"Reforçar o partido e construir a alternativa"

Entrevista do "Avante!" a Kemal Okuyan, editor-chefe do diário Sol e membro do Comité Central do Partido Comunista da Turquia (TKP)

Em périplo por vários países da Europa, o editor-chefe do diário Sol e membro do Comité Central do Partido Comunista da Turquia (TKP), Kemal Okuyan, em entrevista ao Avante!, fez um primeiro balanço das movimentações de massas que abalaram o país, destacando as dinâmicas observadas e as exaltantes potencialidades de intervenção que se colocam aos comunistas, bem como a necessidade de construir uma alternativa que preencha de forma consequente o espaço aberto entre o povo e o governo.

Após semanas de intensas movimentações de massas, o TKP afirma que o ditador sofreu uma derrota e o povo venceu. Porquê?

Neste momento assistimos a um refluxo da contestação. É normal. Não é fácil manter durante tanto tempo o mesmo nível de iniciativa. O declínio do movimento é uma evidência, mas isso não quer dizer que o regime e o ditador tenham vencido, como reclamam. Pelo contrário. A escala que a movimentação de massas atingiu foi histórica e em muitos aspectos apresentou novidades. A nosso ver, alterou radicalmente a sociedade turca. Em cerca de 20 dias foram lançadas muitas e importantes sementes de progresso. O medo foi vencido. Existe uma maior consciência da necessidade de organização colectiva e da construção de uma alternativa política e social. Este é um significativo triunfo do nosso povo.

O TKP tem defendido que a chave da continuidade da dinâmica popular era a construção de uma alternativa, mas também notava que as condições subjectivas ainda não estavam completamente maduras. Mantêm esta análise?

A inexistência de uma alternativa madura foi, na verdade, o que salvou Recep Erdogan e o seu governo. Ela não existe nem no parlamento, nem, ainda e num sentido mais amplo, na sociedade.
Quatro partidos estão representados no parlamento da Turquia. Um apoia o governo, três dizem-se de oposição. Enquanto as pessoas estavam nas ruas a exigir a demissão do governo, nenhum dos partidos que se diz da oposição apoiou essa reivindicação. Consideraram que não era o momento oportuno para reclamar a demissão do executivo de Erdogan.
Ao recuar e não se apresentar como alternativa, essa dita oposição parlamentar colapsou perante os acontecimentos. Mostrou que tem mais medo de Erdogan e do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) que o próprio povo.
Não vivemos uma situação revolucionária ou sequer pré-revolucionária, mas a exigência de demissão do governo deve manter-se a par da construção da tal alternativa consequente. É nosso dever promovê-la, e julgamos, sinceramente, que existem condições para se caminhar nessa direcção.
O Partido Comunista é diferente de todos os outros. As pessoas sabem que não defendemos nem lutamos pela conservação do regime, mas por mudanças radicais na sociedade, pela revolução e pelo poder popular. Durante as movimentações de massas, ninguém questionou a nossa presença nem o papel que assumimos, sempre na primeira fila da luta. Ao invés, as pessoas não só queriam saber qual era a nossa posição como muitas vezes apelavam e apoiavam a nossa presença na dianteira das acções. Toda a gente sabe que somos sérios e que não nos deixamos arrastar para provocações.
Cabe agora aos comunistas aproveitar estas condições favoráveis. Essa é uma das nossas tarefas urgentes. Organizar as pessoas no TKP, politizá-las, dando máxima prioridade à classe operária, aos trabalhadores e locais de trabalho. Repara que praticamente sem organização de base – o sindicalismo de classe e em geral o movimento sindical são muito incipientes –, os trabalhadores turcos vieram para a rua em força. Iam trabalhar e, ao final da tarde, durante a noite, juntavam-se em protestos gigantescos.

A ideia dominante, no entanto, é a de que nos protestos pesava sobretudo o descontentamento da chamada classe média. Isso corresponde à verdade?

Quando olhamos para a imagem que se projectou dos protestos na Turquia, parece que a grande maioria das pessoas que neles participou é oriunda de camadas intermédias e intelectuais. É um facto que tudo se desencadeou em torno do Parque Gezi, mas, na verdade, quando o movimento alastrou, as grandes movimentações de massas ocorreram em bairros habitados por trabalhadores.
Logo no primeiro dia de confrontos com a polícia, no final de Maio, a repressão e sobretudo os protestos espalharam-se por toda a cidade. Nessa mesma madrugada, os populares que nas ruas dos bairros operários enfrentavam a violência, excediam em muito o número dos que também o faziam na Praça Taksim e nas zonas mais próximas.
Em Taksim, predominavam as tendências liberais. Nos bairros populares, prevaleciam as reivindicações de cariz secular e anti-imperialista. Nestes, o povo esteve muito disponível a palavras de ordem de uma radicalidade substantiva e, até, socialistas. A maioria dos que morreram nos confrontos eram trabalhadores e alavitas.
Os alavitas são um ramo do islamismo muito mais aberto e com influências do xamanismo. Bebem álcool, as mulheres não são obrigadas a uma conduta rígida, como acontece por exemplo com os xiitas. Podemos até dizer que, mais do que um ramo, chega a ser uma outra religião. Os alavitas estiveram em grande número nas ruas, assim como as mulheres, que assumiram lugar destacado nas barricadas e manifestações, e foram, por isso, alvos particularmente visados nas vagas de prisões.
Mas mesmo em Taksim, entre os sectores mais liberais, as palavras de ordem do TKP eram bem recebidas. Quando reclamávamos que todas as fábricas, todos os meios de produção deviam estar nas mãos dos trabalhadores, muitos seguiam essa consigna sem preconceitos ou recriminações.
O movimento evidenciou um grande fosso entre o AKP e o regime, e as massas populares. Os comunistas têm de ser muito rápidos a preencher esse vazio, mostrando ao povo que existe alternativa.

Pelo que nos estás a dizer, existem grandes condições para o TKP se implantar entre os trabalhadores, para os organizar e reforçar-se...

Toda esta situação é completamente nova. Ao longo dos cerca de 20 dias de protestos, as pessoas que nos procuraram para aderir ao Partido excede em muito o total dos nossos militantes. Temos agora que decidir o que fazer e como fazer, até porque a aceitação de todas estas candidaturas terá repercussões na nossa estrutura. Para já, decidimos reforçar a formação política de quadros, com particular preocupação em integrar os novos militantes.
O TKP é reconhecido pelos turcos como um Partido de vanguarda, audaz nas acções de massas, justo na análise, nas reivindicações e projecto, mas isso ainda não se traduziu num crescimento da nossa influência eleitoral e implantação social. Agora julgamos que as pessoas estão em melhores condições para ultrapassarem essa barreira, sobretudo os trabalhadores, que pretendemos que não apenas nos reconheçam como válidos, mas que se identifiquem e queiram pertencer a este colectivo que protagoniza e se bate por uma alternativa ao sistema.
Neste contexto, defrontamos ainda a possibilidade de nos tornarmos um grande Partido. Viemos de tempos difíceis. Estivemos na clandestinidade muito tempo e isso marcou-nos. Os comunistas foram sempre os primeiros e principais alvos da repressão, por isso mantemos um grande sentido de conservação do Partido. O que as movimentações de massas nos confirmaram é que a defesa do Partido é não só possível como muito eficaz entre as massas.
Um destacamento de vanguarda de comunistas liderou muitas vezes grandes manifestações. Isso aumentou em muito a popularidade do TKP, mas também a disposição das massas em seguir o Partido e defendê-lo. O nosso jornal diário duplicou a tiragem impressa. As visitas à página de Internet quase que atingiram o meio milhão.

Disseste que a defesa do Parque Gezi desencadeou a movimentação das massas. Que outras questões influenciaram o crescimento e afirmação da revolta?

Do ponto de vista político e cultural, Erdogan é um fascista. Não um fascista tradicional, mas um fascista. Em cada intervenção, procura impor uma ideologia ultra-conservadora. Está a tentar, por exemplo restringir o direito ao divórcio.
Do ponto de vista económico e social, os trabalhadores têm sido espremidos pela imposição de um modelo neoliberal que já chegou ao ponto de destruir os serviços públicos. Agora, o objectivo é liquidar as liberdades e direitos formais, consolidar e avançar para um país de economia capitalista onde os valores islâmicos sejam doutrina de Estado. O povo resiste a ser empurrado para dentro das mesquitas.
Há ainda a questão da sociedade turca ser muito mais jovem do que a da maioria dos países europeus. A média etária ronda os 27/28 anos. O desemprego atinge fortemente a juventude, isto depois de terem aberto universidades em todo o país. O objectivo foi fornecer uma força de trabalho altamente qualificada ao capital.
Sucede que enfrentam uma elevada taxa de desocupação entre os licenciados. Estes milhões de jovens tem um nível de educação superior e sentem-se frustrados, o que se voltou contra o governo. Não têm emprego e não estão dispostos a aceitar uma sociedade islamizada.

A questão Síria teve peso nas movimentações?

A sociedade turca nunca aceitou a política oficial em relação à Síria. O governo jamais conseguiu criar a atmosfera que pretendia. As suas acusações à Síria foram sempre vistas pelo povo como aldrabices. Uma pesquisa recente indicava que 74 por cento dos turcos se opunham a uma intervenção estrangeira na Síria.
Por um lado, isto relaciona-se com o facto de ser evidente para a maioria das pessoas que uma intervenção contra a Síria é um projecto dos EUA. Os turcos odeiam o imperialismo norte-americano. Por outro lado, os alavitas e alauitas turcos sentem-se muito próximos dos sírios.

Acresce que entre a generalidade da população dominou o receio de que uma guerra de agressão desestabilizasse toda a região, e, por consequência, também a Turquia, com repercussões sócio-económicas que o povo sabia que ia pagar.

Depois há a outra face da questão. Até há pouco tempo, Erdogan havia vencido todas as batalhas, todas as eleições e combates políticos internos e externos. Erdogan e o AKP haviam saído sempre por cima. O que a Síria e o povo sírio demonstraram aos turcos é que Erdogan e a sua política podiam ser travados. Isso teve grande impacto e ajudou a vencer o medo. Aumentou os níveis de confiança e a perspectiva de que era possível derrotar Erdogan e o AKP.
Mesmo da parte do imperialismo, julgamos que a não condenação imediata e contundente do movimento de massas na Turquia tem a ver com a tentativa de manter Erdogan controlado. O imperialismo norte-americano apoia Erdogan e o AKP; apoia a sua política e projecto, mas não pretende que tenham demasiada autonomia.
Mesmo a classificação de «primavera turca» pode ser interpretada nesse contexto. As «primaveras árabes» terminaram, ao fim e ao cabo, ao serviço dos interesses dos EUA. Propagandear que o que aconteceu na Turquia foi uma «primavera turca» é, simultaneamente, uma distorção da realidade e um aviso a Erdogan

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