O acordo político a que o Conselho de Agricultura chegou sobre a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) é um sinal claro que a agricultura será uma das "moedas de troca" das negociações no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), em Setembro deste ano, em Cancun, no México. A actual proposta dá mais um passo na liberalização dos mercados agrícolas, aceitando o princípio da desvinculação das ajudas da produção, completando assim o caminho iniciado na Reforma da PAC de 1992, aprofundado na Reforma de 1999, enquanto mantém as profundas injustiças na distribuição das ajudas entre países, produções e produtores. Dá-se mais um passo na progressiva renacionalização da PAC. Mais uma reforma feita à medida da grande agricultura e agro-indústria do Norte e Centro da Europa. Mais uma “vitória” de um ministro da agricultura português. Mais uma derrota para a agricultura portuguesa, para os pequenos e médios agricultores e a agricultura familiar.
À terceira foi de vez. O Conselho de Agricultura de 25 a 26 de Junho de 2003, chegou a um acordo político sobre a reforma da PAC, apesar de muitos darem o acordo como perdido e preverem uma hecatombe para a reunião ministerial da OMC de Cancun. Mas o compromisso estava à vista, tendo em conta o acordo franco-alemão. Este acordo, para além das concessões mútuas no domínio dos interesses agrícolas franceses e dos interesses industriais alemães, permitiu à França assegurar a não redução do preço dos cereais e alguma flexibilidade na aplicação da desvinculação das ajudas da produção, em troca de mecanismos de “disciplina orçamental” da despesa agrícola, que asseguram, à Alemanha, principal contribuinte líquido do orçamento comunitário, não só o congelamento da despesa agrícola, mas mecanismos para a sua redução. Por outro lado, o próprio parecer do Parlamento Europeu já evidenciava, de alguma forma, as possíveis áreas de compromisso. Se não houve acordo mais cedo, foi porque o governo francês necessitou de tempo para convencer os seus agricultores de que fez tudo o que estava ao seu alcance para defender os seus interesses, nomeadamente não deixando que a reforma ficasse concluída antes do Conselho Europeu de Salónica.
O acordo final é uma versão mais mitigada do pacote original da reforma, proposto pela Comissão, em Janeiro de 2003. Mas o Comissário Fischler conseguiu salvar os elementos centrais da sua proposta de reforma, nomeadamente a desvinculação das ajudas à produção. Apesar dos Estados-membros poderem, se assim o quiserem, manter uma parte das ajudas vinculadas ou poderem utilizar uma derrogação de dois anos para a implementação do novo sistema, este era o passo fundamental para as negociações agrícolas no âmbito da OMC. Para além das ajudas desvinculadas poderem ser incluídas na chamada “caixa verde” – medidas que não distorcem o comércio – estas novas concessões são um trunfo negocial importante, quando se pretende usar o sector agrícola como moeda de troca de outros interesses, nomeadamente a liberalização do investimento, dos contratos públicos e dos serviços.
Por outro lado, a desvinculação confirma o caminho encetado pela Reforma da PAC de 1992 (que ocorreu durante a presidência portuguesa da UE, sendo então Ministro de Agricultura, Arlindo Cunha, do Governo PSD), de progressivo desmantelamento dos mecanismos de regulação de mercado e a introdução de pagamentos directos nas principais organizações comuns de mercado (OCM), baseados na superfície e no número de animais, para compensar (parcialmente!) as baixas nos preços agrícolas. Esta orientação foi aprofundada na Reforma da PAC de 1999 (desta vez com o aval do Governo PS). E ao contrário do que afirma a Comissão, este caminho em nada ajuda os países em vias de desenvolvimento, nem resolve as práticas de dumping, pois não só a desvinculação, com a liberalização do mercado que acarreta, vai originar a concentração da produção e a baixa de preços, como a UE (e os EUA) vão continuar, usando as ajudas, a exportar a preços mais baixos do que o custo de produção.
Manutenção dos desequilíbrios
O acordo obtido no intuito da chamada “modulação”/degressividade, piora a proposta original da Comissão, e não passa de um esquema de redução dos pagamentos directos, com a transferência das poupanças, assim geradas, para o desenvolvimento rural.
Quadro 1 - Avaliação das Diferentes Propostas de Degressividade e Impactos da Proposta da Comissão
Quadro2 - Estrutura das Explorações Agrícolas e da Força de Trabalho em Portugal nos últimos 20 anos
O novo esquema adoptado, não só não aumenta as ajudas aos pequenos agricultores (que representam quase 80% dos agricultores e recebem menos de 20% do total das ajudas), como a redução das ajudas atinge de igual forma os grandes e médios agricultores, em detrimento dos últimos. Mas, o pior é que um dos poucos aspectos positivos da proposta original – a possibilidade de redistribuição comunitária das poupanças efectuadas – é posto em causa, não só devido ao co-financiamento nacional das medidas de desenvolvimento rural, mas sobretudo pela introdução de um limiar mínimo de 80% de retorno dessas poupanças ao Estado-membro de origem das mesmas. Ou seja, ficam disponibilizados para redistribuição comunitária, em média, cerca de 230 milhões de euros anualmente, face aos cerca de 950 milhões de euros que ficariam caso fosse aprovada a proposta original da Comissão (Quadro 1). A PAC vai continuar a ser uma política que não contribui para a coesão económica e social e, por isso mesmo, contrária ao tão apregoado desenvolvimento rural.
Por outro lado, confirma-se que as ajudas para as OCM mediterrânicas, nomeadamente as frutas e legumes, o vinho e o azeite, não serão melhoradas, mantendo-se, assim, a injustiça face às produções ditas continentais, sobretudo as culturas arvenses (Gráfico 4). Para além da declaração no acordo final, onde se afirma que as reformas destas OCM serão baseadas nos objectivos e na abordagem da actual Reforma da PAC (o que pode implicar, por exemplo, o fim da ajuda à produção no sector do azeite!), é introduzido um mecanismo de “disciplina orçamental”, que implica a redução automática das ajudas directas em caso de previsão de ultrapassagem do tecto orçamental.
Confirma-se, assim, o congelamento do quadro orçamental relativo às despesas com as OCM, decidido no Conselho Europeu de Bruxelas, de Outubro de 2002, confirmado pelo Conselho Europeu de Copenhaga, de Dezembro de 2002. Ou seja, no quadro do alargamento, vai manter-se a despesa agrícola dos actuais 15 Estados-membro numa futura UE com 25 Estados-membro. Como é óbvio, se o bolo é o mesmo, as fatias serão menores... Em conclusão, irão manter-se (e que tudo indica agravar-se) as actuais injustiças na redistribuição das ajudas entre países, produções e produtores.
A dita "vitória" e a necessária Reforma
Apesar de o Governo português não se ter juntado ao compromisso final da Presidência do Conselho, como se afirma nas conclusões do Conselho, não deixa de ser caricato que o ministro da agricultura, Sevinate Pinto, tenha considerado “fantástico” o resultado obtido, considerando “ter alcançado os principais objectivos negociais”. Caricato, não só porque de uma má proposta original para Portugal não se poderia esperar grande coisa, como o resultado em nada corresponde aos objectivos propostos pelo governo, nomeadamente, reequilibrar a distribuição das ajudas - atenuando a discriminação negativa da agricultura portuguesa - e libertar a agricultura portuguesa dos constrangimentos das quotas e dos limiares de produção, que, de acordo com o próprio, “congelam o subdesenvolvimento agrícola em Portugal”.
As “vitórias” apresentadas – mais 168 milhões de euros anuais – não só ficam aquém do mínimo necessário, como representam recuos negociais significativos, face àquilo que já se dava por adquirido. Os 90 mil direitos adicionais para vacas aleitantes, estavam já, em parte, garantidos (cerca de 51 mil) no programa de reconversão de cereais por carne de bovino. Em relação à quota do leite dos Açores, o que se obteu foi uma quantidade de referência adicional de mais 50 mil toneladas, quando o mínimo indispensável, eram as 73 mil toneladas. Isto quando o próprio governo exigia as 100 mil toneladas, num acordo final em que a Grécia, por exemplo, obteve mais 120 mil toneladas. Ou quando a própria Comissão, no relatório sobre a situação da agricultura portuguesa, considerava que a quota de leite dos Açores merecia uma “atenção especial” e “medidas adequadas”.
Por último, os 33 milhões de euros transferências líquidas anuais, não só são bastante inferiores face à já parca proposta da Comissão, como são manifestamente insuficientes para fazer face às necessidades nacionais, quando Portugal não só é um dos Estados-membro que menos recebe da PAC, apesar da dimensão sócio-económica do seu sector agrícola, como, de acordo com a Comissão, é contribuinte líquido da PAC. Tendo em conta que estas transferências irão ser aplicadas ao nível do desenvolvimento rural, levantam-se questões adicionais como a capacidade de garantir o co-financiamento nacional e o facto destas medidas, nomeadamente aquelas introduzidas na actual reforma, virem a ser usadas como compensação aos grandes agricultores pelas reduções decorrentes da degressividade. Com o actual acordo, o passo da liberalização está garantido. A agricultura portuguesa sofre mais um revês, enquanto o ministro apresenta "vitórias". Nada de novo. O mesmo aconteceu em 1992 e em 1999.
Os deputados do PCP ao PE há muito que pugnam por uma profunda reforma da PAC, que altere o corrente "modelo de agricultura europeu". Uma reforma baseada nos princípios da soberania alimentar, da segurança alimentar, da preferência comunitária e da solidariedade financeira. Que reequilibre a distribuição das ajudas, através da aplicação da modulação e do plafonamento. Que tenha em conta a diversidade das agriculturas europeias e as suas especificidades. Que promova o desenvolvimento dos mercados locais e regionais e os produtos tradicionais de particular qualidade. Que retire a agricultura dos ditames da OMC.