Projecto de Resolução N.º 891/XII/3ª

Recomenda ao Governo a suspensão do processo de reorganização hospitalar e garante uma gestão pública das unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde

Recomenda ao Governo a suspensão do processo de reorganização hospitalar e garante uma gestão pública das unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde

I
Quando o atual Governo tomou posse em junho de 2011, assumiu como prioridade a realização da reforma hospitalar. Dois anos após a tomada de posse não se conhece um estudo global para a reforma hospitalar, mas entretanto no terreno foram-se sucedendo profundas alterações, nomeadamente no Médio Tejo, no Oeste, em Coimbra, no Algarve e em Lisboa com a integração da Maternidade Alfredo da Costa e do Hospital Curry Cabral no centro Hospitalar Lisboa Central e com a concentração de algumas especialidades nas urgências no período noturno.
Aliás, através do Despacho nº 10601/2011 do Ministro da Saúde, publicado no Diário da República nº 162, 2ª série de 24 de Agosto de 2011, foi criado o Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar, colocando à partida como condição a redução de serviços e de despesa, que apresentou o relatório final em novembro de 2011.
Em Abril de 2012, a Entidade Reguladora da Saúde apresenta um relatório intitulado “Estudo para a Carta Hospitalar”, mas que se debruça somente nas especialidades de medicina interna, cirurgia geral, neurologia, pediatria, obstetrícia e infeciologia.
Sabemos que o Governo deu orientações às unidades hospitalares e às Administrações Regionais de Saúde para apresentarem as propostas de reorganização na sua área de intervenção.
A 19 de julho de 2013 é publicado no Diário da República nº 138, 2ª série, o Despacho nº 9595/2013 do Secretário de Estado da Saúde, que cria um grupo técnico no âmbito do seu gabinete “a quem compete no âmbito do planeamento estratégico e operacional da rede hospitalar do Serviço Nacional de Saúde, assegurar a articulação e compatibilização dos planos estratégicos de cada um dos hospitais e das unidades locais de saúde com os planos de Reorganização da Rede Hospitalar, apresentados pelas Administrações Regionais de Saúde e a sua conformidade com orientações definidas para elaboração dos referidos planos, nomeadamente no que se refere às metas financeiras traçadas a nível nacional.” O prazo para a apresentação do relatório com propostas concretas era até 15 de setembro.
Três dias depois, a 22 de julho de 2013 , é publicado no Diário da República nº 139, 2ª série, o Despacho nº 9567/2013 do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, é instituído novo Grupo de Trabalho para proceder à elaboração de relatório (num prazo de 180 dias), em que esteja definida a proposta de metodologia de integração dos diferentes níveis de cuidados de saúde.
Mesmo sem a existência de um estudo global que fundamente as opções de reorganização hospitalar, o Governo vai já concretizando algumas alterações no terreno. Alterações à peça, sem uma visão global da cobertura nacional da rede hospitalar. A manter-se assim, corre-se o risco de o Governo terminar o processo de reorganização hospitalar, sem que exista um estudo nacional que sustente as opções políticas.
No Orçamento do Estado para 2014, nas medidas de consolidação orçamental, surge um corte de 207 milhões de euros, decorrente da reforma hospitalar. Confrontámos o Ministro da saúde no debate do Orçamento do Estado sobre o plano para 2014. Nada foi dito, mas se há uma estimativa de corte de 207 milhões de uros, certamente o Governo já sabe o que vai fazer, caso contrário não era possível fazer tal estimativa.
Há uma clara intenção de ocultar às populações as medidas concretas que pretendem implementar, para tentar impedir a luta e organização das populações e dos profissionais de saúde. Preferem confrontá-los com factos consumados, para procurar evitar um maior período de contestação e eventuais recuos.
As alterações realizadas no Médio Tejo, Oeste, Coimbra, Algarve ou Lisboa foram todas contra a vontade das populações, dos profissionais de saúde e das autarquias. Não houve um amplo processo de discussão com os diversos intervenientes. Todos os processos caracterizam-se por uma imposição do Governo.
As populações abrangidas pelas reorganizações hospitalares estão já a sentir as suas consequências. Reduziram, concentraram e encerraram serviços e valências. Hoje as populações afetadas têm mais dificuldades em aceder aos cuidados de saúde, muitas porque não conseguem suportar os custos, incluindo os custos de deslocação, mas também porque os tempos de espera para consultas, cirurgias ou tratamentos aumentaram.
Muitas vezes o Governo invoca argumentos como a necessidade de eliminação de redundâncias, de sobreposição de serviços para justificar as opções desta reorganização hospitalar ou racionalização de recursos públicos, incluindo os recursos humanos. Mas, o que está verdadeiramente presente são critérios economicistas, para reduzir despesa em saúde a todo o custo e independentemente das consequências na saúde dos utentes.
O Governo refere a necessidade de reduzir camas de agudos, no entanto os últimos dados da OCDE revelam que Portugal tem um número de camas muito inferior à média dos países da OCDE.
A redução da capacidade de resposta ao nível hospitalar, como o Governo está a prosseguir, é contra as populações e o interesse público.

II
Os grupos económicos e financeiros sempre aspiraram poder apropriar-se dos serviços públicos de saúde. Para atingir este objetivo, ao longo de anos procuraram denegrir o Serviço Nacional de Saúde (SNS), tentando transmitir uma imagem de ineficiência, incompetência e incapacidade de resposta às necessidades das populações, para surgirem perante os olhos do povo, como a solução para uma suposta gestão mais eficiente e eficaz.
Atendendo à pressão dos grupos económicos e financeiros e às opções políticas dos sucessivos Governos, ao longo de décadas foi-se trilhando um caminho para corresponder aos objetivos de privatização da saúde. Só não avançou mais porque a Constituição da República Portuguesa e a luta dos utentes e dos profissionais de saúde conseguiram travar.
Porque é na doença que os grupos económicos e financeiros veem o lucro, nomeadamente nos medicamentos, exames, tratamentos, consultas ou cirurgias, há muito que pretendem gerir os grandes hospitais públicos do SNS.
Nos últimos anos foram dados significativos passos no sentido da privatização dos hospitais públicos, com a introdução do modelo de gestão empresarial, onde a vertente economicista e de mercantilização da saúde ganha uma maior dimensão, enquanto a vertente clínica é progressivamente desvalorizada. Primeiro foi a constituição dos hospitais como sociedades anónimas (SA), depois vieram as entidades públicas empresariais (EPE) e simultaneamente foi-se desenvolvimento do modelo de gestão clínica em parcerias público privadas (PPP).
No entanto, o Governo PSD/CDS-PP pretende ir mais longe na privatização dos hospitais SNS. Há claramente a intenção de entregar a gestão dos grandes hospitais públicos a entidades privadas.
Aliás, o conceito de separar o financiador do prestador significa que para o Estado remete-se a função de regular e de financiar a atividade privada com os recursos públicos, cabendo aos privados a prestação dos cuidados de saúde. É um extraordinário negócio, nós pagámos e os privados acumulam os lucros, numa área, onde não existe risco, porque “os clientes” (na perspetiva dos grupos económicos e financeiros) estão assegurados, assim como a atividade assistencial.

III
Em 2003, decorrente da aprovação de uma nova lei sobre a gestão hospitalar, o Governo PSD/CDS-PP constituiu 31 sociedades anónimas com 34 hospitais e assumiu a intenção de alargar a mais 21. Neste Governo os hospitais SA atingiram 45% do número total de camas hospitalares. A criação dos hospitais SA foi acompanhado do capital social inicial, mas que rapidamente se esgotou e passaram a acumular as dívidas que o Estado se recusou a suportar.
Entretanto, no Governo PS, o estatuto jurídico dos hospitais SA passou para EPE. Mas, esta mudança só significou a alteração jurídica da posse do capital social. Dizia o Ministro na altura que esta mudança reduzia o risco de privatização porque nas EPE o capital é exclusivamente público e a extinção por falência é impossível. Adiantava ainda que este modelo oferecia um serviço público em detrimento do lucro e não haveria discriminação negativa de doentes.
Quer PS, quer PSD e CDS-PP, sempre apresentaram o modelo empresarial da gestão hospitalar, como sendo mais eficiente do ponto de vista financeiro e mais eficaz na prestação de cuidados de saúde, desvalorizando a gestão direta da Administração Pública. Dizia-se que iriam pôr fim às derrapagens, aos gastos supérfluos e que iriam reduzir as dívidas. Chamou-se gestores para gerirem os hospitais, abandonando a gestão por profissionais de saúde, nomeadamente de médicos.
Ao fim de uma década de gestão hospitalar empresarial, verificamos que nenhum dos objetivos foi alcançado. A dívida continuou a aumentar e a gestão por gestores da confiança política do Governo ou gestores de empresas privadas não trouxeram vantagens nem melhoria na gestão hospitalar.
Quer com hospitais SA, quer com hospitais EPE, manteve-se o modelo de contratualização da produção assistencial.
E manteve-se também a política de subfinanciamento crónico dos hospitais, de não resolução das ineficiências estruturais e de organização, sem a realização de investimentos nas infraestruturas, que permita melhorar a qualidade dos cuidados de saúde prestados e otimizar a utilização dos recursos públicos.
A transformação dos hospitais públicos do SNS em entidades SA ou EPE possibilitou em grande linha a retirada de direitos aos trabalhadores e contribuiu para a desregulamentação das carreias dos profissionais de saúde, elemento essencial para o desenvolvimento do SNS. As carreiras como fator de valorização dos profissionais de saúde imprimiram um incremento da qualidade no SNS. Foram introduzidos os contratos individuais de trabalho com condições de trabalho diferentes dos contratos de trabalho em funções públicas, foram implementados regimes de trabalho de 40h e reduziu-se remunerações, entre outros.
A criação dos hospitais com o estatuto jurídico de SA ou EPE foi responsável pelo ataque ao regime público de emprego e aos seus trabalhadores.

IV
O subfinanciamento dos hospitais públicos persiste ao longo dos anos, tendo-se agravado agora sob a governação de PSD/CDS-PP.
Sem o financiamento adequado dos hospitais, que tenha em consideração a prestação dos cuidados de saúde necessários; a valorização e o cumprimento dos direitos dos profissionais de saúde, incluindo a sua progressão profissional; a contratação dos profissionais de saúde necessários; os investimentos em equipamentos e infraestruturas, não se garante a qualidade dos cuidados de saúde prestados no tempo adequado.
Pelo menos, desde 2005, os custos totais dos hospitais EPE são superiores aos proveitos totais, e a diferença entre custos e proveitos tem vindo aumentar gradualmente ano, após ano, agravando a já difícil situação de funcionamento em que se encontram os hospitais e comprova que o financiamento dos hospitais não corresponde às suas necessidades.
Nos últimos anos, apesar do aumento de número de entidades EPE, o seu financiamento global tem vindo a ser reduzido.
Ano 2011 2012 2013 2014
Orçamento inicial (M€) 4.445.150.303 4.225.437.405 4.158.515.505 4.075.000.000

Associando a continuidade da política de subfinanciamento das entidades EPE à obrigatoriedade da aplicação da lei dos compromissos e dos pagamentos em atraso, assegurar o funcionamento é muito mais difícil, sem colocar em causa os cuidados de saúde prestados aos cidadãos. A aplicação da lei dos compromissos e dos pagamentos em atraso não veio resolver nenhum problema, só agravou os já existentes.
No essencial o aumento das dívidas corresponde aos subfinanciamento e é aqui que está a questão central.
Hoje já temos hospitais em que sua atividade está bastante condicionada, onde falta material clínico básico, onde a dispensa de medicamentos está claramente comprometida ou onde se adiam cirurgias.

V
As parcerias público-privadas na área da saúde iniciaram-se para a construção dos hospitais, num modelo chave na mão, mas rapidamente evoluíram para a gestão clínica dos hospitais, o que há muito os grupos económicos e financeiros pretendiam apropriar-se.
Ao longo dos anos este modelo demonstrou ser ruinoso para o Estado, colocando o interesse público em causa. Contrariamente ao que apregoaram, quer PSD, CDS-PP e PS, o modelo PPP correspondeu a custos mais elevados e menor qualidade.
Para as PPP, a política de financiamento é diferente. Se para os hospitais públicos há redução significativa e progressiva do financiamento, para as PPP, ano após ano regista-se um aumento. Assim foi mais uma vez no Orçamento do Estado para 2014. Há dois pesos e duas medidas, aquilo que tem de se cortar nos serviços públicos, já não se pode reduzir quando a gestão é assumida por um grupo económico ou financeiro, para lhes garantir o lucro.
Ano 2011 2012 2013 2014
Orçamento inicial (M€) 232,2 320 377 418

De 2011 a 2014, os encargos com as PPP na área da saúde quase que duplicaram.
2012 (€) 2013(€) 2014(€) Variação 2013/2014 Variação 2012/2014
H Braga 128.000.000 136.500.000
H Cascais 64.000.000 67.000.000
H Loures 65.000.000 85.000.000
H Vila Franca de Xira 49.000.000 81.000.000
Total 306.000.000 369.500.000 378.030.142 (negociação) 8.530.142(2,3%) 72.030.142(23,5%)

Segundo os dados fornecidos pelo Ministério da Saúde comprova-se a intenção de aumentar os encargos com os hospitais PPP, e em três anos regista-se um aumento de 23,5%. Para 2014, o Governo prevê uma negociação, mas em vez de reduzir os encargos, prevê aumentá-los, o que caracteriza bem, não só a sua opção política, mas também a sua natureza de classe, tudo fazer para beneficiar os grupos económicos e financeiros, em detrimento do interesse público.
Num recente relatório do Tribunal de Contas sobre uma auditoria aos encargos do Estado com as PPP na área da saúde, destaca-se o seguinte:
- Estima-se que os encargos com os 4 hospitais PPP em 30 anos atinjam 10,445 milhões de euros;
- As estimativas divulgadas pelo Ministério das Finanças não tem em consideração cerca de 6 mil milhões de euros de encargos relativos a 20 anos de serviços clínicos não contratualizados, verificando-se assim uma subestimação dos reais encargos com as PPP, considerando-se apenas os compromissos contratuais assumidos (4.143 milhões de euros) e não os encargos totais (10.445 milhões de euros).
O Tribunal de Contas conclui ainda que “apesar do apuramento do value for money das PPP das grandes unidades hospitalares na fase de contratação, ainda não existem evidências que permitam confirmar que a opção pelo modelo PPP gera valor acrescentado face ao modelo de contratação tradicional”.
Ao mesmo tempo que os encargos do Estado com os hospitais PPP aumentam, frequentemente dão-nos conta de diversos incumprimentos pelas entidades gestoras dos acordos estabelecidos com o Estado. Por exemplo, no Hospital de Braga onde se sucedem episódios que atropelam não só o contrato que foi celebrado como vão contra toda e qualquer boa prática na prestação de cuidados de saúde e que ferem os direitos dos doentes, como o atestam a não dispensa de medicamentos a doentes oncológicos e a doentes com HIV/SIDA, a ausência de algumas especialidades médicas 24h/dia na urgência, adiamento de cirurgias pré-programadas, em alguns casos já depois dos doentes internados e a existência de um só anestesista para diversas cirurgias que estavam a decorrer em simultâneo.
A experiência demonstra-nos que o modelo de gestão em PPP não serve os interesses do país, nem dos utentes, servindo só como um instrumento para a transferência de recursos públicos que poderiam ser investidos no SNS, para os grupos económicos e financeiros.

VI
Uma correta planificação da rede hospitalar, que cubra a totalidade do território e com capacidade de resposta face às necessidades das populações, sem a ponderação de critérios mercantilistas, é o que garante a qualidade e a eficiência dos serviços públicos de saúde.
Só o SNS está em condições de garantir a universalidade, a acessibilidade e a qualidade e eficiência dos cuidados de saúde prestados às populações.
É neste sentido que propomos ao Governo que suspenda o atual processo de reorganização hospitalar e faça um planeamento correto da rede hospitalar, integre todos os hospitais do SNS no Setor Público Administrativo, assim como garanta o seu adequado financiamento, assegurando assim o direito à saúde consagrado na Constituição da República Portuguesa e a valorização dos profissionais de saúde.

Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projeto de
Resolução
A Assembleia da República recomenda ao Governo que:
1 - Suspenda o processo de reorganização hospitalar em curso e reponha as valências e serviços hospitalares que existiam nas unidades hospitalares do Oeste, Coimbra, Algarve, Médio Tejo e que a Maternidade Alfredo da Costa e o Hospital Curry Cabral sejam unidades autónomas;
2 - Inicie um novo processo de reorganização hospitalar assente nos seguintes pressupostos:
a) Que considere as necessidades de cuidados de saúde das diversas camadas da população, tendo em conta o meio envolvente em que cada unidade hospitalar se insere, nomeadamente acessibilidades, rede de transportes públicos e o poder de compra;
b) Que atenda à correspondência de uma rede que cubra a totalidade do território nacional e que considere a articulação com os cuidados de saúde primários;
c) Que realize uma ampla discussão com os profissionais de saúde e as suas organizações representativas, as autarquias e as populações.
3 – O fim da empresarialização dos serviços públicos de saúde, através da reintegração dos Hospitais EPE no Setor Público Administrativo, que salvaguarde o carácter público de todas as unidades de saúde do SNS e simultaneamente permita a implementação de um modelo de gestão pública, democrática, participada e desgovernamentalizada.
4 – Reforce o financiamento dos hospitais públicos, atendendo às reais necessidades dos cidadãos na prestação de cuidados de saúde e da valorização dos profissionais de saúde, garantindo a progressão na respetiva carreira.
5 - Prepare um plano estratégico com vista à reintegração dos hospitais no modelo de gestão de PPP no Setor Público Administrativo no prazo de seis meses, garantindo a sua integração no Setor Público Administrativo no prazo máximo de dois anos.
6 – No período de extinção dos hospitais PPP e a sua subsequente transição para o Setor Público Administrativo, os encargos do Estado com estas PPP, garantem apenas as transferências para as entidades gestoras das receitas obtidas, assegurando os recursos adicionais à prestação dos cuidados de saúde e à manutenção dos postos de trabalho.

Assembleia da República, em 20 de dezembro de 2013

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