Desde que tomou posse em Junho de 2011, o Governo, através do Ministério da Defesa Nacional, definiu como prioridade política a privatização dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
Foi sempre este o objetivo estratégico assumido pelo novo Governo do PSD e do CDS-PP para o futuro dos ENVC, primeiro de forma implícita, depois de forma cada vez mais assumida. A este objetivo, inteiramente coincidente com os interesses próprios de grupos privados nacionais e/ou estrangeiros, subordinou o Governo todos os atos, decisões e orientações políticas que adotou desde a sua tomada de posse, incluindo um conjunto de omissões, atrasos ou mesmo a ausência de respostas às necessidades empresariais mais prementes dos ENVC.
1. O Plano de Reestruturação herdado do Governo anterior
Logo em 3 Julho de 2011, o Governo do PSD/CDS, confrontado com a existência de um autodesignado Plano de Reestruturação dos Estaleiros Navais herdado do Governo Sócrates, que fora concebido e desenvolvido sem consulta ou participação dos trabalhadores dos ENVC, e que previa o despedimento “imediato” de 380 dos 720 trabalhadores que então trabalhavam na empresa, em vez de aceitar a exigência generalizada que reclamava a sua substituição urgente, limitou-se a suspendê-lo e a adiar uma decisão sobre o mesmo para setembro de 2011, por altura da assembleia-geral da EMPORDEF, holding estatal que detém o capital social dos ENVC.
O PCP considerou então que a defesa dos ENVC como empresa pública, bem como a defesa dos seus postos de trabalho e a consideração do valor estratégico único desta empresa para a economia nacional, não eram compatíveis com mais hesitações e delongas. Por isso, o PCP tomou a iniciativa de apresentar um Projeto de Resolução (PJR n.º 5/XII/1.ª) que visava comprometer o Governo com a apresentação imediata de um verdadeiro plano de viabilização da empresa, o qual foi discutido em especialidade na Comissão Parlamentar da Defesa e rejeitado em plenário da Assembleia da República no dia 29 de julho de 2011 pelos votos da maioria parlamentar e o apoio parcial do Partido Socialista. Neste projeto de resolução, exigia-se que o referido Plano de Reestruturação dos ENVC que previa o despedimento de mais de metade dos seus trabalhadores, apenas suspenso pelo governo PSD/CDS, fosse objeto de uma “reanálise urgente e articulada, com a participação dos trabalhadores da empresa, tendo em conta a defesa da capacidade própria de um estaleiro naval único em Portugal e a sua importância estratégica num contexto de defesa da capacidade produtiva industrial do País”, recomendando igualmente que tal reanálise “valorizasse e tivesse em conta a importância económica e social, mormente em Viana do Castelo e em todo o Alto Minho, desta empresa pública de construção naval”.
A rejeição desta iniciativa política mostrou claramente, logo em julho de 2011, que o novo Governo do PSD/CDS não pretendia rever e/ou substituir o Plano de Reestruturação herdado da gestão do PS. Adiar soluções era então a única coisa que o Governo anunciava e pretendia fazer, ao mesmo tempo que deixava, certamente de forma intencional, que a situação nos ENVC se continuasse a degradar, com uma gestão sem capacidade nem margem de manobra e uma tutela que reiteradamente se recusava a garantir as condições de tesouraria minimamente indispensáveis para colocar a empresa a trabalhar e a poder honrar contratos já estabelecidos.
Já sem qualquer surpresa, e mesmo face à pressão dos trabalhadores dos ENVC que continuavam fortemente mobilizados e em 2 de setembro de 2011 se deslocaram a Lisboa para conhecer decisões que tinham sido anunciadas para a assembleia-geral da EMPORDEF, o Ministério da Defesa Nacional voltou a adiar uma decisão, pretensamente para o final do mês de outubro de 2011. Depois disto, declarações quase patéticas foram produzidas de forma aleatória, fosse por responsáveis governamentais, fosse por responsáveis da EMPODEF, que chegaram a justificar o sistemático adiamento de soluções com a existência de “três novos projetos de investimento, de quatro parcerias possíveis e de seis propostas de carteira comercial para a construção e reparação de navios”(…?), assegurando sempre (com os resultados que infelizmente se conhecem) que “tudo estava a ser feito para garantir o futuro da empresa”.
2. O contrato para a construção de navios para a Venezuela. A paralisia forçada da empresa.
A situação na empresa, como o Governo bem sabia e era totalmente esperável, continuava a degradar-se de forma insustentável e profundamente indigna para os cerca de 630 trabalhadores que permaneciam ao serviço dos ENVC e continuavam a lutar em sua defesa.
O contrato para construção de dois navios asfalteiros estabelecido com uma empresa estatal venezuelana, no valor aproximado de 130 milhões de euros, para o qual os ENVC tinham já recebido um adiantamento de cerca 12,8 milhões de euros, dez por cento do valor do contrato, nunca arrancara e continuava escandalosamente paralisado no final de 2011. Entretanto, centenas de trabalhadores permaneciam, no fundamental, inativos, embora a administração e a tutela continuassem a garantir (com a exceção do mês de Dezembro de 2011) o pagamento atempado de salários – aliás parcialmente assegurados com aquele adiantamento contratual.
“Faltavam meios financeiros que permitissem avançar com a aquisição de aço necessário” para que a obra pudesse entrar em “estaleiro”, dizia a administração dos ENVC. O Governo lavava as mãos do problema e recusava qualquer tipo de adiantamento, não obstante a programação do contrato com a Venezuela permitir receber de forma faseada “tranches” sucessivas de pagamentos à medida que a obra fosse evoluindo, as quais, evidentemente, iriam assegurar condições de liquidez aos ENVC durante o desenvolvimentos destes contratos.
Quanto a novos contratos e encomendas, assume hoje porventura mais relevância e significado a forma muito mal explicada como a administração dos ENVC perdeu para o Grupo Martifer, que detém um estaleiro de construção naval de pequena dimensão em Aveiro (a NavalRia), a possibilidade de vir a construir dois navios-hotel para a empresa Douro Azul, destinados a operações turísticas no Rio Douro.
Simultaneamente, a administração dos ENVC deixou reduzir a mínimos históricos e quase escandalosos a faturação da empresa na área da reparação naval, o que mostra bem a ineficiência e falta de empenho da gestão que o Governo PSD/CDS nomeara para a empresa. De valores rondando os 19 e 13 milhões de euros, nos anos de 2009 e 2010, respetivamente, a faturação dos ENVC no setor da reparação naval desceu em 2011 para 8,4 milhões de euros e em 2012 atingiu um mínimo de 3,0 milhões de euros!
Quem neste momento e nesta conjuntura quisesse genuinamente defender os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, preservar os postos de trabalho e manter a perspetiva desta empresa pública continuar a desempenhar um papel central na construção naval em Portugal, tinha que procurar colocar a empresa em pleno funcionamento, assumindo os contratos e compromissos que ainda detinha – com a Venezuela e com a Marinha – e que lhe asseguravam uma carteira de encomendas para um horizonte mínimo de trabalho pleno de cerca de dois/três anos.
Foi neste contexto que o PCP apresentou em 13 de janeiro de 2012 o Projeto de Resolução n.º 177/XII/2.ª, que recomendava ao Governo que “garantisse aos ENVC o financiamento necessário à aquisição das matérias-primas, da maquinaria e ao pagamento dos salários indispensáveis ao início imediato da construção dos navios asfalteiros contratados com a Venezuela”, o qual foi escandalosamente rejeitado pela maioria parlamentar na sessão plenária do Parlamento realizada no dia 3 de Fevereiro de 2012, num debate que contou com a presença de uma vasta delegação de trabalhadores dos ENVC nas galerias da Assembleia da República.
3. O arranque formal do processo de privatização dos ENVC
Em Março de 2012, finalmente de forma explícita, o Ministro da Defesa Nacional começou a destapar o véu das verdadeiras intenções do Governo. Depois de, segundo comunicados oficiais, “ter auscultado o mercado” para se assegurar se haveria candidatos à privatização dos ENVC, e “evitar falsas esperanças aos mais de 600 trabalhadores ali existentes”, o Governo apresentou publicamente a sua intenção de “nas próximas oito semanas fechar o modelo em que a reprivatização da empresa poderá ocorrer”, ao que se seguirá um prazo de três meses para análise de propostas.
A vida da empresa passou a ficar totalmente dependente desta suicida estratégia de privatização, finalmente assumida de forma explícita pelo Governo. Nos ENVC quase nada se fazia, a reparação naval prosseguia aos ritmos mínimos atrás quantificados, a construção dos asfalteiros não arrancava, a possibilidade de incumprimento dos contratos com a Venezuela era crescente e obrigava mesmo a uma recalendarização da construção dos dois navios que, aparentemente terá sido aceite pelos responsáveis venezuelanos.
Neste contexto, o Ministro da Defesa Nacional anunciou que os termos do concurso público internacional para a reprivatização dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo seriam conhecidos em junho, mas só em 13 de Agosto, com a publicação do Decreto-Lei n.º 186/2012, é que ficou formalmente conhecido o “processo de reprivatização do capital social da Estaleiros Navais de Viana do Castelo, SA”, regulado, no essencial, por este diploma legal e pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 73/2012, de 29 do mesmo mês de agosto de 2013, que fixou o respetivo Caderno de Encargos.
Cerca de catorze meses depois da sua posse, o Governo concretizou com estas duas iniciativas legislativas a sua intenção estratégica de privatizar os Estaleiros Navais de Viana do Castelo e dar de mão beijada esta empresa pública única em Portugal aos grupos económicos privados que há muito esperavam tomar conta da empresa. De facto, a privatização dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo era há muito intenção e objetivo central de vários governos. Embora a sua inclusão não integrasse de forma inteiramente explícita o Memorando da Troica negociado e assinado em 11 de Maio de 2011 pelo PS, PSD e CDS-PP, a verdade é que a privatização desta empresa pública tinha sido também objetivo central do Governo Sócrates já que, por exemplo, constava do Programa de Estabilidade e Crescimento 2010-2013 (página 36), um dos “tristemente famosos” PEC, e também do Orçamento do Estado para o ano de 2011 (página 165 do respetivo relatório).
Vale a pena, a este propósito, recordar os termos com que os trabalhadores da empresa reagiram face à confirmação da notícia da privatização dos ENVC. Numa moção aprovada em Reunião Geral de Trabalhadores, realizada precisamente em agosto de 2012, para além de se recordar a contestação à reprivatização dos ENVC, os trabalhadores da empresa aprovaram por unanimidade a exigência dirigida ao Governo e à Administração da empresa para “não ficarem estagnados à espera da triste reprivatização mas que procurem alternativas de trabalho para a empresa, pois não tem tido a capacidade para ocupar toda a sua mão-de-obra disponível, como é sua obrigação”.
Perante o avanço desta estratégia de venda a grupos privados nacionais e/ou estrangeiros de uma empresa pública industrial fundamental para o eventual desenvolvimento de uma nova fileira do mar em Portugal, o PCP apresentou, nos termos constitucionais próprios uma iniciativa tendente a efetuar a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 186/2912, de 13 de agosto.
Assim, em 3 de Setembro de 2013, os 14 Deputados do Grupo Parlamentar do PCP subscreveram a Apreciação Parlamentar n.º 30/XII/2.ª do atrás referido Decreto-Lei, com vista a proceder ao respetivo debate no plenário da Assembleia da República. Este debate foi agendado para o dia 20 de outubro de 2012, no qual voltaram a estar presentes algumas dezenas de trabalhadores dos ENVC, e durante o qual o PCP apresentou um Projeto de Resolução (PJR n.º 480/XII/2.ª) que visava a revogação do Decreto-lei n.º 186/2012, de 13 de agosto, isto é, visava extinguir o processo de privatização dos ENVC. Este objetivo, infelizmente, foi na altura rejeitado pela maioria parlamentar de suporte ao Governo PSD/CDS.
Entretanto, em 7 de Setembro de 2012 arrancou a “primeira fase” do processo de privatização, com a entrega de propostas não vinculativas por parte de um conjunto de potenciais interessados na compra dos ENVC. Depois, foi fixado em 12 de Outubro (logo prorrogado para 24 de outubro), o prazo para a entrega de propostas vinculativas, tendo sido entregues propostas de quatro grupos, o português Atlanticeagle Shipbuilding, Lda., o norueguês Volstad Maritime AS, o russo JSC RiverSea Industrial Trading e o brasileiro Rio Nave serviços Navais, Ltda., sendo que, na fase final do processo, foram apenas consideradas as propostas destes dois últimos grupos.
Do que nesta fase foi sendo publicado sobre a forma como estaria a decorrer a análise das propostas, ficou a saber-se que nenhuma destas duas propostas vinculativas chegaria sequer aos 10 milhões de euros, sendo que o Decreto-Lei de privatização e o respetivo Caderno de Encargos se tinham proposto levar a concurso a compra de uma empresa cujo capital social estava avaliado em 30 milhões de euros!...
Ainda em setembro de 2012, o Governo, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º79/2012, de 20 de setembro, deu mais uma machadada nos ENVC e na possibilidade da empresa poder dispor de uma confortável carteira de encomendas. Com esta decisão, o Governo autorizou o Ministro da Defesa Nacional a revogar os contratos ainda existentes entre o Estado Português e os Estaleiros Navais de Viana do Castelo para a construção de um conjunto de navios destinados à Marinha, com o simples pretexto de manter os respetivos projetos no domínio público no contexto do processo de privatização em curso, e com o argumento recorrente “das contas públicas portuguesas não permitirem atualmente a execução do Programa tal como estava delineado desde o início, admitindo-se que o mesmo será retomado assim que existam condições para isso”.
3. Da suspensão à anulação do processo de privatização. A concessão de terrenos, forma encapotada de privatização dos ENVC
Em 27 de Dezembro de 2012, o Governo decidiu suspender o processo de privatização dos ENVC devido ao facto da Comissão Europeia ter decidido iniciar um processo de investigação sobre eventuais ajudas públicas concedidas entre 2006 e 2010 aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e que podiam, na opinião do Governo, colocar em risco as condições acordadas no âmbito do Caderno de Encargos do concurso público para a privatização da empresa. Isto é, quem ficasse com os ENVC seria obrigado a devolver ao Estado 181 milhões de euros de ajudas públicas (que evidentemente nunca recebera), situação que seguramente afastaria os interessados na privatização, cujas ofertas vinculativas de compra nem chegaram aliás a 10 milhões de euros.
Assim, e antes que os potencias candidatos fossem confrontados com essas eventuais novas condições de compra e pudessem desistir do concurso, o Governo decidiu antecipar esse cenário e anular o processo de privatização. É isso que faz, quase quatro meses depois, em 18 de Abril de 2013, quendo o Governo anunciou ter decidido “encerrar definitivamente” o processo de reprivatização dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), face à publicação oficial, em 3 de Abril, do processo de investigação lançada pela Comissão Europeia às ajudas estatais concedidas à empresa ENVC entre 2006 e 2010, no valor de 181 milhões de euros. A decisão foi tomada, de acordo com o Governo, por “não estarem acautelados os interesses patrimoniais do Estado e a concretização dos objetivos subjacentes ao processo de alienação das ações da ENVC, S.A” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 27/2013, de 24 de abril de 2013).
Parecia que esta decisão ia ao encontro do que o PCP reclamara em Outubro de 2012 e que tinha sido rejeitado pela maioria PSD/CDS e pelo seu Governo: anular o processo de privatização.
Assim seria se depois de anular o processo de privatização, o Governo tomasse a decisão de manter os ENVC na esfera pública, de viabilizar a empresa e de lhe conferir condições de gestão, administrativas e financeiras para a defender e aos postos de trabalho.
Não foi nada isto o que o Governo fez. Antevendo dificuldades externas em transferir para mãos privadas os ENVC através de uma venda direta feita através de um concurso “clássico” de privatização, o Governo quer agora fazer essa mesma transferência, vendendo apenas os terrenos, as instalações e os equipamentos, depois de liquidar a empresa e de despedir os trabalhadores.
Na realidade, em conferência de imprensa realizada no mesmo dia 18 de Abril de 2013, o Ministro da Defesa Nacional, informou que o Governo estaria a trabalhar num “modelo alternativo» que permita potenciar aquele ativo estratégico e que, em simultâneo, vá ao encontro das pretensões europeias”, sendo que tal alternativa se iria traduzir na abertura de um concurso público internacional para a subconcessão dos terrenos onde operam os ENVC. Na mesma ocasião, o Governo anunciou a realização de um “concurso público internacional para a venda do navio Atlântida”, e anunciou também que iria disponibilizar os meios necessários para que se pudesse avançar com a construção dos dois navios asfalteiros para a Venezuela, cuja construção se encontrava paralisada há quase dois anos.
Em audição parlamentar realizada dias após esta decisão, ficou bem claro o que significam para o Governo os “detalhes deste processo de concessão dos terrenos”. Nesta reunião parlamentar ficaram bem claras as intenções do Governo. Esta nova fórmula escolhida pelo Governo para transferir para mãos privadas a atividade de construção naval em Viana do Castelo irá implicar a extinção da empresa Estaleiros Navais de Viana do Castelo; o despedimento coletivo dos trabalhadores com a extinção de todos os 630 postos de trabalho, nenhum deles estando assegurado ou preservados direitos ou antiguidades pelo eventual futuro concessionário; a possibilidade desse futuro concessionário poder utilizar terrenos e equipamentos para qualquer outra atividade industrial totalmente desligada da construção naval; a possibilidade da construção dos navios asfalteiros, caso não haja interesse do futuro concessionário, poder ser suspensa e a respetiva construção ser deslocada para outras instalações.
Usando o pretexto do processo de investigação a pretensas ajudas públicas “ilegais”, lançado pela Comissão Europeia, o Governo deixou “cair a máscara” e mostrou a forma politicamente premeditada como geriu o dossiê ENVC desde Junho de 2011. De facto:
- Quando em Julho de 2011, o PCP propôs a elaboração urgente de um Plano de Viabilização que defendesse o futuro dos ENVC e dos seus postos de trabalho, a maioria parlamentar do PSD e do CDS rejeitaram essa via e o Governo insistiu em adiar, adiar, nunca avançando com qualquer estratégia de reestruturação da empresa. Bem pelo contrário, nomeou e manteve uma administração incompetente e desmotivada, incapaz de captar novos contratos (nem sequer os da empresa Douro Azul), e deixou degradar a mínimos insustentáveis a atividade de reparação naval dos ENVC;
- Quando no final do ano de 2011 era patente a degradação humana e profissional nos ENVC, com centenas de trabalhadores e suas famílias a reclamarem trabalho e um tratamento digno da parte do Governo, exigindo o arranque de obras contratualizadas (dois navios para a Venezuela e pelo menos quatro da vasta encomenda de navios para a Marinha), e o PCP propôs, em janeiro de 2012, que os ENVC fossem dotados dos meios financeiros mínimos para poder avançar com a obra dos navios para a Venezuela, a maioria parlamentar do PSD e do CDS voltou a rejeitar a via da recuperação da empresa, enquanto o Governo preparava o terreno para anunciar e fazer avançar a privatização da empresa. Se em janeiro de 2012, o argumento da maioria e do Governo para rejeitarem a proposta do PCP era a falta de meios financeiros mínimos (cerca de 15 a 20 milhões de euros de um contrato de 130 milhões) para entregar aos ENVC, como é que agora, em Maio de 2013, esses meios financeiros já existem e a obra “pode avançar” mesmo que em condições muito pouco claras quanto ao seu desenvolvimento efetivo?
- Quando, durante o ano de 2012, o Governo insistiu no processo de privatização dos ENVC e a maioria parlamentar rejeitou a sua anulação proposta pelo PCP em Setembro de 2012, deveria saber com alguma certeza que esse processo de venda poderia ser bloqueado pelas autoridades comunitárias. O Governo tem assessorias jurídicas e financeiras pagas a preço de ouro, certamente muito conhecedoras da legislação comunitária na área da concorrência; por isso, deveria saber que o processo de privatização poderia vir a ser inviabilizado por causa de ajudas públicas concedidas aos ENVC e que a empresa, ou seja, o futuro comprador teria que devolver. No entanto, o Governo insistiu neste processo e torna-se bem plausível que toda esta estratégia tenha sido concebida para permitir que, uma vez anulado o processo de privatização, fosse possível impor uma alternativa ainda mais favorável para os potenciais interessados em ficar com as infraestruturas da empresa, extinguindo a empresa, despedindo os trabalhadores e vendendo, totalmente livre de encargos ou ónus os terrenos, as infraestruturas e os equipamentos que tinham sido dos ENVC, entretanto extintos.
4. O pretexto do Governo para avançar com a extinção dos ENVC
Em Abril de 2013, consumada a decisão da Comissão Europeia que na prática inviabilizaria a compra dos ENVC em condições financeiras favoráveis, o Governo encontrou o “pretexto adequado” para anular o processo de privatização encetado em Agosto de 2012 sem deixar de retomar e dar continuidade ao objetivo estratégico inicial de fazer passar para as mãos de grupos privados nacionais ou estrangeiros a posse daquelas infraestruturas. Com esse pretexto, o Governo faz agora avançar um outro processo de privatização encapotado, feito com a extinção prévia dos ENVC e o despedimento dos seus trabalhadores, abrindo a porta a que grupos privados fiquem com tudo limpo de trabalhadores e de encargos, passando a usar os terrenos, eventualmente os equipamentos, adquirindo apenas o que lhes interessa em condições financeiras ainda mais favoráveis que através do processo “clássico” de privatização.
Em vez de uma privatização formalmente condicionada por um caderno de encargos, o Governo prepara-se para agora lançar uma autêntica privatização selvagem, sem atividade prevista, sem trabalhadores e sem qualquer estratégia que ponha ou possa colocar aquela vasta infraestrutura ao serviço real dos interesses económicos e sociais do Alto Minho e do País, muito menos ao serviço da recentemente tão mediatizada Economia do Mar.
O pretexto usado pelo Governo para impor esta privatização encapotada é totalmente falacioso e enviesado. O facto do processo de investigação da Comissão Europeia às pretensas ajudas públicas concedidas aos ENVC entre 2006 e 2010 inviabilizar o avanço do processo de privatização, não significa, de forma alguma, que os termos da decisão das autoridades comunitárias determine a extinção dos ENVC, o despedimento dos seus trabalhadores ou imponha como a realização de um qualquer concurso para a concessão dos terrenos.
Esta é uma escolha anunciada pelo Governo do PSD e do CDS-PP que segue um roteiro previamente traçado de destruição dos ENVC, fosse através da sua privatização, fosse através da sua extinção.
A verdade é que o processo de investigação comunitária permite outras opções, incluindo o estabelecimento de um plano de reestruturação e viabilização empresarial através do qual as ajudas públicas sobre as quais impende aquele processo de investigação poderão ser aceites e integradas face à legislação comunitária aplicável.
Uma consulta ao texto da Comissão Europeia permite claramente perceber a existência de alternativas que até agora o Governo parece apostado em não explorar. Transcrevem-se, por isso, algumas das passagens mais relevantes desta decisão da CE.
No capítulo 4, respeitante às “Observações de Portugal” (leia-se observações entregues pelo atual Governo de Portugal), apresentadas no âmbito do processo de investigação em curso, pode ler-se:
“No que respeita á situação económica da ENVC, Portugal admite que a ENVC deve ser considerada uma empresa em dificuldade na aceção das Orientações comunitárias relativamente a auxílios estatais de emergência e à reestruturação de empresas em dificuldade (a seguir designadas Orientações E&R)” (parágrafo 26).
No capítulo 5, respeitante à “Apreciação” pode também ler-se que:
“Portugal parece admitir que a ENVC deve ser considerada uma empresa em dificuldade na aceção das Orientações E&R. No entanto, tendo em conta o argumento das autoridades portuguesas, segundo o qual as medidas estão em conformidade com o princípio de operador numa economia de mercado, a Comissão considera necessário examinar se a ENVC poderia ser considerada como empresa em dificuldade na altura em que as medidas foram tomadas”.(parágrafo 34).
“Para além dos prejuízos significativos da ENVC, que constituem uma primeira indicação das dificuldades da empresa, afigura-se também que estão presentes alguns dos outros sinais habituais de uma empresa em dificuldade. Por exemplo, o volume de negócios da ENVC tem vindo a diminuir constantemente desde, pelo menos, 2008, passando de 129,62 milhões de euros nesse ano para 55,58 milhões de euros em 2009, para 20,22 milhões de euros em 2010, para 15,11 milhões de euros em 2011 e para 3-5 milhões de euros para o ano até 30 de Junho de 2012”. (parágrafo 39).
Concluindo, neste mesmo capítulo 5, no parágrafo 41, que:
“Face ao exposto e com base nas informações disponíveis, a Comissão é, na presente fase, de opinião que a ENVC poderia ser considerada como uma empresa em dificuldade na aceção das Orientações E&R na altura em que as medidas foram concedidas no passado”.
Mais à frente, ainda no subcapítulo 5.4., “Compatibilidade das medidas anteriores com o mercado interno” pode ainda ler-se:
“De qualquer modo e dada a natureza das medidas anteriores e das dificuldades da ENVC, os únicos critérios pertinentes afiguram-se ser os relativos aos auxílios de emergência e à reestruturação concedidos a empresas em dificuldade (…) Se a CE chegar à conclusão de que as medidas anteriores constituem um auxílio estatal, tal auxílio deve então normalmente ser apreciado à luz dos critérios das Orientações E&R” (parágrafo 62).
“No que se refere aos auxílios à reestruturação, tal como definidos na secção 3.2 das Orientações E&R, a CE assinala que Portugal não notificou à Comissão qualquer das medidas acima identificadas como auxílios à reestruturação e, por conseguinte, não conseguiu demonstrar que estão presentes quaisquer dos elementos necessários para que sejam consideradas como tais (plano de reestruturação, contribuições próprias, medidas compensatórias, etc).” (parágrafo 64).
“Além disso, a Comissão assinala que Portugal não apresentou quaisquer elementos que pudessem assegurar o cumprimento dos requisitos necessários para considerar um auxílio à reestruturação como compatível (…)” (parágrafo 66).
Face a todos estes considerandos, a Comissão acaba por concluir no parágrafo 67 que:
“Por conseguinte, a Comissão não dispõe de elementos de prova para concluir se qualquer destas medidas pode ser considerada compatível com base nas Orientações E&R enquanto auxílio estatal de emergência ou à reestruturação”.
E logo de seguida, na sua Decisão, a Comissão Europeia determina que “à luz das considerações supra, a Comissão, no âmbito do procedimento previsto no artigo 108.º, n.º2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, convida a República Portuguesa a apresentar as suas observações e a prestar todas as informações que possam ajudar a avaliar as medidas anteriores em favor da ENVC (…)”.
A leitura atenta destas transcrições e do teor integral do “processo de investigação” às pretensas ajudas públicas aos ENVC no valor de 181 milhões de euros, mostram bem a dimensão do pretexto usado pelo Governo PSD/CDS para prosseguir com o seu plano de privatização encapotada da empresa.
5.Alternativa à privatização/concessão
Em nome do interesse nacional, em defesa de uma empresa pública de construção naval com caraterísticas únicas em Portugal e dos seus mais de seiscentos trabalhadores, é bem evidente que o Governo deve responder aos quesitos e observações constantes deste processo de investigação. Para isso é determinante que seja elaborado um plano de reestruturação e de viabilização dos ENVC no qual se insiram aquelas e eventualmente outras ajudas públicas prestadas à empresa em dificuldades. Para isso, é fundamental que o Governo abandone de vez a sua “sanha privatizadora” e opte por uma estratégia de defesas e de viabilização dos ENVC, criando todas as condições para que esta empresa pública industrial recupere o seu papel central na construção naval em Portugal, reocupe o seu papel na economia regional e nacional, mormente o seu papel de empresa exportadora, e assuma um papel de relevo em toda a estratégia nacional da designada economia do mar.
Os factos demonstram que, ao contrário do que o Governo pretende fazer crer, não existe qualquer obrigação nem é uma inevitabilidade encerrar os Estaleiros Navais de Viana do Castelo nem despedir os seus 630 trabalhadores. Nada nem ninguém pode determinar esse encerramento e é claro que o processo de investigação da CE também não o faz. Se o Governo escolher liquidar a empresa, ela é uma escolha que reflete uma posição profundamente ideológica que apenas serve os interesses dos grupos privados que pretendem apropriar-se de um património público determinante e estratégico na construção naval em Portugal.
O PCP entende que sempre existiu e que existe ainda um outro caminho, de defesa desta empresa publica industrial que é, inclusivamente, suportado no texto dimanado das autoridades comunitárias.
Por tudo o que fica dito, e ao abrigo das disposições regimentais e constitucionais aplicáveis, a Assembleia da República recomenda ao Governo que:
1.Proceda à nomeação imediata de uma nova Administração da empresa, designada por critérios reconhecidos de competência profissional e de experiência no setor, uma administração empenhada e em dedicação exclusiva, perseguindo a tarefa de recuperar a normalidade empresarial dos ENVC como empresa pública de referência na produção industrial em Portugal;
2.Determine a apresentação urgente de um Plano de Viabilização e de Reestruturação dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, elaborado em diálogo com os seus trabalhadores, que valorize a produção industrial nacional e que contemple, pelo menos, os seguintes pressupostos:
2.1 A garantia dos postos de trabalho da empresa e a previsão de um vasto programa de requalificação e de formação profissional de atuais e futuros ativos;
2.2. A construção dos navios para a Venezuela nos prazos contratuais;
2.3. A reprogramação, de acordo com orientações governamentais e as disponibilidades de investimento, da execução do programa de construção dos navios para a Marinha;
2.4. A recuperação da imagem de referência, interna e externa, dos ENVC na área da construção e da reparação navais, da sua experiência e capacidade tecnológica, mormente em articulação e com o apoio dos meios oficiais governamentais de apoio à internacionalização;
2.5. A elaboração de um programa de diversificação industrial da empresa, contemplando estratégias de investimento na inovação e na modernização de processos produtivos e em novos segmentos de produção, mormente na área das plataformas offshore, que permita encarar a plena participação dos ENVC numa estratégia nacional baseada na economia do mar;
2.6. A integração da estratégia de reestruturação e de viabilização dos ENVC no contexto do novo Quadro de Referência Estratégica 2014-2020;
2.7. A definição de condições de superação das dificuldades financeiras dos ENVC e a redefinição legal dos processos concursais de iniciativa empresarial pública;
2.8. A adequada rentabilização do navio Atlântida.
1. Proceda à contestação do procedimento aberto pela Comissão Europeia justificando as ajudas públicas prestadas e/ou a prestar aos ENVC num contexto de empresa em dificuldades com um plano de reestruturação e viabilização aprovado e em desenvolvimento.
Assembleia da República, em 17 de maio de 2013