura e através de sítio de internet, os resultados da distribuição da verba pelos associados e representados.
- A divulgação deve compreender os artistas, intérpretes, produtores e editores, bem como a verba auferida por cada um e referente a que obra geradora de direitos, bem como outros eventuais destinos de financiamento, no âmbito dos regulamentos internos referidos no número 2 do Artigo 6º.
Artigo 10.º
Fiscalização
- A fiscalização do cumprimento da presente lei cabe à Inspeção-Geral das Atividades Culturais.
- Para os efeitos previstos no número anterior, a Autoridade Nacional de Comunicações fornece à Inspeção Geral das Atividades Culturais, anualmente, os dados relativos ao número de contratos de fornecimento de serviços de acesso à internet, através de tecnologias móveis e fixas.
Artigo 11.º
Entrada em vigor e regulamentação
- A presente lei entra em vigor 90 dias após a sua publicação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
- O prazo para entrega da declaração prevista na alínea a) do número 2 do artigo 8.º termina 60 dias após a publicação da presente lei.
- O regulamento previsto no número 6 do artigo 7.º é aprovado pelo membro do Governo responsável pela área da Cultura por Portaria no prazo de 60 dias após a publicação da presente lei, ouvidas as entidades de gestão coletivas de direitos para o efeito.