Intervenção

Recenseamento Eleitoral - Intervenção de António Filipe

Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,

O recenseamento eleitoral, oficioso, obrigatório, permanente e único,
nos termos constitucionais, é um instrumento fundamental para o Estado
Democrático. Da fidedignidade do recenseamento, enquanto elemento
definidor do universo eleitoral, depende em larga medida a própria
fidedignidade dos actos eleitorais.

A definição dos princípios que ainda hoje enformam, e bem, o
recenseamento eleitoral em Portugal, remonta aos primeiros tempos do
nosso regime democrático. A garantia de um recenseamento realizado de
forma correcta, amplamente participada e com condições suficientes de
fiscalização por parte de todos os cidadãos, assumiu-se desde logo como
um dos princípios basilares do direito eleitoral democrático que
importa hoje, e sempre, salvaguardar.

Princípio que importa salvaguardar tanto mais, quanto é certo que as
vicissitudes dos tempos que vão correndo têm tornado mais complexas as
operações de recenseamento eleitoral e quanto mais complexas essas
operações se tornam mais importante se revela a criação de garantias
acrescidas da sua genuinidade e fidedignidade.

Resulta essa complexidade do facto de integrarem hoje o recenseamento
eleitoral cidadãos em situações diversas quanto à sua capacidade
eleitoral activa e passiva, o que constitui um facto relativamente
novo. Para além dos cidadãos nacionais maiores de 18 anos, residentes
em Portugal, recenseados no território nacional e dos cidadãos
nacionais residentes no estrangeiro e em Macau, e aí recenseados,
outras situações vieram, nos últimos anos, a integrar o recenseamento
eleitoral.

Primeiro passou a admitir-se a declaração antecipada da intenção de
recenseamento junto das embaixadas e postos consulares por parte de
cidadãos residentes no estrangeiro, havendo que cuidar da correcção da
sua transposição efectiva para o recenseamento eleitoral. Depois passou
a admitir-se o recenseamento de cidadãos estrangeiros residentes em
Portugal, quer cidadãos da união Europeia, quer cidadãos de países da
CPLP, comportando situações diversas quanto à respectiva capacidade
eleitoral. Depois, passou a existir o recenseamento provisório para os
cidadãos com 17 anos que não completassem os 18 até ao final do período
legal de inscrição, que se converte em definitiva à data em que
completam essa idade.

Em suma, o recenseamento foi-se tornando mais complexo. Na sua
elaboração e, evidentemente, também no controlo do rigor com que é
efectuado.

Acresce que as possibilidades técnicas hoje existentes, através do
recurso à informatização, permite, não direi simplificar, mas agilizar
a actualização do recenseamento eleitoral. Existe hoje uma base de
dados centralizada relativa ao recenseamento, criada por lei especial
desta Assembleia, e existe a possibilidade de utilizar meios
informáticos para garantir a actualidade do recenseamento e superar a
regra da actualização anual que ainda hoje vigora.

É portanto útil e pertinente, do nosso ponto de vista, reexaminar a lei
do recenseamento eleitoral. Não para alterar os princípios em que
assenta, mas para encontrar formas de os garantir com maior celeridade
e eficácia.

É importante garantir a existência de um recenseamento eleitoral
permanentemente actualizado. É importante regular a utilização da Base
de Dados do Recenseamento já existente e a sua fiscalização. É
importante examinar todo o edifício legislativo do recenseamento por
forma a unificar num só diploma toda uma série de contribuições
legislativas avulsas que foram acrescendo ao sistema.

Posto isto, importa também dizer que, do nosso ponto de vista, a
Proposta de Lei do Governo não resolve bem todos os problemas que são
suscitados. Aliás, o conjunto de propostas que hoje mesmo nos chegaram
da parte do Governo, já como contribuição para o debate na
especialidade, é bem o reconhecimento desse facto. Não houve ainda
tempo para apreciar essas propostas com a merecida atenção, o que será
feito muito em breve, mas regista-se a sua apresentação ainda antes
deste debate.

Relativamente ao texto originário da Proposta de Lei, e penso que as
questões que vou suscitar não ficam resolvidas mesmo com as propostas
agora apresentadas, importa levantar alguns problemas que devem ser
ponderadamente analisados e resolvidos na especialidade.

O primeiro problema diz respeito ao recenseamento provisório dos
cidadãos com 17 anos. Este instituto foi criado, como todos nos
lembramos, para resolver um problema que decorria da anualidade da
actualização do recenseamento. Quem completasse 18 anos depois do
último dia do mês de Maio de cada ano só poderia recensear-se durante o
mês de Maio do ano seguinte, o que somado ao período de
inalterabilidade dos cadernos eleitorais que precede cada acto
eleitoral, fazia com que em algumas eleições só aos 19 anos se pudesse
votar, e em casos limite mesmo cidadãos já com 19 anos ficavam
impedidos na prática de exercer o seu direito de voto.

Este problema foi resolvido - bem resolvido - com uma lei especial que
criou o recenseamento provisório. O que acontece nesta Proposta de Lei
é que o mecanismo do recenseamento provisório é transposto para o
futuro articulado sem ter em consideração que no mesmo diploma se
propõe que a actualização do recenseamento passe a ser mensal. E
portanto, se continua a ser indispensável encontrar um mecanismo de
salvaguarda do direito de voto dos cidadãos que completem 18 anos até
ao dia de uma eleição, já não faz sentido que se mantenha o
recenseamento provisório generalizado de todos os cidadãos com 17 anos,
que seria desnecessário para a grande maioria, com a agravante de
subsistirem ambiguidades quanto à sua obrigatoriedade. É um primeiro
problema que importa analisar com cuidado.

A segunda questão que queremos suscitar diz respeito à introdução na
lei do recenseamento de disposições que lhe são alheias e que visam
atingir fins que são estranhos ao recenseamento eleitoral. Não faz
sentido que passe a ser necessário exibir o cartão de eleitor para
renovar o bilhete de identidade. As exigências quanto à renovação do BI
é matéria a discutir em sede de legislação sobre a identificação civil.
Não é matéria que diga respeito ao recenseamento.

Assim como não faz sentido proceder a interconexões com a base de dados
do SEF para detecção de irregularidades quando os eleitores já são
obrigados a apresentar documentação emanada do SEF para efeitos de
recenseamento. Há aqui uma mais que duplicação de exigências: Um
cidadão estrangeiro que possa e queira recensear-se tem de apresentar:
1º, a autorização de residência. 2º, um documento passado pelo SEF que
certifique o tempo mínimo de residência em Portugal. 3º, uma declaração
formal de onde conste a nacionalidade e o endereço no território
nacional (a confirmar pela comissão recenseadora) e ainda o caderno
eleitoral do círculo ou autarquia local do Estado de origem em que
tenha estado inscrito em último lugar, e ainda, que não se encontra
privado de direito de voto no estado de origem. Portanto, de duas uma,
ou se faz fé na documentação emanada do SEF e se prescinde da conexão
de ficheiros, ou se reduz a carga de exigências burocráticas para o
recenseamento de cidadãos estrangeiros que, tal como está, é
verdadeiramente desencorajadora e injustificada. Como é sobre esta
matéria que incide o projecto de lei do PCP também hoje em discussão,
referir-me-ei a ela mais adiante.
Há entretanto alguns outros aspectos da proposta de lei que suscitam
reparo:

Refere-se a dado passo o dever de colaboração das assembleias de
freguesia no recenseamento eleitoral, através de membros a designar por
estas. Não se diz em parte alguma em que consiste tal colaboração.

Prevê-se a existência de uma aceitação meramente condicional da
inscrição quando se suscitem fundadas dúvidas sobre a sanidade mental
do cidadão. E nesse caso fica o cidadão obrigado a apresentar, no prazo
de trinta dias, atestado comprovativo da sua sanidade mental passado
por uma junta de três médicos. Estamos aqui, senhores Deputados,
perante um caso curioso de inversão do ónus da prova, já não quanto à
origem do património, mas quanto à sanidade mental de cada um.

Um outro problema que merece referência desde já, diz respeito à
conciliação do sistema de prazos referido no artigo 57º da proposta de
lei para a exposição e eventual correcção dos cadernos, cuja contagem
começa no 55º dia anterior à data da eleição e vai até ao 15º dia, que
marca o período de inalterabilidade dos cadernos eleitorais, com o
facto de se prever a inscrição no recenseamento até ao 50º dia anterior
à eleição. Este sistema de prazos não pode deixar de ser
compatibilizado.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O PCP apresentou recentemente na Mesa desta Assembleia um projecto de
lei relativo às exigências de identificação que são feitas aos cidadãos
estrangeiros para efeitos de inscrição no recenseamento eleitoral.

A Lei n.º 50/96, de 4 de Setembro, concretizando o disposto no n.º 4 do
artigo 15º da Constituição, veio consagrar legalmente a atribuição de
capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de
órgãos das autarquias locais a cidadãos estrangeiros residentes em
Portugal, em condições de reciprocidade, fazendo porém depender tal
capacidade, no caso dos cidadãos não nacionais de países da União
Europeia, de um período mínimo de residência em Portugal.

Assim, os cidadãos que não sejam nacionais de países membros da União
Europeia nem de países da CPLP só adquirem capacidade eleitoral activa
e passiva se residirem legalmente em Portugal há pelo menos 3 e 6 anos,
respectivamente, beneficiando os cidadãos nacionais de países da CPLP
de um regime mais favorável (proposto pelo PCP) que lhes atribui
capacidade eleitoral activa se residirem em Portugal há 2 anos e
capacidade eleitoral passiva se cá residirem há 4.

A Lei n.º 50/96, de 4 de Setembro, ao introduzir na lei do
recenseamento eleitoral e na lei eleitoral para os órgãos das
autarquias locais as exigências formais destinadas a certificar o
período mínimo de residência para efeitos de recenseamento e para
efeitos de apresentação de candidaturas, optou por uma solução que se
tem vindo a revelar injustificada e que dificulta o recenseamento de
cidadãos não nacionais e consequentemente a sua apresentação como
candidatos.

A lei exige actualmente que o período mínimo de residência seja
comprovado através do bilhete de identidade de cidadão estrangeiro ou
da autorização de residência e para além disso, obrigatoriamente,
através de um documento emitido pelo Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras.
A referência ao bilhete de identidade de cidadão estrangeiro deixou de
fazer sentido, na medida em que o decreto-lei n.º 244/98, de 8 de
Agosto, dispõe no seu artigo 90º que o título de residência substitui,
para todos os efeitos legais, o bilhete de identidade de cidadão
estrangeiro.

Quanto ao documento do SEF, trata-se de uma exigência absurda. De
facto, se através da autorização de residência, que é um documento
idóneo passado pelo Estado português, é possível, na generalidade dos
casos, comprovar o período mínimo de residência legal em Portugal, por
que razão se há-de exigir a todos os cidadãos, para além disso, a
apresentação de um documento emitido pelo SEF?
Será que o legislador não confia na idoneidade das autorizações de
residência concedidas pelo Ministério da Administração Interna? Ou será
que pretende fazer recair sobre os cidadãos estrangeiros que pretendam
recensear-se ou que pretendam ser candidatos aos órgãos das autarquias
locais uma inadmissível presunção de desonestidade? Seja qual for a
resposta, importa que a lei seja alterada, corrigindo este aspecto
absurdo.

Propõe-se então, que para efeitos de recenseamento eleitoral e de
apresentação de candidaturas de cidadãos estrangeiros (que não sejam
nacionais de países da União Europeia) o período mínimo de residência
em Portugal seja comprovado através da autorização de residência, e que
só supletivamente, nos casos em que tal certificação não possa ser
obtida através desse documento seja exigido um outro documento
comprovativo a emitir pelo SEF.
Disse.

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