Ontem lá estivemos, como todos os anos, ao segundo domingo do mês de Maio, no “liceu” que foi de todos nós e que hoje é a Escola Secundária de Gil Vicente, ali na Rua da Verónica, à Graça. Alguns praticaram desporto pela manhã, depois almoçaram centenas um churrasco servido pela empresa de um vicentino.
As centenas são de várias gerações. E ainda há dias, em sessão pública da Câmara, no período da intervenção do público, um munícipe septuagenário terminou a exposição de um seu problema, apontando para mim, dizendo “e você não se esqueça de no dia11 ir ao nosso almoço vicentino”... Até já o fizemos à chuva, palco das nossas brincadeiras, onde festejámos a primeira vitória do Benfica no Europeu de Futebol, enquanto engolíamos as bolas de Berlim que se serviam na cantina (petisco que continua sempre presente nestes almoços).
Nestes convívios revisitamos o passado, com saudade mas sem saudosismo, reencontrando amigos e conhecidos e todos os anos encontrando mais um que apareceu pela primeira vez. E pômo-nos a pensar (é bem verdade!) que uma parte do que hoje somos foi ali construído, que cada patamar do passado é insubstituível no que somos hoje, que cada contacto renovado e experiência de vida partilhada nos dá uma idéia mais precisa do que é a condição humana do viver.
Quando o liceu foi criado em 1914 no Convento de S. Vicente, foi o primeiro da República e era misto. Depois, em 1926, talvez por obra e graça do Estado que passou a «Novo», ficou só masculino e assim continuou a ser quando transitou para as novas e actuais instalações em 1949. Quando por lá andei, convívio com raparigas só no Rainha D. Leonor, a umas boas centenas de metros...Com a benção do Padre Alcobia, nosso professor de Religião e Moral e hoje pároco de S. Agostinho e S. Felix de Marvila.
Foi um tempo de crescimento e descoberta da vida política, sem ser pela via familiar. Que por essa já a conhecia, das seis prisões pela PIDE do meu pai, do ouvir baixinho as Rádios Portugal Livre, Voz da Liberdade e a Rádio Moscovo, do queimar de papéis, das visitas às cadeias de Caxias e do Aljube, com a PIDE a interromper a visita quando o meu pai mostrou os pés ensanguentados pela tortura de sono, da firmeza da minha mãe a enfrentar os pides quando nos entravam em casa, para o levarem mais uma vez, de ir buscar apoio financeiro à casa de um padre que morreu pobre, com 86 anos, César Teixeira da Fonte, que morava ali em S. Sebastião, e que mais tarde soube que também tinha sido preso na Madeira, em 1936, quando se pôs à frente de uma manifestação de camponeses, para os conter e acabou por ser preso como agitador e passar por muito sofrimento, ou quando tive uma crise de maoismo e o meu pai se chateou comigo.
Pois foi no Gil Vicente que tivemos grandes professores, bizarros por vezes, alguns inflexíveis, mas com quem aprendemos muito. Alguns ajudaram-nos a organizar jogos florais, alternativos às iniciativas da então já decrépita Mocidade Portuguesa. Um chegou a ser preso e vim a encontrá-lo funcionário do Partido na sede da António Serpa. A outro encontrei-o no Partido, anos mais tarde, depois do 25 de Abril. Era um professor que sem parar de escrever no quadro e, mesmo de costas, dizia a meia voz, com frequência, “Abreu, para a rua!”. Era um tempo em que a irreverência e a descoberta do novo se manifestava desta forma, mas também nas deslocações para fora do nosso grupo coral com o Professor Ascenso de Siqueira (“Oh, mia patria, si bela e perduta, oh, membranza si cara e fatal”...), nas récitas como o “Alfa Romeo e Lambretta”, “Cleópatra” e “Minha fera lady”, que saíam do talento do Prof. Raimundo Serrão, ou nas diatribes no laboratório de Física, com o nosso querido amigo Sr. Pinto que, apesar de reformado, continua a aparecer, como acontece com o Sr. Vicente, então chefe dos contínuos.
Em 1962, faltei a uma aula para distribuir em vários cantos propaganda do 1º de Maio. O Reitor apanhou-me numa casa de banho, deitou-me um olhar de censura, depois olhou para o lado e saiu. Já me tinha convidado para entrar para a Mocidade Portuguesa e eu recusara. Um ano mais tarde a PIDE quis prender um colega dentro do liceu. O Reitor não lhes permitiu a entrada na escola e o Vital foi preso na rua, com os estudantes concentrados no átrio da entrada. Abriu, mais tarde, em Paris, a livraria “La différence”. No movimento pró-associativo, por pouco não dei em jornalista. Estavam lá o Cáceres Monteiro, o Oscar Mascarenhas, o Almeida Martins, o Fernando Valdez... Fiz o gosto ao dedo durante uns anos no Técnico com o “binómio”.
E quantos destas centenas, que ali se reencontraram no domingo, têm destas e doutras estórias para contar! Outros, como o Luis Pessoa, que reencontrei no Técnico, tiveram papel destacado na intervenção da madrugada do 25 de Abril de 74. O Luis, comandando um batalhão vindo de Santa Margarida. O Fabião, que todos conhecemos, e tantos outros que lá continuam a aparecer.
Entretanto, a vida continua, o trabalho e a luta também.
E nestes encontros deparamos sempre com novas surpresas.
A escola, que continua com um conselho directivo dinâmico, presidido pela Eugénia Varela Gomes, mantém uma dinâmica cultural importante. Há dias estiveram lá durante umas horas, juntos, à conversa o Mia Couto e o Malangatana. Para o próximo dia 6 de Junho, convidaram os antigos alunos a partilharem, nas salas, as aulas dos dias de hoje, com os actuais alunos, e depois falar com eles sobre as experiências deles e as nossas.
Ora bem, até para o ano! E venha mais uma bola de Berlim... Gil Vicente, como o 25 de Abril, sempre!