Intervenção de

Recursos hídricos - Intervenção de Miguel Tiago na AR

Regime de utilização dos recursos hídricos

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional,

Foi bastante claro o gradiente de posições que veio a assumir, sempre no sentido da privatização da água.

Em 2005, dizia o Sr. Ministro, no Plenário: «Não será privatizada uma gota de água no meu mandato»; em 2006, dizia: «vamos privatizar de baixo para cima»; em 2007: «Temos um objectivo muito interessante: a valorização do mercado da água».

Portanto, estamos claros quanto à questão da privatização, ou não, da água.

O Sr. Ministro pode dizer que não privatiza a água, mas privatiza e concessiona todas as formas de lá chegar. Portanto, a gestão da água, a forma de chegar à água, de fazer chegar a água às populações, toda ela é privada, muito embora, de acordo com a sua concepção, o bem líquido em si não esteja privatizado.

Mas escusado será dizer que estará à mercê desses interesses, como, obviamente, ficou bem claro na sua intervenção.

Uma questão concreta: esta lei - aliás, isso já foi focado - acarreta outros diplomas. Acarreta, pelo menos, um conjunto de decretos-leis regulamentares, entre os quais se encontra certamente o regime económico e financeiro. Por que é que não conhecemos esse regime? Por que é que esse regime é posto à discussão com a Associação Nacional de Municípios Portugueses, juntamente com o decreto-lei anexo à proposta de lei em discussão, e agora nos é pedido que discutamos pura e simplesmente este documento?

Por que é que, num documento desta natureza, que visa uma autorização legislativa sobre um conjunto de matérias muito vasto da competência relativa da Assembleia da República, o Governo escolhe uma proposta de lei de autorização legislativa em que anexa o projecto de decreto-lei e não uma proposta de lei que, efectivamente, possibilitasse, de uma vez por todas, uma discussão - e com a proposta de lei da água também não foram criadas as condições para uma discussão efectivamente ampla e participada - com a Assembleia da República e com quem mais entender?

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

O Governo e os grupos parlamentares que aprovaram a Lei da Água e a Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos, actualmente em vigor, usaram como capa uma directiva europeia.

Votámos contra essas leis, denunciámos o seu objectivo bem diferente do anunciado. O verdadeiro é a total submissão dos interesses nacionais e das populações ao interesse do lucro das grandes empresas e à lógica neoliberal. É essa espoliação que discutimos aqui, hoje, na primeira sequela legislativa dessas leis: esta proposta de lei, que autoriza o Governo a aprovar o regime de utilização dos recursos hídricos.

Melhor seria, no entanto, dizer que o Governo requer a esta Assembleia uma «carta branca» para fazer absolutamente o que lhe convier na alienação, na mercantilização e no favorecimento de interesses do grande capital sobre a água e os terrenos do domínio público hídrico, e mais ainda. Caiu, finalmente, a capa da directiva.

A autorização legislativa pretendida, abrangendo o que é designado na Lei da Água por domínio hídrico, abarca também a propriedade patrimonial pública e a propriedade particular, designadamente critérios e entidades decisoras da proibição ou permissão do seu uso, cobrança de taxas e rendas, concessões monopolistas para revenda da água, comércio da água e de alvarás de uso.

Não é uma autorização para um regulamento, para uma regulamentação técnica mas, sim, para importantes actos legislativos de impacto muito significativo a nível social e económico e de exercício do poder pelo Governo, nomeadamente em relação a competências e a orçamentos autárquicos.

A autorização legislativa requerida extravasa, e muito, a alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição invocada nesta proposta de lei. Nomeadamente, insere-se simultaneamente nas seguintes alíneas do mesmo artigo: «Regime geral da requisição e da expropriação por utilidade pública»; «Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas»; «Meios e formas de intervenção, expropriação, nacionalização e privatização dos meios de produção e solos por motivo de interesse público, bem como critérios de fixação, naqueles casos, de indemnizações»; «Definição e regime dos bens do domínio público». Uma vastíssima autorização, portanto, um «cheque em branco» legislativo!

O Governo apresenta em anexo à proposta um documento de sérias implicações, de uma ampla esfera de consequências. Verificamos que o Governo lança apenas uns princípios genéricos, garantindo-lhe uma total arbitrariedade na gestão de toda a água.

Por exemplo, o Governo passa a deter competências para concessionar praticamente toda a água, leitos, margens e praias.

Cabe ao Governo decidir dos direitos de utilização privativa e de concessão, por prazos que vão até aos 75 anos, sem que estejam sequer indicados os critérios.

O Governo quer estabelecer um mercado de alvarás, de revenda de águas e de exclusividade de acesso e de uso de terrenos do domínio público hídrico.

O Governo estabelece claramente a transferência da exploração de infra-estruturas públicas, nomeadamente as de fins múltiplos, para uma única empresa e por critérios arbitrários.

O Governo adquire a discricionariedade de negar a autarquias títulos de captação e rejeição de águas residuais.

Esta autorização legislativa acarreta, no entanto, mais legislação do que aquela que o Governo lhe anexa. Esta proposta de lei autoriza o Governo a estabelecer as condições de concessão de utilizações e ocupações do domínio público hídrico, a instituição do mercado de títulos de «captação» e «degradação da água» - e essa é apenas a parte que o Governo decidiu mostrar-nos.

Mas estas condições acarretam também um regime económico-financeiro de taxas, de tarifas e de receitas empresariais, anunciadas na Lei da Água sob os eufemismos de «utilizador-pagador» e de «recuperação dos custos», já ensaiado na audição da Associação Nacional de Municípios Portugueses, que será a consolidação final dos desígnios das grandes empresas que procuram assumir o domínio da água.

De imediato, configura um aumento de colectas directas e indirectas às populações, um aumento de custos de produção e de preços ao consumidor, que invariavelmente, como todas as políticas deste Governo e do anterior, aumentam as desigualdades existentes, penalizam a população em geral, os trabalhadores e os pequenos e médios produtores, principalmente os agrícolas.

O Governo pretende abrir, agora, um prazo de 180 dias para legislar, para decretar não só o que nos faz chegar aqui em anexo, mas também esse regime de taxas e, certamente, muitos outros decretos e portarias.

O Governo, que provavelmente escolherá novamente o mês de Agosto para legislar sobre a matéria, pretende, sobretudo, aprovar os seus diplomas com a menor discussão possível com esta Assembleia.

Lembramos que a Lei da Água foi colocada à discussão pública durante o mês de Agosto de 2005, em plenas férias da generalidade dos interessados, sem publicidade e com prazos muito diminutos para a emissão dos pareceres.

Lembramos a declaração de imprensa de várias entidades associativas e o abaixo-assinado, com mais  de 15 000 assinaturas, pedindo a prorrogação da aprovação, para que um processo de discussão pública, que nunca foi proporcionado, pudesse decorrer.

Pela forma como o Partido Socialista tratou este processo, podemos perceber o seu interesse na publicidade do mesmo ou na ausência dela.

 

Perante estas intenções, o PCP só pode, aliás em coerência com as posições assumidas em relação à Lei da Água, rejeitar firmemente a proposta de lei em apreciação.

Condenamos o processo de mistificação, bem como a ausência de debate público e de debate nesta Assembleia. Continuaremos a defender os interesses e os direitos das populações, continuaremos sempre presentes nas suas lutas pela universalidade do acesso à água e pelo seu carácter público, continuaremos firmes em defesa da água pública.

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